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OBO Di MiDRiGÓi
ROMANCE ORIGINAL
ILH.TJSXRAIDO OOIwfl: 40 OI^-A^VCTIRAS
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LISBOA
Parceria António Maria Pereira
LIVRARIA EDITORA
Kua Augusta — 50, 52 e 54
1904
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o Ixobo da M^dragôa
j^lberto Pimentel
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DA MÂDRAGÕÂ
Romance Original
ILLUSTRADO COM 40 ORAVURAS
LISBOA
Paeceria a. M. Pereira — Livraria Editora
Rua Augusta — 50, 52 e 54
1904
92GI
^^^v p/|6L6
Oííicinas typograpliica e úe encaflernação, movidas a vapor
DA
wA. H, C E R. I -A. -A._ Is^. I» E H E 1 1?, -A.
Rua dos Correeiros, 70 e 72, i.°
1904
o poeta Diógenes, o Lobo,
Sem capa, bolsa, ou lar, mordendo em todos.
Castilho — Excacações poéticas.
António Lobo de Carvalho, quando se levanta
do cinismo habitual, e não imita a sordidez de
Baífo, é critico engenhoso, e faz lamentar o ta-
lento polluido em levianas devassidões.
Rebello da Silva. — Panorama, XI.
PARTE I
Peeeadoã da moeidade
fl explosão da pesqueira
Esboçava-se na ténue claridade do ceu o primeiro sorriso
da aurora, e já a Therezinha de Villalva, madrugadora como a
toutinegra, atravessava por Argemil para a beira do rio Ave.
EUa nao tinha outro relógio que a despertasse, além do
seu coração. Quem anda de amores nSo dorme, diz o povo.
Aquella linda cachopa de Villalva dormia, cançada de moure-
jar um dia inteiro na faina dos campos, e talvez não sonhasse.
Mas accordava mais cedo que toda a sua aldeã ; primeiro ainda
que os pássaros no arvoredo, exceptuando a toutinegra e o ten-
tilhão. Era o coração que a despertava, muito de mansinho,
para que ninguém mais ouvisse. E quando a Therezinha sal-
tava do leito, certificava-se olhando para a janella: lá estava já
o sol a dizer-lhe «Tu e eu não faltamos nunca.» Então, bem
accordada, principiava a sonhar, que só para os namorados a
vida é sonho. O provérbio popular: — Quem anda de amores
não dorme — applicado á raça forte do Minho, não impõe a in-
somnia como indispensável condição pathologica ; exprime ape-
nas o alvoroço madrugador do coração amoroso.
Escusamos de phantasiar requintes e devaneios de poesia,
que brigam com a realidade dos factos. Digamos o que é; como
as coisas são. O amor, para ser poesia e sonho, não precisa
que o vamos procurar ao ceu e lhe ponhamos duas azas bran-
cas que o tragam mais facilmente até nós. EUe é já de si mes-
mo uma força mysteriosa que eleva a creatura ; e na mulher
10 o LOBO DA MADRAGÔA
do campo nSo ha outro sentimento que possa tornal-a imma-
terial.
A Therezinha de Villalva sahia de casa pé-ante-pé, lavava-
se na corrente do Sanguinhêdo, riacho da sua aldeã, como fa-
ziam mais tarde todas as outras raparigas. Via-se no espelho
ainda baço da agua, que o sol illuminava frouxamente, e com-
punha o cabello, anediando-o com as mãos, que também tra-
tava com excepcional cuidado entre camponezas. Depois partia
alegre, cantando, mais feliz do que uma princeza, sem pensa-
mentos maus que perturbassem a castidade da sua vida.
A mulher do campo, se é honesta, nSo teme os perigos do
caminho, nem as vozes do mundo. A sua mesma honra é uma
escolta que a acompanha, que a defende e guarda. i\ão a intimi-
da a solidão, que ella parece supprimir cantando. N'isto se dif-
ferença das aves suas patrícias : ellas gostam de cantar pousa-
das; a camponeza canta caminhando.
De mais a mais Therezinha nao atravessava um deserto.
Entre Villalva e Argemil^ dois povoados, apenas havia alguns
trechos de pinheiral, que ella cortava em linha recta. Pelo ca-
minho já ia encontrando alguém, quasi sempre algum velho,
que lhe dizia benevolamente: «Vai com Deus, cachopa». Os
velhos dormem menos que os moços, talvez por um movimento
instinctivo da natureza, que se apega á vida para aproveitar
melhor a pouca que ainda lhe resta.
Chegando a Argemil, havia sempre mais gente que não
deixava passar ninguém em segredo. Eram os criados da quinta
da Batalha, que rondavam em som de guerra a beira do rio.
Therezinha parava um momento para ajoelhar á porta da
capellinha de Nossa Senhora da Piedade. Rezava por costume
uma «Ave-Maria», com as mãos erguidas. Depois descia á
orla do pinhal para o rio. Logo ali, poucos passos andados,
estava o Ave, onde a agua espumava cahindo do açude. Parava
e batia de rijo trez palmadas, que o écco do valle repetia lon-
gamente. Respondia-lhe um assobio estridulo; era o barqueiro
dos cruzios* da Palmeira que dava signal de que não tardaria
com a barca da passagem.
Os criados da Batalha diziam sempre a Therezinha alguma
chalaça por galanteria :
— Ah ! cachopa ! pudéssemos nós desviar o rio, que nem
tu o passarias, nem os cruzios nos fariam passar tão má
vida.
— Tu és uma flor da margem esquerda : não enraízes além,
que nos roubas.
— S. Bento faça o milagre de que venhas a querer mais á
Batalha do que á Palmeira.
o LOBO DA MADRAGOA
11
Therezinha sorria, e tinha sempre que responder, porque
a mulher do Minho é destra e graciosa na répHca :
— Se vós pudésseis desviar o rio, ficarieis sem pesqueiras
nem azenhas. E se quereis perder tudo isso, dai-o de boamen-
te aos cruzios; escusaes de andar em guerra com elles.
Aspecto de Villalva, do lado do Alto do Pedro
— Fosse eu flor, e seria como todas as outras, que nao sa-
bem onde hao de viver, senão onde Deus manda.
— Eu quero tanto á Batalha como á Palmeira. Sou como
as vossas azenhas, que teem duas rodas e nenhuma d'ellas tra-
balha mais de uma banda que da outra.
Os criados dos benedictinos riam de ouvir Therezinha pa-
paguear todos estes chistes, que lhe eram salvo-conducto com
que livremente podia atravessar o rio, privilegio que a outra
qualquer pessoa tão affeiçoada á Palmeira seria violentamente
disputado.
Amanheceu o dia 23 de julho de 1758 e, como sempre, a
Therezinha de Villalva accordou despertada pelo coração. Olhou
para a janella e lá viu o sol a dizer-lhe : «Tu e eu nSo falta-
mos nunca». Poz-se a pé, mas estava menos tranquilla e con-
tente do que nos outros dias. A si mesma perguntou com so-
12 o LOBO DA MADRAGÒA
bresalto : ((Será hoje?» Havia um pensamento secreto que a
alvoroçava. Mas, com o seu animo i-esoluto de rapariga mi-
nhota, sahiu pé-ante-pé, foi lavar-se ao Sanguinhêdo, onde
compoz o cabello no espelho da agua; e involuntariamente re-
lanceou os olhos por toda a sua pequena aldeã, como a inqui-
rir das arvores, dos rochedos e do ribeiro se n'aquelle dia
seria menos feliz do que nos outros.
E' que os sitios que estamos costumados a vêr ínspiram-
nos confiança amigável : contamos com elles, como se fossem
companheiros seguros, nossos confidentes e auxiliares dedi-
cados.
Pareceu á Therezinha que pairava sobre a paizagem o que
quer que fosse de tristeza estranha.
A pobre rapariga estava vendo a natureza através da sua
alma.
EUa bem sabia o que se planeava na quinta da Palmeira,
e que se preparavam acontecimentos que alguma hora estala-
riam de súbito.
A paizagem era tao bella e tranquilla como sempre fora.
Os casaes brancos esmaltavam sorridentes a verdura da vege-
tação frondosa, pelas duas encostas dos outeiros que formam
o pequeno valle do Sanguinhêdo. D'esses alegres casaes ad-
viera o nome á povoação: Villa Alva ou Villalva. Do Alto do
Pedro, um dos outeiros, vem a aldeã descendo, graciosamente
disposta, até ao rio, e d'ahi sobe até ao cimo do Penedo, que
é o segundo outeiro, não menos povoado e viridente.
O riacho, apezar de minguado de aguas no verão, não che-
ga a seccar nunca. Vae deslisando por entre pedregulhos com
mais ou menos facilidade, segundo a estação. Âffluente do Ave,
leva-lhe o seu concurso, que em todo o caso é insignificante.
Uma ponte antiga, de granito — essa resistente e veneran-
da pedra que em todo o norte do paiz desafia os séculos — pre-
vine a hypothese, aliás pouco provável, do Sanguinhêdo trans-
bordar interceptando a povoação.
Toda a paizagem de Villalva se dulcifica n'uma profunda
quietação bucólica. Não se encontra ali apenas esse ar de plá-
cida resignação que parece tornar supportavel a vida em cer-
tas aldeãs nossas. Não. Ha uma paz alegre, cantante sem bu-
lício, sorrindo sem garridice. E' um trechosinho de Minho que
rivalisa com os panoramas da Suissa, cheios de luz, de bon-
dade, direi mesmo, de ternura campestre.
Não podiam os olhos de Therezinha ler algum pensamento
triste n'aquella paizagem inalteravelmente serena e gentil. A sua
alma, alvoroçada por um receio intimo, é que espalhava em
torno de si uma vaga inquietação.
à
o LOBO DA MADRAGÔA 13
Não obstante, Therezinha partiu, mas, durante os primei-
ros passos, nao se lembrou de cantar. Ella própria estranhou
esse facto e, dominando-se resolutamente, metteu por entre o
pinheiral cantando.
Quando chegou a Argemil, parou junto á ermida da Se-
nhora da Piedade.
Ajoelhou de mãos erguidas. Mas em vez de uma, rezou
trez Ave-MariaSj, cerrando os olhos n'uma con(íentração mais
funda do que habitualmente.
Encontrou os criados da quinta da Batalha rondando como
sempre a beira do rio, mas affigurou-se-lhe que estavam em
maior numero n'aquelle dia.
Quiz pensar que tosse illusão sua, para reprimir a apprehen-
são que tanto a inquietava.
Todos elles, como de costume, lhe disseram seu madrigal,
a que ella respondeu galantemente, sem denunciar a menor
perturbação de animo.
Bateu as trez palmadas do estilo e, circumstancia singular f
não lhe respondeu da outra margem do Ave o costumado asso-
bio.
Então uma sensação dolorosa, rápida e penetrante como
golpe de punhal, pareceu ferir-lhe o coração.
— Olá! gritou um velho criado de quinta da Batalha. Te-
mos mouro na costa! Olho alerta, rapazes!
Os outros, ouvindo isto, acercaram-se d'elle, movidos de
um vivo interesse, anciosamente interrogativos no olhar e no
gesto.
— Pois então ! Acham vocês que o Manoel barqueiro tenha
adormecido agora? Historias, rapazes!
Therezinha, muito pallida, offegante, alternava o olhar affli-
ctivamente perscrutador entre a margem direita do rio e o ho-
mem da Batalha que estava falando.
— Quem sabe se morreu? disse ella vibrante de commo-
ção.
E o da Batalha replicou de prompto :
— A'gora morreu elle! Se tivesse morrido já se cá sabia,
já t'o tinham vindo dizer, que as más noticias, cachopa, são
como o vento : correm muito.
— Então ? perguntaram os outros homens da Batalha.
— Então?! Pois não percebeis que não querem hoje lá a
rapariga 1
Therezinha estava cada vez mais pallida. O seu peito ar-
quejava como um casal de pombos assustados.
— E que futura vocemecê que haja de ser? inquiriram
muitas vozes. A pesqueira nova, será?
14 o LOBO DA MA DRAGO A
— Eu sei, rapazes! Mas é provável que seja... Com estes
senhores padres cruzios ninguém se entende. . . Grandíssima
pouca vergonha ! Os nossos padres benedictinos teem o seu
couto marcado pelo meio do rio desde o tempo dos Affonsinhos.
E' seu; deram-lh'o. Nem o rei, nem Sebastião de Carvalho lh'o
podem tirar. Vão estes senhores cruzios da Palmeira e não
querem que nas aguas que sSo nossas, e na terra que nossa é,
haja pesqueira ou azenha defronte da quinta da Palmeira! Já se
viu maior desaforo?!
— A pesqueira nova juraram elles demolil-a, custe o que
custar.
— Isso veremos !
— Dizem que querem o rio livre, e que o hão de ter.
— Também havemos de ver isso I
Houve um momento de silencio, durante o qual alguns
dos homens da Batalha olhavam com dolorida sympathia para
a Therezinha de Villalva.
O velho criado dos benedictinos quebrou o silencio dizendo:
— O tio João Rodrigues, que eu conheci muito bem, cons-
truiu a pesqueira que chámaes nova, por contrato com os nos-
sos padres de S. Bento. Obrigou-se a pagar foro, e sempre o
pagou. Depois que morreu, os seus herdeiros sempre o teem
pago também. Ha negocio mais licito do que este? O que teem
os padres cruzios com isso ou o que podem ter?! Mas, rapa-
zes, olhae que a cachopa está estarrecida. Vae-te embora, The-
reza, que hoje não vem a barca buscar-te.
— Estou cheia de cuidado em meu pae, disse Therezinha
com os olhos fitos na niargem direita do rio.
— Não é só em teu pae. . . Olha como tu és fingida ! Mas
em teu pae também deve ser.
— E em meu padrinho também, acrescentou ella.
— Sem fallar em quem nós sabemos. . .
— Bem estou eu agora para graças! replicou a linda ca-
chopa de Villalva procurando affastar o assumpto.
— Nem a barca lá está hoje ! Dá mais que pensar a falta
da barca que a do barqueiro.
— Queira Deus que não seja doença, nem caso de morte.
— Não, rapariga. Já te disse, observou sentenciosamente
o velho, que as más noticias correm tanto como o vento.
N'isto appareceu por entre o arvoredo da margem direita,
no couto da Palmeira, um vulto de homem.
Logo foi reconhecido. Era o «Mafarrico de Guimarães>
como já os homens da Batalha o appellidavam continuando
uma alcunha que viera de longe.
Todos os olhares o seguiram no seu rápido perpassar. The-
o LOBO DA MADRAGOA
15
rezinha espreitava-o com uma agudeza de vista, que só tem o
lynce e o amor.
Passando ligeiramente n'uma clareira do arvoredo, o «Ma-
farrico de Guimarães», chamemos-lhe também assim, deitou a
mao a um ramo de arvore e esfolhou-o com presteza.
Devia ser um signal que Therezinha comprehendeu, por-
que, após um momento, disse ella :
Aspecto de Villalva, do lado do Alto do Penedo
— Já vejo que hoje nSo me querem lá. Vou-me embora
com Deus, e amanha voltarei.
Mas estava muito perturbada, como quem adquiriu a cer-
teza de que se devem esperar graves acontecimentos.
O velho da Batalha replicou-lhe :
— Pois vae, Therezinha, que nós cá ficamos, tão avisados
como tu.
Logo que a rapariga metteu pelo atalho do pinhal para Ar-
gemil, um dos rapazes exclamou com juvenil estouvamento:
— Elle alguma coisa é. Mas o melhor é saber-se ao cedo
o que se ha de saber ao tarde.
16 o LOBO DA MADRAGÒA
E soltou um regougo, muito guttural, o que quer que fosse
de apupo, como para provocar uma resposta.
O velho criado da Batalha correu para elle, como para lhe
cortar a voz, mas era já tarde : aquelle grito escarninho ec-
coava no valle do Ave como o estalar de uma gargalhada rou-
quenha.
A resposta nSo se fez esperar muito.
Da margem direita do rio partiu um tiro, e logo outro.
Os homens da Batalha replicaram em genitivo de hostili-
dade, desfechando as suas espingardas contra a margem direita,
apontando para os sitios d'onde os primeiros tiros haviam par-
tido.
Então ninguém podia vêr, n'um lado e outro do rio, mais
do que a scintillação rápida das escorvas e, logo, após a de-
tonação, nuvens de fumo que, sahindo d'entre o arvoredo, su-
biam turvando a limpidez cristallina da manha.
Travou-se um vivo tiroteio, que punha estampidos guerrei-
ros na quebrada do rio.
A barca da Palnjeira, que antes de romper o dia tinha des-
cido, á socapa, o Ave, aproveitou agora a fumarada da pólvora
e veiu rente com a margem esquerda tocar na pesqueira
nova.
Quando os criados da Batalha, empenhados na contenda,
deram por isso, fizeram alguns tiros incertos sobre a barca,
audazmente tripulada por dois homens.
Mas então as detonações cresciam na margem direita, para
cobrir a retirada aos barqueiros.
Poucos minutos depois, ouviu-se uma explosão formidá-
vel, e algumas pedras da pesqueira nova, erguendo-se um mo-
mento no ar, desciam logo para afundar-se com estrondo no
rio, levantando cachões espumantes.
A barca tinha ido incendiar a mecha, que durante a noite
havia sido entalada na pesqueira atrevidamente minada pelos
criados dos cruzios, sem que os da Batalha o percebessem.
Foi á luz do dia que os valentes homens da Palmeira qui-
zeram fazer explodir a pesqueira nova, para maior affronta aos
benedictinos.
Apenas esperavam um pretexto para romper a fuzilaria, e
esse pretexto foi-lhes dado pelo estouvado rapaz da Batalha, que
pagou a audácia com a vida.
E' a sorte de todos os revolucionários destemidos : serem
elles mesmos as primeiras victimas da sua coragem.
Não falhou a regra, ali.
Ao ribombo dos tiros e da explosão acudiram alguns cria-
dos do mosteiro de Santo Thyrso, em soccorro dos seus ca-
o LOBO DA MADRAGÔA 17
maradas da Batalha; e muito povo, curioso, affluia a uma e
outra margem.
Mas quando chegaram, já a refrega tinha passado.
A belleza da manha e a tranquillidade do rio contrastavam
profundamente com o aspecto ruinoso da pesqueira e com o al-
voroço dos espiritos.
Uma renda de espuma franjava toda a linha do açude onde
a agua saltava cantando e correndo.
Os amieiros e salgueiros, que orlam as duas margens do
Ave, conservavam imperturbáveis a flexão gentil, que lhes
dá o aspecto de estarem dizendo doces galanteios á onda es-
quiva.
Só os pássaros não cantavam, porque tinham fugido as-
sustados com o tiroteio.
Muitos d'elles foram abrigar-se na insua grande, d'onde
mais tarde regressaram com notável táctica, porque mandaram
primeiro sondar o terreno por guardas avançadas, espiões ala-
dos, que reconheceram ter passado a refrega.
No rio, o único vestígio evidente da contenda era o aspe-
cto da pesqueira, escalavrada pela explosão.
Mas isto bastava para dar a entender que a discórdia en-
tre os cruzios da Palmeira e os benedictinos da Batalha tinha
entrado n'uma nova phase de irritação, que devia durar muito,
porque, naturalmente, os benedictinos quereriam reconstruir a
pesqueira, e os cruzios desmoronal-a outra vez.
O povo, nas duas margens, commentava o acontecimento
com manifesta parcialidade a favor dos benedictinos. O povo de
Santo Thyrso queria muito ao seu mosteiro e aos seus frades,
que constituíram o primeiro fundamento da povoação christã.
Até os habitantes da margem direita^ apezar de próximos visi-
nhos da Palmeira, defendiam a causa dos benedictinos contra
os cruzios. A Batalha era uma abrevia» do mosteiro de Santo
Thyrso, como a Palmeira era uma «brevia» do mosteiro de Lan-
dim. Mas Landim estava longe, bem como a aldeã a que dera
origem, ao passo que o mosteiro de Santo Thyrso, ali, á vis-
ta de todos, erguia as suas torres, desdobrava â sua fachada
nobre sobre o terreiro da egreja e debruçava o seu longo mara-
chão sobre a corrente do Ave. O povo ouvia a voz dos sinos
do mosteiro e dos monges benedictinos ; recebia os sacramen-
tos na egreja conventual, que frequentava; era aquella, n'uma
palavra, a sua parochia. Quanto aos cruzios, tinha-os como
estranhos, que vinham gosar os seus ócios na quinta da Pal-
meira, cuidando menos do povo que de si mesmos. Via-os
passar, é certo, de Landim para a Palmeira, da Palmeira para
Landim, mas não contava com elles para nada, ao passo que
2
18
o LOBO DA MADRAGOA
no mosteiro de Santo Thyrso encontrava sempre favor e pro-
tecção.
De mais a mais os benedictinos n&o gostavam dos cruzios
e o povo, gostando dos bene-
dictinos, tomava, naturalmente,
o partido d'elles.
Não havia talvez em Santo
Thyrso senão uma única pessoa
que via menos desfavoravel-
mente os cruzios da Palmeira.
Essa pessoa era a Therezi-
nha de Villalva, mas desculpa-
vam-n'a, porque a sua honesta
gracilidade inspirava sympathia
a todos, e porque concorriam
n'ella circumstancias especiaes
que a prendiam á Palmeira.
Passada a refrega, o povo
conservou-se em pasmaceira
n'uma e n'outra margem do rio,
olhando para a pesqueira des-
moronada, maldizendo dos
cruzios, e exagerando as con-
sequências mortíferas do tiro-
teio.
Augmentava por sua conta,
como sempre succede, o nu-
mero das victimas, e não era
fácil averiguar-se a verdade,
porque os criados dos benedi-
ctinos fecharam o porta'» da
quinta da Batalha.
— Estão a enterrar os mor-
tos, dizia cá fora o povo.
— E serão muitos?
— Pois decerto. O fogo durou tanto tempo !
— Os cruzios também devem ter apanhado a sua conta!
— Que o diabo os leve. P'ra que vem elles fazer mão bai-
xa no que é dos outros?
— Ladrões !
— Tal e qual. O rio é dos bentos, e sempre foi desde que
Nosso Senhor o fez.
— E então os cruzios querem desfazer o que Deus fez !
— Peste de cruzios !
Dentro da quinta da Batalha esperava-se que chegasse a
A Therezinha de Villalva
o LOBO DA MADRAGÔA 19
maca, em que o morto devia ser conduzido para a egreja do
mosteiro de Santo Thyrso.
O criado velho dos bentos, sentencioso ancião que nós já
conhecemos, olhava para o cadáver do imprudente rapaz, e di-
zia em tom reflectido para o grupo dos outros criados que o
rodeavam :
— Rapazes, esta briga dos padres cruzios com os nossos
padres de S. Bento já vem de longe, á conta da Palmeira e da
Batalha, e agora mais do que nunca promette continuar. Vós
o vereis, que tendes mais tempo para viver do que eu. Mas eu
já não vi pouco, e sempre ouvi dizer que foi uma grande bata-
lha, entre as duas casas, que deu nome a este sitio. Pois, infe-
lizmente, terá de continuar a guerra, e, se houver de correr
mais sangue, peço a Deus que me leve antes.
E quedando-se a olhar para o morto :
— Pobre rapaz! que tão valente era! até de mais!
No meio do povo, que se conservava espectante na mar-
gem esquerda do rio, estava a Therezinha de Villalva, transfor-
mada dolorosamente por uma angustia enorme.
Ella dissera que voltava para casa, mas o coração não lh'o
consentiu.
Poucos passos andados, retrocedeu, e ficou á espera dos
acontecimentos, cuja gravidade media de antemão.
Assistiu a todo o tiroteio encoberta pelo tronco de uma ar-
vore, sabe Deus com que anciedade.
Quando viu que nenhum dos barqueiros foi alcançado pela
fuzilaria, respirou mais desafogadamente, mas ficou ainda com
os olhos attentamente cravados na margem direita.
Apenas se tirou d'ali quando n'um claro da quinta da Pal-
meira viu apparecer o «Mafarrico de Guimarães», que parecia
procural-a com o olhar na margem esquerda entre o povo.
Então ella avançou alguns passos para se deixar vêr, e
logo deitou a correr, desapparecendo.
Foi rezar a Nossa Senhora da Piedade, que a tinha protegi-
do, attendendo a sua supplica.
II
Dia de S. Bartholomea
As duas ordens monásticas mais poderosas nu provincia
de Entre-Douro-e-Minho eram a dos cónegos regrantes de
Santo Agostinho (vulgarmente cruzios) e a dos monges de
S. Bento.
Pôde dizer-se, não obstante a politica regalista de Sebas-
tião José de Carvalho e Mello, que uns e outros religiosos conti-
nuavam ainda no século xviii a reinar como senhores absolu-
tos no vasto território d'aquella provincia feracissima.
O povo bem o sabia, mas contentava-se, como sempre
acontece, em mostrar que á sua philosophia humorística não
passava despercebido esse facto. Em vez de formular um pro-
testo ou de procurar apoio no primeiro ministro da Coroa, o
povo limitava-se a rir n'um simples dictado, que toda a gente
repetia :
Os monges de S. Bento
E os cónegos de Santo Agostinho
Comem todas as rendas
De Entre-Douro-e-Minho
O mais curioso de tudo é que este dictado chegou até
nós transmittido pela penna do próprio chronista dos cónegos
regrantes de Santo Agostinho, Frei Nicolau de Santa Maria.
Não se pôde averbar de suspeito o testemunho.
E' verdade que Frei Nicolau procura dar uma explicação
do facto, embora não fosse elle que a encontrasse. Deve-se es-
o LOBO DA MADRAGÔA 21
te precioso achado a outro religioso, Frei Jeronymo Romão, o
qual diz que durante muito tempo nao havia outras ordens
além dos cruzios e dos bentos, e que portanto uns e outros
iam naturalmente deitando a mao a todas as egrejas, tanto res-
tauradas como edificadas de novo, e fundando mosteiros seus
junto d'ellas,
Como se vê, a explicação apenas explica que os bentos e
os cruzios nSo deixavam que outras ordens pudessem pôr o
pé em ramo verde ; ora esta, ora aquella, qual das duas á por-
fia, açambarcavam tudo.
O povo não estava para se metter em cavallarias altas, de
que certamente lhe não adviriam maiores benefícios nem favo-
res do que muitos que já recebia dos frades, especialmente
dos benedictinos.
Se se mettesse a protestar e fosse attendido, nada lucraria
na partilha do que se houvesse de tirar aos filhos de S. Bento
ou de Santo Agostinho e, ainda por cima, talvez tivesse que
pagar bem cara a sua imprudência. O exemplo do motim do
Porto contra a Companhia dos Vinhos do Alto-Douro era
muito recente e muito severo para que pudesse esquecer. Os
taberneiros atiçaram o povo contra a Companhia, e o povo cahiu
no laço, pagando duramente a sua leviandade. Sebastião de
Carvalho mandou uma alçada ao Porto, e logo desabou sobre
os ingénuos revolucionários um tremendo castigo : penna de
morte, açoutes, galés, degredos, o diabo. Nem os rapazes da
rua escaparam, porque foram condemnados a assistir ás exe-
cuções e a levar palmatoadas. Sobre estes acontecimentos ia
apenas decorrido um anno. Ninguém os tinha esquecido ainda,
e o povo menos que ninguém.
Por sua parte, Sebastião de Carvalho preoccupava-se
principalmente com os jesuítas para combater a sua acção po-
litica, e deixava em relativa paz as outras ordens que pensa-
vam mais em si mesmas do que em negócios do Estado.
O povo via tudo, mas não estava para sacrificar-se outra
vez. Repetia o dictado, para que o não tomassem por tolo, e dei-
xava correr.
De mais a mais, o povo^ em Santo Thyrso como em toda
a parte, dava-se bem com os benedictinos, que lhe faziam fa-
vores, e que não eram tão emproados e envaidecidos como os
cónegos regrantes de Santo Agostinho.
Estes não deixavam nunca o seu credito por mãos alheias,
sobretudo depois que o Papa Pio IV decretou, ao cabo de uma
longa demanda, que em todos os actos públicos os cónegos re-
grantes precedessem os monges de S. Bento.
Os cruzios, nome popular que em Portugal lhes adveio da
22 o LOBO DA MADRAGÔA
casa-mãe ser o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, usavam
Dom, ao passo que na ordem benedictina apenas o tinha o ab-
bade de cada convento; orgultiavam-se de que a sua ordem
fosse chronologicamenle a primeira de todas as outras, a que
por isso senhoreara durante séculos todo o governo da egreja
catholica; e hierarchicamente também consideravam a sua or-
dem como a primeira em nobreza, porque n'ella se tinham fi-
liado pontifices, reis, principes, cardeaes, arcebispos, bispos e
outra mais gente illustre, e delia tinham sabido varões flores-
centes em leltras e virtudes, sábios para o mundo e santos para
o céu.
Os cruzios de Portugal relembravam com desvanecimento
que D. Affonso Henriques, D. Sancho I e D. Sancho II vesti-
ram o habito de cónegos de Santo Agostinho, e que o chamar-
se a D. Sancho II o «capello» não tinha outra razSo senão a
d'elle usar a sua murça de cónego, habitualmente, até quando
montava a cavallo.
D'aqui veio, por signal, uma ridícula moda: a de todos os
fidalgos, incluindo os que não eram também cónegos, usarem
capas muito curtas, á laia de murças, para lisonjear o rei.
Vê-se que o snobismo cortezão já vem de longa data.
Os filhos de Santo Agostinho tinham habilmente imaginado
uma organisação monástica, que lhes permittia attrairem, sem
violência, grande numero de sujeitos.
Dividiam-se em trez categorias: á primeira pertenciam os có-
negos enclausurados ou reclusos; á segunda, os obedienciarios
ou irmãos conversos, que podiam ser sacerdotes ou não, e que
viviam em suas casas e quintas, fora dos mosteiros; á ultima
classe pertenciam os «terceiros», cuja profissão não exigia maio-
res responsabilidades religiosas do que aquellas que eram as-
sumidas pelos cavalleiros de Christo, de SanfYago ou de
Aviz.
Graças a este processo orgânico estava a porta aberta para
toda a gente, tendo assim realisação o dito de S. Jeronymo quando
lembra que Jesus Christo, conservando a cada homem em seu es-
tado, os fez a todos moradores do ceu.
Os cruzios haviam imaginado um ceu na terra : um ceu
para elles e para toda a outra gente que fosse por elles.
Com referencia á ordem benedictina, os cónegos regrantes
ainda adduziam mais um argumento de superioridade : era que
lhe tinham dado alguns homens que a foram illustrar brilhan-
temente, entre elles alguns pontifices como Leão III e Leão IV,
que de cónegos regrantes lateranenses passaram a monges be-
nedictinos, e chegaram depois á cadeira de S. Pedro.
Todas estas circumstancias, adjuntas á emulação das ri-
o LOBO DA MADRAGOA
23
quezas, bastariam a explicar a rivalidade existente entre as
duas ordens monásticas que predominavam na provincia de
Entre-Douro-e-Minho.
Os cónegos de Landim ou Nandim, como diz o «Nobiliário»
o açude da Palmeira no rio Ave
do conde D.- Pedro, eram quasi visinhos dos monges benedi-
ctinos de Santo Thyrso.
Dom Nicolau de Santa Maria informa que Landim «está
perto do rio Ave.» E' um modo de se exprimir, para dar a en-
tender que entre Santo Thyrso e Landim n8o vae grande dis-
tancia. Comtudo o leitor, se fizer a jornada a pé, e não estiver
habituado, como os bons minhotos, a papar léguas, sentirá fa-
diga. Será mais curial dizer que uns e outros, os cruzios de
Landim e os benedictinos de Santo Thyrso, eram visinhos, mas
nSo de ao pé da porta. Tanto mais que o rio Ave, mettendo-se
de per meio, separava as terras de ambos os mosteiros.
O padre Dom Nicolau informa ainda, n'uma passagem da
«Chronica», que os seus confrades «visinhavam bem» com os
monges de Santo Thyrso. Apezar do chronista não gosar de
24 o LOBO DA MADRAGÔA
indiscutíveis créditos como historiador, esta segunda informa-
ção pôde acceitar-se como boa em relação a Sante Tiiyrso e
Landim, especialmente no século XVII, quando o padre Dom
Nicolau escrevia,
Mas não é exacta quanto á Palmeira e á Batalha, em época
nenhuma, moiórmente no anno de 1758.
Ahi os interesses materiaes dos cruzios e dos benedictinos
digladiavam-se de perto, como n'um duello travado entre a mar-
gem direita e a margem esquerda do Ave.
Os rendimentos que derivavam da exploração do rio, taes
eram os das pesqueiras, azenhas e açude, traziam mal avindos
os cruzios da margem direita e os benedictinos da margem es-
querda.
As duas ordens disputavam, frente a frente, a posse e usu-
fructo do Ave,
Razão tivera o criado velho da Batalha para alludir a cruen-
tas luctas antigas entre a criadagem de uns e outros religiosos,
á conta d'aquelles rendimentos; a tradição diz, efíectivamenle,
ainda hoje, que um grave conf!icto armado fora causa de se dar o
nome de «Batalha» á quinta que os benedictinos possuíam quasi
em frente do couto da Palmeira.
Este couto doara-o aos cruzios do mosteiro de Santa Ma-
ria de Landim Dom Gonçalo Rodrigues Pereira, fidalgo de li-
nhagem, e seus filhos confirmaram collectivamente a doação
no anno de 1177 por escríptura publica.
«Era por aquelles tempos, diz o chronista, o couto e senho-
rio da Palmeira uma grande cousa, e tão boa como um condado».
Os religiosos de uma e outra ordem, cruzios e benedicti-
nos, viviam aqui em constante rivalidade, muitas vezes aggra-
vada pela imprudência e arreganho dos criados de uns e ou-
tros, sobretudo depois que tinha sido construída a pesqueira
nova, considerada então uma das mais importantes do rio Ave.
Os conflictos repetiam-se quasi todos os mezes, pois que
os padres cruzios tinham jurado derrubar a pesqueira, e os be-
nedictinos conserval-a como regalia sua.
As funestas consequências d'esses conflictos ficavam, por
conveniência mutua, n'uma discreta reserva, que a uns e
outros religiosos convinha ser guardada.
Quem morria, morria. Sebastião José de Carvalho e Mello
ou não chegava a ter conhecimento official d'esses repetidos
embates de hostilidade monástica ou evitava intervir directa-
mente em questões de interesse particular, que não embaraça-
vam os réditos do thesouro publico ou as conveniências da
administração geral do Estado.
E as justiças locaes, que desejavam viver em paz com as
o LOBO DA MADRAGÔA 25
duas mais poderosas ordens monásticas da provinda, deixa-
vam correr o marfim.
Ainda por igual motivo o povo, comquanto sympatliisasse
mais com os monges benedictinos do que com os cónegos re-
grantes, seguia o exemplo das justiças locaes, avisadamente
lembrado de que o justo paga muitas vezes pelo peccador.
Desmoronada com auctorisação ou connivencia dos cru-
zios a pesqueira nova, os benedictinos de Santo Thyrso pensa-
ram desde logo, como era natural, em reerguel-a.
A maioria dos seus criados e caseiros da Bstalha desejava
que se levasse o caso á valentona, fazendo-se a obra em pleno
dia, embora sob um chuveiro de balas, porque, diziam elles, o
sangue pede sangue e a vingança clama vingança. Queriam as-
sim desaffrontar a memoria do morto, recente victima d'estas
antigas inimisades fradescas.
Mas os monges benedictinos, na sua maior parte homens
velhos e reflectidos, oppuzeram-se a este plano, reprimindo os
Ímpetos bellicos da criadagem.
Para melhor a convencer, argumentavam que a pesqueira
tinha sido minada em segredo durante noites consecutivas^ e
que apenas a explosão se fizera á luz do dia.
Convinha, pois, proceder do mesmo modo na desforra.
Fossem pondo pedra sobre pedra, pela calada da noite, sendo
a pesqueira bem guardada e vigiada, para que os adversários
não tivessem facilidade de ir desfazendo o trabalho a pouco e
pouco realisado. E graduasse-se a reconstrucção de modo que
por occasiào da feira de S. Bartholomeu, quando os cruzios de
Landim vinham solemnemente á Palmeira, estivesse a obra in-
teiramente concluída, tendo assim a desaffronta a mesma ex-
teriorisação ruidosa que, á luz do sol, tivera a demolição pelo
fogo. Era o mais prudente meio, aconselhávamos benedictinos,
de levar a cabo a empresa, poupando vidas e sangue.
Os criados tiveram de submetter-se á opinião dos monges
e n'isso foram contrariados, mas de algum modo os contentou
a idéa de que, por occasião da feira de agosto, os cruzios que
viessem de Landim veriam reconstruída a pesqueira nova.
E conseguiram dos benedictinos que no dia de S. Bartho-
lomeu lhes deixassem solemnisar a conclusão da obra, ador-
nando com flores e plantas o muro da pesqueira.
Assim aconteceu.
O que vinham fazer os cónegos regrantes de Landim á sua
quinta da Palmeira, solemnemente, no dia de S. Bartholomeu?
perguntará o leitor.
Responda por nós o chronista da ordem, para que se não
imagine que estamos fabulando episódios a bel-prazer.
26 o LOBO DA MADBAGÔA
Referindo-se ao couto da Palmeira, diz Frei Nicolau de
Santa Maria: «e cm certos dias que ha feira no dito couto
(como em dia do apostolo S. Bartholomeu a 24 d'agosto) vae o
Prior (de Landim) com vara alçada, como ouvidor que é do
couto, assistir nas feiras, e pôr o preço ás cousas, que se
nellas vendem, de que tem certos direitos, que manda arreca-
dar e recolher para o seu mosteiro de Landim».
Provada assim a fidelidade da narração, nSo lerá o leitor
duvida em acreditar que no dia 24 de agosto de 1758 a com-
munidade de Landim acompanhara o seu Prior até ao couto
da Palmeira, para gosar as distracções que a feira de S. Bar-
tholomeu lhes proporcionava todos os annos.
Os cruzios chegavam logo pela manha, porque, segundo a
tradição, eram elles que abriam a feira, visto como o Prior de
Landim tinha que tarifar os géneros expostos á venda.
A sua chegada era annunciada por foguetes, morteiros e za-
bumbas, porque sem todo este atroador estrondo nSo ha no
Minho festa que se prese.
A' frente do cortejo vinham seis tamborileiros de Villari-
nho, rufando com uma agilidade funambulesca que irritava os
ouvidos mas divertia os olhos, porque ao mesmo passo que ru-
favam faziam successivas pantomimas e piruetas, em que tan-
to trabalhavam os braços como as pernas.
S. Miguel de Villarinho, terra clássica de tamborileiros ha-
bilissimos, é uma aldeã que demora na margem esquerda do
rio Vizella.
Vinha depois o Dom Prior, de vara alçada, acompanhado
pelo juiz do eivei e almotacés, cuja nomeação o mesmo Prior
confirmava.
Seguia-se a communidade dos cónegos regrantes vestindo
os seus hábitos talares : batina, sobrepeliz e murça ; na cabe-
ça, barrete de clérigo.
Muito povo acompanhava este pomposo cortejo, não tanto
por gostar dos cruzios, como por gostar de uma festa de cara-
cter especial. Não era propriamente uma romaria, mas, para o
effeito de divertir, levava as mesmas voltas. O povo não deixa-
va nunca de concorer a estas apparatosas exhibições que re-
presentavam symbolicamente um direito senhorial ; não falta-
va na Palmeira, como também não faltava em S. Mamede de
Coronado quando o abbade de S. Romão de Vermoim ia ali,
com todos os seus criados, bestas, cães e gados, receber o
feudo de seie varas de linho que o parocho era obrigado a dar-
Ihe annualmente.
A feira alvoroçava-se toda para receber os cruzios, haven-
do n'esse momento uma vistosa ondulação de trajes garridos e
o LOBO DA MADRAGOA
27
pittorescos, mesclando-se as cores vivazes das carapuças, dos
lenços e dos guarda-soes n'uma espécie de arco-iris flucluante,
que ora avançava, ora retrocedia.
O Dom Prior, com toda a sua numerosa comitiva, parava
Portão da quinta benedictina da Batalha
apenas por momentos deante de cada logar de venda para al-
motaçar os géneros, pura formalidade que desempenhava rapi-
damente, e logo seguia para a quinta da Palmeira, onde esta-
va preparado o almoço, que era principesco.
Os cruzios morriam por esta diversão, que lhes proporcio-
nava um dia completo de recreio fora do mosteiro de Landim,
onde a vida era monótona e a povoação tristonha. Na Palmei-
ra, a visinhança do rio Ave tornava a paizagem graciosa, e a
feira de S. Bartholomeu chamava gente e animação.
Durante o anno havia sempre cruzios na Palmeira, uns
que se demoravam, outros que iam e vinham para fazer me-
rendolas, pescarias e caçadas. Os cónegos regrantes viviam
como fidalgos que eram ou apparentavam ser.
28 o LOBO DA MADRAGÔA
Mas, pelo S. Bartholomeu^ só ficavam em Landim os doen-
tes e os decrépitos.
De mais a mais os cruzios gostavam de ter occasião de
mostrar aos seus visinhos da margem esquerda, os bentos,
todo o seu poder senhorial no couto da Palmeira, onde o
Dom Prior enirava n'aquelle dia de vara alçada, e de os en-
surdecer com o estrondo festivo dos foguetes, morteiros e za-
bumbas.
Que, diga-se a verdade, a quinta da Batalha, comquanto
a dois passos do mosteiro de Santo Thyrso, também servia
aos benedictinos para varias folganças e recreações.
Um viajante, que no fim do século xviii percorreu o Minho,
diz que ao chegar a Santo Thyrso encontrou no caminho o co-
nstado com alguns padres, que iam fazer um magusto á quin-
ta da Batalha.
Os frades divertiam-se como podiam, mas a distracção que
eu lhes mais invejo não era a de assar castanhas ou pescar tru-
tas, coisa que facilmente posso fazer também : era o regalo das
bellas quintas, vastas e umbrosas, que eu nao tenho, nem es-
pero vir a ter.
Isto é que me desconsola perante a recordação dos frades.
A feira de S. Bartholomeu no couto da Palmeira tinha o
aspecto complicado, apezar de essencialmente agrícola, de to-
das as feiras minhotas.
Utensílios de lavoira alternavam-se com longos estendaes
de chapéus de Braga, baetas da Carriça, albardas de Pe-
nafiel. Tamancos do Porto, alguns de ponta arrebitada, pare-
ciam pequenos barcos ancorados entre extensos cães de loiça
negra do Prado. Barracas de ourives e cutileiros de Guimarães
encostavam-se ás brancas tendinhas, alfaiadas com toalhas fo-
Ihudas, onde lourejava o pão de ló de Margaride, muito fresco
e fofo. Penduradas de cabides portáteis avultavam as capas de
palha, a que lá chamam croças, e hasteados em toscos iDcnga-
leiros enfeixavam-se varapaus de ponteira metallica, que pare-
cia expedir chispas á luz do sol.
Havia arquêtas com bugigangas de barro, e até de ai-
corce, figurando cSes, assobios, corações, monstros humanos;
outras com anneis de chumbo, gaitas de caçador, apitos, na-
valhas, novellos de isca, tesouras e espelhinhos redondos.
Sobre mesas de pinho, dispostas em fieira, escalonavam-se
rumas de peças de linho, cobertores de papa, mantas tecidas de
trapo, com que se cobrem os pastores no inverno dos montes.
Na secção propriamente agrícola, exhíbíam-se as fructas
do tempo, entre elias melancias colossaes, do feitio de grandes
espheroídes d'um verde escuro, retinto. Seguíam-se as batatas,
o LOBO DA MADRAGÔA 29
as cebolas, os alhos, as hortaliças de folhas enconchadcs. De-
pois alinhavam-se os carros com pipas de vinho, sob toldos de
panno ou de ramos verdes, e, ao lado dos carros, corriam ta-
boleiros com peixe frito, bolinhos de bacalhau, broas de milho,
azeitonas cogulando tigelas de barro vidrado.
N'um recanto do couto abairrava-se a feira de gado, os bois
corpulentos, de pontas altas e abertas em parenthese ; as vac-
cas pachorrentas, de uberes dilatados, pendentes e cheios ; os
vitellos sempre inquietos e gulosos, encostando-se á mãe, a
procurar-lhe a teta ; os burros de orelha murcha, dormitando
n'uma impassibilidade resignada ; os potros felpudos, hirsutos,
foliões, tentando constantemente desembaraçar-se do cabresto;
e numerosas familias suinas em que os bacorinhos chiavam
infantilmente baralhando-se uns com os outros.
De quando em quando mulheres com bilhas de agua fresca
rompiam, cantando um pregSo sonoro, por entre a multidão
compacta.
Cegos andantes attrahiam grupos de ouvintes, que lhes es-
cutavam, attentos, a melopea chorosa.
E arrastando se no solo, como animaes disformes, homens
apoiados sobre as mãos com as pernas seccas enclavinhadas e
torcidas para o dorso, perseguiam os transeuntes pedindo es-
mola em fabordão : Lembrai-vos do pobre aleijadinho pelo amor
de Deus.
Sobre todo este confuso e revolto aspecto da feira de S.
Bartholomeu pairava n'aquelle anno uma suspeita de graves
acontecimentos, que excitava os ânimos e provocava commen-
tarios discordes.
Dizia-se á bocca pequena que os padres cruzios tinham
resolvido que os seus criados, com o auxilio de alguns valen-
tões a soldo, fossem, na presença da multidão, dar os primei-
ros golpes de camartello na pesqueira nova, para começar a
desmoronal-a mais uma vez.
Este boato fez que alguns lavradores, prudentes ou tími-
dos, abandonassem a feira, com suas mulheres e filhas, logo
depois de terem visto a chegada dos cónegos de Landim.
Outros, mais destemidos, habituados ás tremendas zara-
gatas das romarias, desejavam que o boato tivesse realisação^
e andavam de grupo em grupo recolhendo impressões e noti-
cias sobre o grande assumpto do dia.
Algumas pessoas não criam que os padres cruzios qui-
zessem arriscar-se a assistir a essa irritante desforra, que lhes
podia sahir cara.
— Porque ? perguntavam outras pessoas.
— Porque se isso acontecesse, vinha ahi todo o povo de
30 o LOBO DA MADRAGÔA
Santo Thyrso, e tomava a defesa dos frades bentos. Acabar-se-
hia o mundo aqui hoje, Deus te livre !
— Também aqui está muito povo de Landim, que defen-
deria os padres cruzios. E já se deixa vêr que se os cruzios
deitaram abaixo a pesqueira, e os bentos a mandaram pôr em
pé, os cruzios hao de querer arrazal-a outra vez.
— Mas então esta contenda não terá fim nunca mais ! Pode
lá ser !
— Homem ! isto é como na bisca lambida : carta puxa carta.
Quem melhor as tem, melhor as joga.
— O peior é que a corda quebra sempre pelo mais fraco.
Oxalá que o povo d'estes arredores não venha a pagar o que
fazem os frades. Saiba-se isto em Lisboa e. . .
N'este momento ouviu-se o tilintar dos machos de uma
liteira.
Todas as attenções se voltaram de súbito para esse lado.
Houve quem dissesse entre a multidão :
— Que novidade será esta agora?... Alguma alçada, tal-
vez . . .
— Mas sem acompanhamento de tropa!
— Quem sabe se ella não tarda ! Pode muito bem vir den-
tro da liteira o juiz e o escrivão da alçada.
— Sim, replicou um camponez chalaçando á conta de meia
canada de verdasco, que bebera pouco antes, nem os dragões
da'Beira nem a cavallaria de Chaves cabiam lá dentro.
Ondas de povo affluiram rapidamente, umas sobre outras,
frementes de curiosidade, ao encontro da liteira, que vinha de
Bougado e parou junto á quinta dos cruzios.
Este facto mais fez crescer o alvoroço popular e a suspeita
de que poderia ser justiça do Porto, que viesse por ordem de
Sebastião de Carvalho syndicar sobre os últimos acontecimen-
tos do rio Ave.
O povo abriu um largo circulo de respeito, em torno da
liteira, e viu apeiar-se um sacerdote idoso, de respeitável as-
peito, acompanhado por um mancebo imberbe, que parecia de-
ver ser ainda diácono.
Antes mesmo d'estes dois viajantes fazerem soar a sineta
do portão, dois padres cruzios vieram recebel-os com grande
cortezia.
Os camponezes interrogavam-se uns aos outros, com pers-
crutadores olhares, sobre a causa da inesperada apparição de
uma liteira, que conduzia pessoas desconhecidas.
Mas de repente houve uma voz que bradou :
— Ora espera ! Ou eu me engano muito ou o padre velho
é o Chantre da Real CoUegiada.
o LOBO DA MADRAGOA
31
E d'ahi a momentos, como se uma centelha elelrica hou-
vesse transmittido esta phrase de grupo em grupo, toda a gente
dizia na feira : E' o Chantre de Guimarães, mais o seu íámulo.
Era, effectivamente,
O priorado da Real Collegiada de Nossa Senhora da Oli-
veira da villa de Guimarães estava vago havia cinco annos, não
por falta de despacho real, mas porque o Dom Prior nomeado
não tinha ido ainda tomar posse da cadeira.
A nomeação havia recahido na pessoa de D. José de Bra-
gança, irmão bastardo de el-
rei, e inquisidor geral do Santo
Officio.
Os altos cargos ecclesiasti-
cos de Entre-Douro e Minho
estavam sendo então pingue re-
galia dos filhos naturaes dos
reis, que chamavam a si as
rendas prelaticias em que nem
os cruzios, nem os benedictinos
podiam tocar.
Um bastardo de D. Pe-
dro 11, também chamado D. José
de Bragança, fora arcebispo
primaz de Braga, e por confli-
ctos que tivera com o cabido
demorou trez annos em Gui-
marães, desde 1746 a 1749,
dando motivo com a sua pre-
sença a uma longa serie de rui-
dosas festas, cavalhadas, al-
canzias, fortilhas, escaramuças
e saraus académicos, que no-
bremente alegraram o espirito
dos vimaranenses.
Succedeu-lhe um bastardo
de el-rei D. João V, D. Gas-
par de Bragança, que, ao tempo
da nossa narrativa, estava no-
meado arcebispo, mas não ti-
nha ainda feito a sua entrada
solemne na cidade de Braga.
Outros dois bastardos do
mesmo rei ficaram sendo co-
nhecidos pela designação popu-
lar de «Meninos da Palhavã», um pacUe cruzio
32 o LOBO DA MADRAfiÔA
D. José e D. António de Bragança, e foi um d'elles, D. José,
o escolhido, como de mais longe vínhamos dizendo, para o
cargo de Dom Prior da Collegiada de Guimarães.
Em agosto de 1758 não tinha tomado posse do priorado,
nem chegou a tomal-a nunca, por causa do conflicto em que
trez annos depois veio a envolver-se com o conde de Oeiras,
sendo por este motivo desterrado para o Bussaco com seu ir-
mão D. António.
Quem agora regia a Collegiada de Guimarães, na ausên-
cia do Dpm Prior, era o Chantre, aquelle mesmo sacerdote
idoso que vimos apear-se da liteira ao portão da quinta dos
cruzios.
Não obstante as apprehensões do povo, a visita do Chan-
tre á Palmeira nada mais significava do que um acto de mera
cortezia.
Elle ia recolhendo de Bougado, onde tinha parentes, para
a sua Collegiada e, de passagem, encontrou-se com a feira
grande de S. Bartholomeu, de que se não havia lembrado se-
quer. Mas visto ser o dia da feira, e os cónegos de Landim
costumarem passar na Palmeira esse dia, apeiou-se para os
cumprimentar e seguir depois jornada a Guimarães.
O certo é que a inesperada visita do Chantre teve a vanta
gem de produzir effeitos sedativos no systema nervoso dos cria-
dos dos cruzios, e, porventura, dos próprios cruzios.
Não era na presença de tão alto dignitário da Real Colle-
giada, o primeiro depois do Dom Prior, que de novo se rom-
periam as hostilidades entre os filhos de Santo Agostinho e os
filhos de S. Bento.
A deferência do Chantre obrigava a igual cortezia por parte
dos cruzios, que effecti vãmente se mostraram amáveis e reco-
nhecidos com o seu illustre visitante offerecendo-lhe fructas e
outros refrescos.
Depois levaram-n'o a passeiar na quinta, descendo com
elle até á beira do Ave, talvez com o propósito de que sua mercê
pudesse vêr a pesqueira nova acintosamente engalanada com
flores e plantas.
O Chantre fez reparo na pesqueira florida e perguntou o
que era aquillo.
Os cruzios explicaram-lhe.
Então o Chantre disse que as origens do conflicto lhe não
eram desconhecidas, e que a Guimarães tinha chegado alguma
noticia do ultimo rompimento de hostilidades. Aconselhou os
cruzios a evitarem prudentemente a repetição de taes factos,
embora pleiteassem nos tribunaes com os benedictinos o direito
que uns ou outros pudessem ter sobre as aguas do rio Ave.
o LOBO DA MADRAGÔA 33
A occasião, acrescentou sua mercê, não era a mais própria
para desencadear rivalidades monásticas, que poderiam ter ecco
na corte e irrilal-a.
Aqui alludia o Chantre, cautelosamente, ao poderio poli-
tico do conde de Oeiras ; por discreto euphemismo empregava
a palavra «corte».
E continuou dizendo :
— O paiz, especialmente a capital, passou ha poucos an-
nos por uma horrorosa catastrophe, que enlutou todos os co-
rações portuguezes. Precisa restabelecer-se d'essa profunda
commoção; ainda está doente de magua A politica parece não
prometter grandes folgas, nem demasiados ócios a certas cor-
porações... Tudo, pois, aconselha prudência ás corporações
e aos indivíduos.
N'este ponto alludia o Chantre, também cautelosamente,
aos padres jesuítas, que no anno anterior haviam sido expul-
sos do Paço por Sebastião de Carvalho.
O Chantre ainda acrescentou que procuraria avistar-se
proximamente com algum dignitário do mosteiro de Santo
Thyrso para lhe dar conselho idêntico.
— Não fiar em criados, concluiu o Chantre, que são na
terra os nossos peiores inimigos, porque estão de portas a
dentro e perscrutam todas as nossas paixões para exploral-as
em seu proveito.
Com vontade ou sem ella, os cruzios tiveram que mostrar-
se agradecidos por esta pacificadora doutrinação do Chantre, e
prometteram a sua mercê ter a «maior dose de prudência pos-
sível».
Não estranhe o leitor que os padres cruzios de Landim
tratassem por «vossa mercê» o Chantre, porque os cónegos da
Collegiada de Guimarães apenas dez annos depois receberam
o tratamento de senhoria.
E' certo que o Chantre estava substituindo o Dom Prior,
mas este dignitário, com ser o primeiro da Collegiada, apenas
desde 1823 tem jus a ser tratado por excellencia.
E, a respeito de tratamentos, queremos dar uma rápida in-
formação genérica, para que o leitor não estranhe também os
que vir referidos ás diversas personagens d'este romance.
Segundo uma lei extravagante de Filippe II, só tinham «ex-
cellencia» os filhos dos infantes, e duques de Bragança. Os ou-
tros fidalgos, ainda que fossem titulares, e os bispos, eram tra-
tados por «senhoria».
D. João V modificou esta lei por outra de 29 de janeiro de
1739, em virtude da qual era dado a todos os grandes dignitá-
rios, seculares ou ecclesiasticos, o tratamento de «excellencia.»
3
34 o LOBO DA MADRAGOA
De visconde para baixo usava-se a «senhoria,» extensiva
também aos priores das ordens militares e aos moços do Paço.
D. José, por um alvará de 1759, mandou tratar por «ex-
cellencia» os gentis-homens da sua real camará, ainda que não
fossem titulados, e os mestres de campo generaes; por «senho-
ria» todos os ministros que tivessem o titulo de conselheiros, e
os sargentos-móres de batalha.
Comtudo nenhuma d'estas leis pôde obstar ao abuso da
nobilitação pelo tratamento.
A pragmática apenas era rigorosamente observada nas gra-
duações hierarchicas dentro de certas classes, especialmente na
corte, no exercito, e nas ordens monásticas.
Fora d'estas categorias sociaes, rapidamente alastrou a in-
fracção da pragmática.
A breve trecho, quando não se exerciam actos officiaes,
dava-se abusivamente ((senhoria» a pessoas que se recommen-
davam por sua origem, posses ou valimento, embora legal-
mente não devessem receber senão a vulgarissima — «vossa
mercê», tão lusitanamente democrática.
Este desmando levou um poeta, Paulino Cabral, com quem
ainda havemos de travar conhecimento no curso d'esta narra-
tiva, a dizer ironicamente:
Tudo está caro: só era nossos dias,
Graças ao ceu ! que temos em bom preço
Os tremoços, o arroz, e as «Senhorias».
Quanto ás damas, foi geral o abuso de tratal-as por «se-
nhoria», costume que o mesmo poeta censurou dizendo:
Só não soÉFro a rasgada corlezia,
Que faz que uma villã se condecora,
Chupando «Dom», lambendo «Senhoria».
A titulo de esclarecimento, basta isto.
A' despedida, vieram os cruzios acompanhar os dois visi-
tantes até á liteira. Então, n'uma volta do arvoredo, viu o Chan-
tre um rapaz a conversar com uma rapariga, e reconheceu-o^
postoque o rapaz procurasse esquivar-se na sombra.
Voltou-se o Chantre e disse para um dos cruzios:
— Então está agora aqui este turbulento e errante «Mafar-
rico»?! Eufazia-o mais longe, lá para Traz-os-Montes. Boas ha
de ter feito em verdade. . .
O cruzio respondeu- lhe:
— E' hospede do nosso padre Dom Joaquim Mariz, e
amigo e companheiro de seu sobrinho Jorge, que na Palmeira
o LOBO DA MADRAGÔA 35
tem estado a convalescer de uma grave enfermidade. Até hoje
não temos a menor razão de queixa d'esse mancebo.
O Chantre, sorrindo, disse inclinado ao ouvido do cruzio:
— Ninguém em Guimarães tem saudades d'elle. Antes es-
teja aqui do que lá; e antes estivesse mais longe do que na
Palmeira. O tempo dirá. . .
A rapariga com quem o «Mafarrico» estava conversando
na feira era a Therezinha de Villalva.
Pouco depois dizia-lhe o «Mafarrico»:
— Que desastrada idéa teve o Chantre de passar hoje por
aqui ! Foi o diabo elle vêr-me. . .
III
Encontro do Oeeidente eom o Oriente
Em 1729 vivia na rua de Santa Rosa de Lima, em Gui-
marães, uma familia burgueza, cujo chefe, Diogo Ferreira da
Silva, negociava em productos de ourivesaria,
Este individuo era commissario de um grupo de lavrantes
vimaranenses e, n'essa qualidade, concorria a todas as feiras
grandes do Minho.
Assim, á custa de incessantes trabalhos e incommodos,
conseguia sustentar com decência a sua familia, aliás pouco
numerosa.
Era casado com Jeronyma Lobo, a qual lhe dera apenas
um filho, de nome António, nascido no anno seguinte. (*)
Jeronyma nasceu em Villa Real de Traz-os-Montes, onde
foi honestamente educada por um fidalgo seu padrinho, que
morreu pobre e era muito affeiçoado ao único filho que ella ti-
vera, o que deu causa á confusão de se dizer, sem razão algu-
ma, que o pequeno António era filho illegitimo do fidalgo. (*)
(1) O nome do pae de António Lobo, bera como o da mãe, foi mencio-
nado no prefacio ás «Poesias» do filho. O prefacio foi escripto pelo conscien-
cioso investigador Innocencio Francisco da Silva.
(2) Camillo Castello Branco, «Noites de insomnia», n.° 2, pag. 82; «Cur-
so de litt. port.», pag. 339.
o LOBO DA MADRAGÔA 37
Diogo Ferreira da Silva, geralmente coniiecido Entre-
Douro-e-Minho por Diogo Ferreira, gosava de bons créditos
como homem honrado, bondoso e trabalhador.
Os seus freguezes gostavam muito d'elle, que nao se mos-
trava nunca aborrecido de os aturar.
Sempre que regressava a Guimarães ia ajoujado deencom-
mendas, que elle desempenhava com a maior pontualidade e
exactidão.
As raparigas minhotas, quando queriam comprar ouro,
não se entendiam senão com Diogo Ferreira, que as attendia
com infinita paciência, mostrando-lhes quantos anneis, arre-
cadas e cordões levava comsigo. Algumas vezes succedia que
as impertinentes cachopas, não Ines agradando nenhum d'es-
ses objectos depois de demoradamente os terem examinado e
apreçado, pediam ao ourives que lhes mandasse fazer em Gui-
marães um annel de tal feitio, um cordão de tal peso, nm «co-
raç&o> de taes dimensões e lavores.
Elle tomava nota e, na feira seguinte, voltava com os obje-
ctos encommendados, consentindo, umas vezes por outras, que
lhe fossem pagos em prestações.
Teve freguezas que lhe encommendaram arrecadas para o
dia do casamento, e que só acabaram de lh'as pagar quando
já tinham filhos crescidos.
Outras caloteavam- n'o por má fé, por terem cabido na po-
breza ou por se haverem ausentado para longes terras.
Diogo Ferreira não se enfurecia, nem mudava de systema.
Dizia elle que se o commercio não fosse sujeito a falhas e re-
vezes, todo o mundo quereria ser commerciante. Para elle a
alma do negocio era a confiança mutua dos contratantes ; a pa-
lavra valia dinheiro. Se havia pessoas que trahiam essa con-
fiança, e faltavam á sua palavra, isso não devia provar contra
os honrados, mas apenas contra os caloteiros, que felizmente
eram em menor numero e que uma vez experimentados nunca
mais eram cridos. Se ha — dizia elle — quem falsifique a pala-
vra de honra, também ha quem falsifique o dinheiro, e nem
por isso ninguém deixa de o querer receber.
Esta argumentação aquilatava a bondade de Diogo Ferrei-
ra, que era homem para, depois de soffrer qualquer contrarie-
dade commercial, recomeçar a sua lida serenamente, sem ódios,
nem reservas de espécie alguma.
As casas nobres de Guimarães chamavam-n'o pouco, por-
que elle era um ourives do povo, não só pela qualidade dos
objectos que vendia, como pela própria apresentação burgueza
da sua pessoa e pelo seu trato bonacheirão. Se alguma vez en-
trava n'essas casas, onde a tradição do sangue wisigothico ah-
38 o LOBO DA MADRAGÔA
mentava a prosápia de illustres famílias, não era para vender
aos amos, mas aos criados.
Onde melhor se evidenciava ainda a boa Índole de Diogo
Ferreira era dentro da sua própria casa.
A mulher, Jeronyma Lobo, creatura franzina, sempre mais
ou menos adoentada depois do laborioso parto do seu unigé-
nito, vivia rodeada de mimos e cuidados que lhe prodigalisava
o marido.
— Eu não quero que te falte nada, dizia-lhe a toda a hora
Diogo Ferreira. Para te ter estimada é que eu trabalho sem-
pre. Tu podes menos que eu, por isso sou eu que devo traba-
lhar mais. O casamento é uma sociedade de auxilio mutuo :
quando um dos sócios fraqueja, o outro deve amparal-o. Go-
me, dorme, paseia, olha pelo rapaz e não penses em mais na-
da. Aqui ha um só para trabalhar : sou eu.
Esta doutrina peccava por demasiadamente affectuosa,
porque o filho, ouvindo-a constantemente, ia-a tomando ao pé
da lettra, o que constituía um perigo, tanto maior quanto eram
especiaes as circumstancias em que se organisára a família da
rua de Santa Rosa de Lima.
O pae andava quasí sempre ausente, em grandes cami-
nhadas para feiras distantes. A mãe, fraca e doente, concen-
trava-se enternecida no amor ao filho, sempre tolerante e indul-
gente com elle. O rapaz folgava protegido de uma parte pela
doutrina paterna «Aqui ha um só para trabalhar», e de outra
parte pela excessiva ternura da mãe, que procurava adivinhar-
Ihe todos os pensamentos para satisfnzer-lh'os carinhosamente.
Pôde dizer-se que a infância de António Lobo de Carvalho
decorreu na rua, ás soltas, como um novilho na lezíria. Se en-
trava em casa era para comer, para que a mãe lhe concertasse o
fato rasgado em frequentes bulhas com outros rapazes ou para
que lhe desse dinheiro que elle ia applícar em gulodices, espe-
cialmente marmelada e rebuçados.
O pequeno fez-se brigão, altaneiro, tinha respostas atrevi-
das, picantes de salgada graça, com que ás vezes offendía os
visinhos, á conta de repetidos conflictos com os filhos d'elles.
Queixava-se a visinhança, e Jeronyma Lobo respondia dan-
do-lhe satisfação :
— Desculpem. Isto é sarampo da idade, e eu não tenho
outro filho. Por causa d'elle fiquei um pellém, e não me quei-
xo. Quando elle causar algum prejuízo, eu o pagarei. Com os
visinhos não quero questões, nem eu nem o meu Diogo.
Os visinhos, está claro, censuravam-n'a severamente, logo
que ella voltava costas :
— Anda o pobre do homem a trabalhar como um mouro,
o LOBO DA MADRAGÔA 39
para esta creatura deixar ir a casa pela agua abaixo, babando-
se a olhar para o filho, que se está fazendo um mariolSo de
marca, e que ella amimalha com paparicos, meu santo Antoni-
nho onde te porei 1 Forte lesma 1
A's vezes perguntava alguém ao rapaz :
— Então que vida queres tu seguir?
E elle respondia sorrindo :
— Não sei.
— Não sabes?! Mas deves saber que precisas de traba-
lhar.
— O meu pae diz que lá em casa quem trabalha é só elle.
— Tão tolo és tu como o teu pae.
O padre frei Salvador da Guia, guardião do convento de
S. Francisco e padrinho de António, apertava com o rapaz
para que estudasse, por lhe reconhecer agudeza de entendi-
mento. Quando o afilhado o ia visitar, por ordem do pai, frei
Salvador reprehendia-o acremente pela sua incúria e desleixo,
no que muitas vezes era secundado por outros franciscanos
que, por deferência ao guardião, procuravam attrahir o peque-
no ás aulas do convento.
António Lobo fugia dos frades, azoinado, sedento do ar e
da luz da rua, aborrecido do padrinho e dos outros religiosos,
negros no habito e caliginosos na severidade das reprimendas.
Aos quinze annos não tinha escolhido ainda profissão ne-
nhuma, e apenas sabia lôr, escrever e contar, mais por intuição
penetrante, que por applicação ao estudo.
Uma vez perguntou-lhe o pae com a sua habitual brandura
se definitivamente resolvia não estudar.
— A's aulas do convento de S. Francisco, respondeu o ra-
paz, não quero ir. Mas se vossemecê faz gosto, mande-me para
Coimbra.
O pai pegou-lhe na palavra, e António Lobo partiu com
dinheiro de sobra.
Esteve seis mezes em Coimbra, onde frequentou, irregu-
larmente, as cadeiras de latim e francez no Collegio das Artes.
Foi ahi seu condiscípulo um rapaz chamado João Dias
Talaia, que teremos occasião de conhecer mais de perto.
António Lobo voltou a Guimarães, dizendo ao pae que não
podia entender-se com os jesuítas nem atural-os.
O pae não o contrariou e a mãe achou-lhe graça.
António Lobo, comquanto rebelde a uma regular applica-
ção litteraria, revelava gosto pelas lettras e sobretudo raras
faculdades de improvisação poética. Glosava motes que os ou-
tros rapazes lhe davam, e escrevia cartas de namoro a pedido
dos interessados que lh'as pagavam em metal, quando as não
40 o LOBO DA MADRAGÔA
escrevia de conta própria, com a mira posta em diíTerente gé-
nero de recompensa.
Madrugaram em António Lobo os instinctos amorosos, de
par com a veia poética, mas é de notar que, na poesia e no
amor, não propendia aos arrebatamentos lyricos, aliás próprios
da sua edade^ nem aos devaneios bucólicos, peculiares aos
poetas do Minho, antes se inclinava para a malicia gaiata, para
a jocosidade satyrica, e para o epigramma pessoalmente aggres-
sivo.
A sua lyra era quasi sempre cáustica ou desgrenhada, e
os seus companheiros predilectos pertenciam ao numero dos
rapazes que, como elle, não queriam soffrer nenhum jugo,
principalmente o do trabalho.
Pouco depois de António Lobo completar dezesete annos,
morreu-lhe a mãe. Este acontecimento foi-lhe mais prejudicial
do que seria licito suppor em face da tolerância nimiamente ca-
rinhosa com que ella o amimava, comprazendo com todas as suas
prodigalidades e caprichos. (*)
Durante as frequentes ausências de Diogo Ferreira, o ra-
paz não tinha familia que o prendesse, ainda que por pouco tempo,
á casa paterna. Fizera-se mais vadio e tunante, mais altaneiro
e brigão O padrinho começara a julgal-o perdido, e mostrava-se
magoado da hostilidade que, em estreias poéticas já vulgarisa-
das entre o povo, o seu afilhado manifestava contra todos os
padres, sem poupar sequer a ordem de S. Francisco.
Diogo Ferreira ficou moralmente abalado com a morte da
mulher. As longas ausências d'elle tinham contribuído para lhe
tornar a casa e a familia mais agradáveis no regresso. Achava
sensações novas, quando voltava. A mulher contava-lhe alguma
diabrura do filho e elle, sempre bonacheirão, sorria dizendo :
«Tem o demo no corpo» e concluía desculpando : «E' da
idade; ha de pagar o seu tributo.» Farto de viver por estala-
gens do Minho, chegava a achar um patriarchal encanto em
sentar-se á sua mesa e dormir no seu leito. Não reparava em
que o amanho da casa fosse um pouco descuidado ; era a sua
casa, boa ou má, e tanto bastava para lhe agradar.
Quando Jeronyma Lobo falleceu, o ourives de Guimarães
(') «A mãe do poeta (António Lobo) era remediada de bens de fortuna,
e quanto tinha quanto deu ao estouvado filho, que nunca procurou modo de
vida.» Camillo Castello Branco, «Noites de insomnia,» n.° 2, pag. 84. No
«Curso de litt. port.», pag. 341, suppõe Camillo que a mãe de Lobo viveu
mais tempo, e amparava o filho com uma mezada. Isto é tão infundado como
dizer que elle «não bajulou os grandes, à imitação dos vates do seu tempo.»
As suas poesias provam o contrario, salva uma ou outra excepção.
o LOBO DA MA DRAGO A
41
sentiu o desmoronar da velhice. Até ahi não tinha pensado
n'isso; trabalhara sempre sem dar peso á noção do tempo.
Mas agora a morte entrara no seu lar e levara-lhe a compa-
nheira de muitos annos : a sua vida d'elle já não podia ser
longa, nem inteiramente feliz. Principiava a ruina e Diogo Fer-
reira, ouvindo a voz da experiência, sabia que o luto chama
o luto; por isso é que, na vida das famílias, os acontecimentos
tristes vem ás series.
Sentindo a perda da mulher, começou a amar ainda mais
o filho. A sua existência tinha-se firmado em dois pontos de
Castello do conde D. Henrique em Guimarães
apoio ; como lhe faltasse um, reforçava o outro. E uma certa
cobardia, que até então não experimentara nunca, entibiou o
seu animo para as grandes jornadas e para as grandes ausên-
cias. Deixou de concorrer ás feiras distantes e apenas ia ás
mais próximas. Mas este novo teor de vida não lhe trouxe pre-
juisps graves, porque as raparigas do Alto Minho faziam-lhe
encommendas de ouro pelo correio, mandando dizer o que
queriam e como queriam, questão de feitio, questão de peso.
È ás vezes até, depois de muitas explicações, mandavam tos-
cos desenhos de corações e arrecadas, que elle entendia opti-
mamente, e os lavrantes também.
Tomou um recoveiro de confiança que ia levar as encom-
mendas e receber o dinheiro. E assim, sahindo apenas para
terras visinhas, conseguiu conservar a sua freguezia e equili-
brar o seu negocio.
Tinha creado bom nome, e continuava a viver á sombra
d'elle. Dizia o povo de todo o Minho: «Não ha melhor ourives
42 o LOBO DA MADRAGÒA
que o Diogo de Guimarães.» Podiam apparecer nas feiras novos
ourives, talvez com melhor sortimento, mas Diogo Ferreira
não esquecia nunca.
Juntara um modesto pecúlio de dez mil cruzados, á foi-ça
de economias, e de mau passadio nas estalagens do Minho.
Dizia elle que todo o chefe de familia deve attender mais ao
futuro que ao presente, porque do presente é elle próprio uma
garantia, e o futuro só a Deus pertence. De mais a mais lem-
brava-se de que a mulher era fraca, doente, e não podia traba-
lhar; de que o filho era muito novo ainda para tomar a vida a
serio. Por isso tinha elle trabalhado sempre, como um negro,
só elle, sempre elle, unicamente elle.
Por morte de Jeronyma Lobo, o juiz dos orphãos de Gui-
marães mandou, nos termos da «Ordenação», notificar a Diogo
Ferreira a obrigação de proceder a inventario de todos os bens
moveis e de raiz, visto que o filho era menor de 25 annos.
O velho, que nunca tratara negócios de justiça, assus-
tou-se com a perspectiva de ter que se aproximar d'ella,
para inventariar, além de o desgostar a idéa de vir a saber-se
a quanto montavam os seus haveres, o que constituía um deli-
cioso segredo da sua alma.
Entendia Diogo Ferreira que d'esse modo se quebraria todo
o encanto da agradável surpreza posthuma que elle reservava
ao filho, e também receiou algum tanto que o rapaz se desvai-
rasse por caminhos ruinosos quando soubesse que havia de
herdar dez mil cruzados.
A fim de evitar a acção da justiça, e por saber de outiva
que o casamento importava a emancipação legal, chegou a per-
guntar ao filho se queria casar.
António Lobo riu muito d'esta pergunta ingénua do pae.
— Eu casar! Deus me livre! E' muito cedo, e parece-me
que não tenho inclinação para esse estado.
— Que é o mais agradável a Deus, replicou o velho, por-
que a egreja o abençoa e protege.
E o rapaz replicou continuando a sorrir ironicamente:
— A benção lança-m'a vossemecê todos os dias, e o meu
padrinho também, quando o vou visitar.
— O que bem poucas vezes é. Mas emfim, rapaz, se não
tens por ora inclinação para casar, não cases. O casamento e
a mortalha no céo se talha. Será quando Deus quizer.
Depois Diogo Ferreira explicou ao filho o que pôde explicar-
Ihe sobre a sua repugnância em entender-se com o juiz e es-
crivão dos orphãos por causa do inventario.
— Que n'este negocio, disse elle, ha ainda uma questão
mais grave.
o LOBO DA MADRAGÔA 43
— Qual é? perguntou António Lobo.
— A da minha morte, se tu ficares de menor idade. Ha
de haver curadoria de pessoa estranha, visto que nc\o temos
parentes nenhuns.
— Vossemecê está ainda muito rijo e sao.
Isto disse António Lobo um pouco preoceupado, subita-
mente, com a idéa de uma tutella, idéa que por ser nova na
sua vida lhe desagradava, nem de mais a mais quadrava á sua
Índole e educação.
E lembrou-se nSo só de que a um rapaz seu amigo, orphao
de pae e mãe, tinha o tutor obrigado a aprender um officio me-
cânico, mas também de que se o tutor fosse o seu padrinho,
frei Salvador da Guia, teria de viver uma vida muito aper-
reada, n'um regimen disciplinarmente severo.
N'isto se enganava António Lobo porque, segundo o di-
reito das aOrdenações», os religiosos não podiam ser tutores
de orphãos.
Diogo Ferreira contestou dizendo :
— Velho é que eu estou, e quem está velho está mais pró-
ximo da morte que da vida.
Continuaram a conversar sobre o assumpto e combinaram
por fim ir consultar um lettrado que morava na rua de Payo
Galvão.
Foram. O jurisconsulto disse a Diogo Ferreira que se elle
queria poupar-se a trabalhos de justiça e n'esse mesmo sentido
dispor o futuro, havia um meio a seguir, porque as «Ordena-
ções do Reino» eram muitas vezes como a mordedura do cão,
que se cura com o pêllo do mesmo cão. Também havia pêllo
curativo nas «Ordenações», e vinha a ser a faculdade de impe-
trar carta de «supplimento de idade, que commiimmente se cha-
ma de emancipação.
E acrescentou doutoralmente, de cór como um papagaio:
— «Ordenações Filippinas», livro 3.°, titulo 9.°, paragra-
pho 3.°
O conselho sorriu a António Lobo, e não desagradou ao
pae por ser remédio radical.
Mas o lettrado aguou algum tanto esta boa impressão
acrescentando :
— Ora agora, vossemecê, sr. Diogo, verá se lhe convém ou
não emancipar seu filho. Que idade tem elle?
— Vae em dezoito annos.
— Uma creança ! E tenho ouvido dizer que é um pouco tur-
bulento. Será assim, meu rapaz? E também que faz versos de
mal dizer?
António Lobo illudiu a pergunta, replicando:
o LOBO DA MADRAGOA
— Versos faço eu, sr. doutor, que tenho para isso alguma
queda, mas os versos nBo são delictos.
— Rapazes! rapazes! exclamou bondosamente Diogo Fer-
reira.
— Que eu não tenho nada com isso, continuou o lettrado.
Expuz os termos da questão, que foi o que vossemecê, sr. Dio-
go, me pediu. Agora o resto é comsigo ; procederá como enten-
der e quizer.
O velho esteve algum tempo calado, instantes apenas, e
depois disse :
— Olhe, sr. doutor, a boa ou má cabeça nasce com as pes-
soas, tanto importa que ellas se governem ou desgovernem ao
tarde como ao cedo. O meu íilho ha de ser o que estiver escri-
pto no seu destino. O que eu lhe deixo, é d'elle, e só d'elle.
Pouco é, mas se o gastar depressa, peior para elle, que ficará
sem nada. Inventario por morte da mSe, inventario pela minha
morte, que nfto pôde vir longe, escrivão no caso, juiz a assi-
gnar feitos, e contas de tutor... nada! é muita calamidade
junta. Prefiro emancipar o rapaz, e já. Emquanto eu fôr vivo
irei ao leme, que elle ha de attender-me e respeitar-me, porque
sou seu pae. Depois de eu fechar o olho, se o rapaz naufragar,
que Deus Nosso Senhor lhe acuda, porque eu já nSo poderei.
Ficou pois assente requerer carta de emancipação para
obstar a presentes e futuras formalidades judiciaes.
O que é certo é que Diogo Ferreira não teve razão para
arrepender-se durante os dezesete mezes que ainda viveu.
Um dia, ao regressar de uma feira pouco distante, a de
Famalicão, como apanhasse um resfriamento no caminho, foi
atacado de hermeplegia.
António Lobo acudiu-lhe solicitamente, chamou o melhor
cirurgião de Guimarães, e foi ao convento de S. Francisco pe-
dir a frei Salvador da Guia que lhe indicasse um homem bom
para servir de enfermeiro ao pae.
Não deixava, é certo, de ter as suas rapaziadas, de andar
por fora grande parte do dia e da noite, mas quando chegava a
casa rodeiava o pae de attenções e caricias.
Diogo Ferreira mostrava-se satisfeito com o procedimento
do filho e, se algum visinho lhe notava que António Lobo o
acompanhasse pouco, respondia articulando algumas palavras
com difíiculdade :
— Eile não é uma menina que não possa sahir á rua. Tem
os seus divertimentos de rapaz, e isso é próprio da idade. Mas
não me falta com cuidados, e arranjou-me um bom enfermeiro.
Quer que lhe diga uma cousa? Os rapazes estróinas são os de
melhor coração. Dos moscas-mortas não gostei nunca. Pare-
o LOBO DA MADRAGÒA 45
cem-se com os gatos. Cuida a gente que estão a dormir e elles
de repente dão um salto para arranhar.
Contente do procedimento do filho, tinha sempre a gaveta
aberta.
Dizia-lhe muitas vezes :
— Rapaz! queres dinheiro?
Um dia, em que António Lobo se demorou a afagal-o,
Diogo Ferreira fez-lhe esta confidencia :
— Temos estado a gastar os meus lucros dos últimos tem-
pos. Mas não te afflijas por isso. Eu não devo nada a ninguém,
e tenho ali, no fundo da arca, uns dez mil cruzados, que para
ti hão de ser. Vê se os poupas, que sempre é bom contar a
gente com algum pé de meia para o que der e vier.
António Lobo não tinha tido prodigalidades de dinheiro.
Dava-se a amores fáceis e baratos. A vida de um rapaz em
Guimarães era pouco dispendiosa, porque as raparigas vimara-
nenses não alimentavam ambições exageradas. De mais a mais
o filho do ourives dispunha de recursos de espirito, que enfei-
tiçam as mulheres, ainda que sejam broncas : tinha graça, ma-
ledicência e audácia. Por isso a fortuna o ajudava. E ainda por
cima era valente, possante como lá se diz, circumstancia que as
mulheres do campo apreciam grandemente, porque^ sendo ellas
mesmas muito fortes e robustas, respeitam a superioridade do
homem que o fôr ainda mais do que ellas.
Havia no caracter d'este rapaz estróina alguma coisa que,
effectivamente, inspira^C^a sympathia. Era nobre com as rapari-
gas que se lhe entregavam : não lhes fazia falsas promessas
para conquistal-as.
As solicitações galantes de António Lobo não envolviam
nunca a responsabilidade de um compromisso ou de um per-
júrio.
Nenhuma cachopa de Guimarães podia dizer que elle lhe
promettesse casamento e que negasse a promessa.
Nem jamais se ouviu contar que o filho do ourives inves-
tisse com a virtude para ter o mau prazer de desfolhal-a bru-
talmente. «Eu sou como os mendigos, dizia elle com jovial
franqueza : colho no caminho as uvas que toda a gente pôde
colher por estarem baixas. As altas deixo-as em paz, e vou
andando.»
Quando alguém ia dizer a Diogo Ferreira que o filho fazia
vida de conquistador, o ourives replicava com bonhomia :
— Ou as cachopas são muito doudas ou o rapaz é muito
feliz, porque até agora nenhuma se me queixou d'elle. E se ellas
não se queixam, que restituição tem elle a pagar? Case-se
muito embora quando quizer, que eu até já uma vez lhe fallei
46
o LOBO DA MADRAGOA
n'isso, mas o rapaz é como os pássaros : pousa aqui, canta
acolá, e bate as azas. As raparigas de Guimarães não ouviam
isto, mas, ainda que o ouvissem, não teriam que responder.
Pôde ser pouco lisonjeiro para a memoria d'ellas, mas é
verdade e justiça.
Pousa aqui, canta acolá, dissera Diogo Ferreira, e uma
Eeal CoUeadada da Oliveira em Guimarães
occasião chegou em que o filho do ourives deixou desgostosas
as suas patrícias vimaranenses, justamente pela inconstância
do pouso e do canto.
Passou em Guimarães, hospedando se n'uma estalagem do
Campo do Toural, uma rapariga que, posto vestisse á europea,
parecia chineza : era pequenina, tinha os olhos talhados em
amêndoa, e uma pallidez docemente mongolica.
o LOBO DA MADRAGÔA 47
Tão estranha apparição deu rebate em toda a villa, des-
pertando, especialmente, a curiosidade dos rapazes mais avan-
tajados em conquistas amorosas.
A rapariga viajava só e o povo, logo que a viu, começou a
dizer que era uma «china».
O seu sorriso um pouco provocante denunciava facilidade
de costumes, e o facto de viajar sósinha auctorisava a julgar
que a denuncia do sorriso era verdadeira e calculada.
Os fidalgos de Guimarães, alvoroçados com esta apparição
picante, começaram a fazer curvetear os seus cavallos deante
da modesta estalagem do Campo do Toural, para attrahir a
«chineza» á janella.
António Lobo viu isto e sentiu-se mordido na sua vaidade
de conquistador burguez.
Emquanto os fidalgos iam galanteando da rua, resolveu
elle, audazmente, enfiar pela escada acima e dirigir-se á mys-
teriosa desconhecida.
A sua boa fortuna no amor não lhe falhou ainda esta vez,
porque a «chineza», que estava morta por encontrar um homem
mais audaz que os outros, recebeu-o amavelmente.
Sem o menor rebuço contou a António Lobo a sua vida.
Tinha nascido em Cantão, onde era «tancareira», isto é,
tripulante de «tancá», pequeno barco de bambu, muito leve,
que as tripulações, quasi sempre femininas, tiram facilmente da
agua, trazendo -o ás costas para terra. De Cantão levara- a para
Macau um criado de António José Telles da Silva, capitão ge-
ral d'esta colónia portugueza.
António Lobo não conhecia os costumes de Cantão e sup-
poz que «tancareira» era pouco mais ou menos a romanesca
gondoleira de Veneza, cantada pelos poetas.
Ora a «tancareira» é por via de regra uma creatura de cos-
tumes destragados, solta de lingua, que pragueja, que berra, que
esbofetea as outras se lhe querem disputar algum passageiro.
Esta chamava-se Min, o nome mais curto de que eu tenho
conhecimento em mulher chineza.
O criado do capitão geral era natural de Chaves, e emquanto
estivera em Macau sempre a tratara com muito carinho, talvez
pela razão de não poder encontrar melhor companheira n'uma
terra de mulheres feias.
Muitas vezes lhe promettera trazel-a comsigo para Chaves,
quando o seu amo recolhesse ao reino.
Succedeu, porém, que Telles da Silva, tendo querido re-
pellir o jugo chinez e fazer frente ás exigências dos mandarins,
foi victima da sua coragem patriótica, porque, em vez de voltar
á metrópole, teve que retirar-se para Goa sob custodia.
48 o LOBO DA MADRAGÔA.
Desgostoso, despediu todos os criados e ficou na índia,
abatido de animo, á espera que se desfizessem os enredos que
o tingiam apeado.
O seu criado de Chaves embarcou para Portugal e trouxe
comsigo a chineza, como lhe havia promettido.
Mas pouco depois de ter chegado a Chaves reatou amores
com uma patricia que tinha namoriscado antes de ir para Ma-
cau, e poz a chineza na rua, abandonando-a em terra estranha,
sem recursos para repatriar-se.
Ella mettera-se ao caminho, perseguida pelas vaias das
mulheres de Chaves, e ali estava em Guimarães de passagem
para o Porto, onde em ultimo caso procuraria agenciar modo
de embarcar para Macau.
E chorava a sua desgraça, tão longe da pátria, n'um paiz
onde ninguém a conhecia e onde provavelmente não encontra-
ria protecção alguma.
António Lobo, antegostando o prazer de uma conquista
anormal, deante de uma mulher que representava para elle um
typo completamente novo, uma aventureira do Oriente, flor da
raça mongolica transportada ás regiões occidentaes, e n'ellas
abandonada e desprotegida, sentiu exaltar-se a phantasia e
commover-se o coração.
Prometteu á chineza aífectuoso amparo e viu-a então sorrir
depois de ter chorado, coisa encantadora de novidade para elle,
que não conhecia senão os sorrisos das mulheres de Guimarães,
tão alegres no amor que pareciam rebeldes ás lagrimas.
O que é certo é que Min tinha o coração cheio de ódio e
de fel contra todos os homens que encontrava em Portugal.
Em geral os chinezes detestam os extrangeiros, a que chamam
«fáncuai», diabos, e ella tinha razões especiaes para aborrecer
os portuguezes, raça a que o seu pérfido amante pertencia. O
que Min procurava era um homem no qual pudesse cevar a
vingança do desamparo em que, muito longe da pátria, se
encontrava agora.
Essa victima apparecera-lhe, finalmente: era António Lobo,
uma creança, menor de vinte annos, e de imaginação exaltada.
Elle viu n'eila apenas a filha de um vasto império remoto,
com todos os caracteres de uma raça differente da sua ; a crea-
tura que lhe devia revelar mysterios inéditos das intimidades
amorosas do Oriente, e tallar-lhe das tradições poéticas da gruta
de Macau, onde Camões compusera muitas e sublimes estan-
cias dos «Lusíadas».
De mais a mais António Lobo sentiu-se grandemente lison-
jeado de ter captado as boas graças da chineza primeiro que
todos os fidalgos de Guimarães, netos dos godos.
o LOBO DA MADRAGÒA 49
Por sua vez contou elle a Min o pouco que da sua histo-
ria havia a contar : que já nâo tinha mãe, que o pae estava
doente, e que possuía alguns bens de fortuna, achando-se elle
legalmente emancipado.
Este programma era sobremodo convidativo para uma
barqueira de Cantão, que desejava encontrar um portuguez em
quem pudesse vingar- se de outro.
Fácil foi, pois, a conquista e a principio muito inebriante
para o moço vimaranense.
Min continuou na estalagem do Campo do Toural guar-
dada á vista por António Lobo como por um dragão rábido,
que defendesse a integridade de um precioso achado.
Elle apenas fazia algumas fugidas para ir ver o pae, como
costumava, e logo depois voltava para junto da chineza, a ou-
vir-lhe contar historias do seu paiz, a que achava muita graça.
O filho do ourives cuidou morrer a rir quando ella lhe
gabou os melhores petiscos culinários do seu paiz, taes como
caranguejo com ovos e costeletas de cão de lingua preta com
molho de óleo de ricino.
E já não podia aguentar as lagrimas que o riso lhe provo-
cava quando ella lhe disse que os seus patrícios comiam todos
esses saborosos pitéos com o auxilio de dois pausinhos, que
serviam de garfo, colher e faca.
Ao cabo de vinte e tantos dias de idillio chinez, António
Lobo voltou muito alvoroçado á estalagem para dizer a Min
que o pae tivera novo ataque de paralysia, e que estava em
perigo de vida.
A «tancareira» sentiu um intimo prazer, porque se apro-
ximava a hora da realisação do seu ideal. Mas appárentou
profunda magua, e disse a António Lobo que corresse para
junto do pae.
Elle assim fez.
Dois dias depois morria o honrado Diogo Ferreira, chris-
tãmente tranquillo, e contente de ver ao pé de si o filho que-
rido.
A chineza entrou na camará ardente e pôde facilmente cho-
rar junto ao cadáver de um homem que ella nunca tinha vis-
to.. . mais vivo.
IV
Tpiampho astaeioso do Oriente
Uns quinze dias depois, António Lobo, fascinado pela se-
reia de Cantão, ausentou-se de Guimarães com ella.
Este caso dera muito que scismar, especialmente ás rapa-
rigas vimaranenses, que não chegavam a comprehender como
um rapaz de bom gosto (diziam ellas, modéstia á parte) podia
ter prejudicado de um momento para outro a sua tradição ga-
lante, apaixonando-se por uma chineza, que não valia o calca-
nhar de qualquer minhota, rosada, fresca e polpuda.
Os fidalgos de Guimarães, despeitados por lhes ter sido
preferido o filho do ourives Diogo, também eram da mesma
opinião, com o que nada tinham a perder, pois que lisonjeavam
a vaidade das suas patrícias.
Os homens bons do povo e os frades de S. Francisco, prin-
cipalmente frei Salvador da Guia, lastimavam que os haveres
do defunto ourives, tão laboriosa e honestamente amealhados,
fossem rolando vertiginosamente por um declive, onde não tar-
dariam a desapparecer.
Todas as outras pessoas que tinham aggravos de António
Lobo, porque elle as maltratara alguma vez em prosa ou verso,
desforravam- se agora chamando-lhe doido e dissipador.
Algumas chegavam a censurar a memoria de Diogo Fer-
reira que, devendo conhecer o filho, commettêra, por falta de
atilada previdência ou por affectuosa fraqueza, o erro de eman-
cipal-o, precipitando assim o desbarate de um pecúlio^ que nin-
guém imaginava ser tão importante como realmente era.
o LOBO DA MADRAGÔA 51
Disse-se logo, por communicativa phantasia, que António
Lobo tinha ido com a chineza para Macau, aonde ella o attra-
hia com o fim astucioso de repatriar-se á custa d'elle.
O que é certo é que este boato de origem popular veiu,
mais tarde, a traduzir-se n'uma inexactidão biographica a que
pelo menos dera curso um escriptor portuguez.
Se o leitor abrir o tomo VI da «Revista Universal Lisbo-
nense», ahi encontrará a supposiçao de que um soneto de An-
tónio Lobo de Carvalho parece indicar «que elle vivera algum
tempo em Macau».
O soneto, em que tão errada supposiçao procurou apoio,
é o seguinte :
Um governo sem mando, um bispo tal,
De freiras virtuosas um covil,
Tre/ conventos de frades, cinco mil
Naires, chinas, christãos^ que obram mui mal:
Uma só, que hoje existe tal qual,
Com quatorze prebendas sem seitil ;
Muita pobreza^ muita mulher vil,
Com portuguezes tudo em um curral:
Seis fortes, cem soldados, e um tambor,
Trez freguezias, cujo ornato é pau,
Co'um vigário geral sem provisor :
Dois clérigos, e um d'elles muito mau.
Um senado, que a tudo é superior,
E' quanto Portugal tem em Macau.
O douto bibliógrapho Innocencio Francisco da Silva, que
em 1852 coUigiu as «Poesias joviaes e satyricas» de António
Lobo de Carvalho, diz referindo-se, n'um prefacio biographico,
áquella errada supposiçao do collaborador da tRevista Uni-
versal»:
«Igualmente duvidosa, se não mais questionável se nos
affigura ainda a asserção de que António Lobo estivesse por
algum tempo em Macau; inducção que o mesmo alludido es-
criptor pretendeu tirar do contexto de um soneto, quanto a nós
apócripho, e que por tal o expungimos da presente collecção.»
Tem razão Innocencio em suppôr que António Lobo não
esteve nunca em Macau, mas, não obstante, o soneto pode ser
d'elle, em razão das suas intimas relações com a «tancareira»
de Cantão.
Ella, que vivera em Macau com o criado do capitão geral,
que conhecia perfeitamente a vida d'esta colónia portugueza, e
que, por instincto de raça, sobrepunha patrioticamente Cantão
a Macau, no que effectivamente tinha razão, e os chinas aos
portuguezes, devia ter suggestionado a António Lobo as suas
52 o LOBO DA MADRAGÒA
impressões de desdém pela insignificância e pobreza d'aquella
nossa colónia.
Min attribuia toda a sua desgraça a Macau, para onde a
levara o criado de Telles da Silva, e d'onde a trouxera ao en-
gano para Portugal.
Quanto a dizer o soneto que havia lá muita mulher vil,
está-se vendo o dedo do informador feminino, porque era na-
tural que a chineza quizesse amesquinhar as mulheres de Ma-
cau para engrandecer as de Cantão, engrandecendo-se a si
própria.
Nunca nenhum chinez nos perdoou que tivéssemos occu-
pado Macau.
Os nossos capitães geraes ou transigiam com os mandarins
para conservar o cargo ou, se reagiam dignamente, eram victi-
mas da sua honesta energia.
Mais ainda, o leal senado e em grande parte o espirito pu-
blico estavam tão abatidos de brios, que preferiam a paz inde-
corosa á guerra aberta com os mandarins.
Min, como todos os chinezes de Macau, maldizia do capi-
tão geral Telles da Silva, que procurara fa/er um governo forte,
patriótico e authónomo.
Não só os portuguezes, mas os próprios chinas, lhe toma-
ram medo.
Uma noite foram presos pela ronda dois chinas, um dos
quaes parece que morreu por eífeito de pancadas que lhe deram
os soldados. No dia seguinte não appareceram nem o morto,
nem o vivo. Dizia-se á bocca pequena que o capitão geral, para
evitar novos conflictos, os tinha mandado metter na mina ou
lançar ao mar. Um christão foi denunciar este acontecimento
aos mandarins, que vieram a Macau exigir a entrega dos dois
presos vivos ou mortos, e que, não lhes tendo sido entregues,
ordenaram aos chinas que íechassem as lojas do bazar e sahis-
sem da cidade.
O capitão geral não trepidou, manteve a sua attitude enér-
gica, mas a população alvoroçou-se com a falta de viveres logo
que o bazar fechou.
A pedido dos habitantes, intervieram os jesuítas, procu-
rando acalmar os mandarins com dadivas de dinheiro, satisfa-
zendo-lhes assim a natural rapacidade, seu principal móbil.
Cotisaram-se os moradores portuguezes de Macau para que
os mandarins pudessem receber grandes sommas de taeis e,
feito isto, o bazar reabriu as suas portas.
Teve o capitão geral de transigir n'uma só coisa, para não
sacrificar a população, e foi em destacar para Timor os solda-
dos que prenderam os dois chinas e os maltrataram.
o LOBO DA MADRAGÔA 53
Mas procurou tirar logo desforra d'esta forçada transigên-
cia. Conseguindo averiguar que o christao delactor fora um ma-
caista, de appeliido Franco, mandou-lhe dar trez saltos de polé,
para nnostrar aos mandarins que mantinha firmemente o prin-
cipio de auctoridade, e aos portuguezes que não podiam impu-
nemente desgostal-o.
D'este e outros actos de energia nasceram os enredos, te-
cidos até pelos próprios portuguezes subservientes, que logra-
ram depor o audaz capitão geral.
Foi n'esta época que a «tancareira» Min conheceu Macau.
Tudo lhe desagradava ali, a começar pelo capitão geral, pri-
meiro inimigo dos chinezes, que ella via sempre com maus
olhos quando elle descia da fortaleza do Monte acompanhado
por um sargento e mais doze homens de clavinas carre-
gadas.
Mas astuciosa como todas as mulheres, especialmente as
da sua raça, empavonava-se de ridícula vaidade quando ia a
Cantão embarcada n'uma lorcha, com o criado de Telles da
Silva; perante as suas antigas companheiras mostra va-se con-
tente e orgulhosa da vida senhoril que levava em Macau.
O primeiro portuguez com quem a «tancareira» pôde des-
abafar todos os seus ódios contra os portuguezes na China, foi
António Lobo, e fel-o com a vehemencia inherente á satisfação
de uma vingança longo tempo represada.
António Lobo acreditou-a facilmente, por suggestão amo-
rosa e, para lisonjeal-a, escreveu de um jacto o soneto, que não
corrigiu nunca e que é dos peiores que elle deixou.
Ao contrario do que se dizia em Guimarães, a «tancareira»,
em vez de descobrir o seu plano de repatriar- se, apenas tratou
de arrancar á terra natal o filho do ourives^ para o affastar
desde logo de quaesquer influencias que poderiam arrebatar-
Ihe das garras a presa.
Poz em acção toda a astúcia de que era capaz como mu-
lher, como chineza, e como pessoa já experimentada pela des-
graça.
Levou António Lobo para o Porto, onde ella pensou en-
contrar navio que, na primeira occasião, a reconduzisse a
Macau.
N'aquelle tempo a cidade do Porto era escassa de distrac-
ções, apenas trabalhadora e burgueza, cristalisada na austeri-
dade melancólica do seu primitivo burgo episcopal.
Min simulava gostar mais do rio que da cidade, e guiava
ardilosamente todos os seus passeios para os cães da ribeira,
especialmente desde Cima do Muro até ao estaleiro do Ouro.
Interessava-se muito em examinar o grande numero de
54 o LOBO DA MADRAGÔA
naus que ainda n'esse tempo fundeavam no Douro, procedentes
do Brazil, de França, de Flandres e de Inglaterra.
Procurava, com disfarce, um navio que pudesse leval-a
para Macau, porque não pensava n'outra cousa.
António Lobo não suspeitava d'este intento reservado, e
parecia-lhe natural que a antiga «tancareira» de Cantão gos-
tasse de vêr um rio, onde, de mais a mais, navegavam cons-
tantemente pequenos barcos tripulados por mulheres, as esbel-
tas raparigas de Avintes, remadoras possantes.
Contrariada por não achar o que procurava, Min desforra-
va-se juntando larga provisão de valores, como quem prepara
viatico para longa viagem. Fazia amiudadas compras de obje-
ctos de ouro, prata e fazendas de lã e seda na rua das Flores,
que era n'esse tempo onde estavam concentradas as mais ricas
e mais variadas lojas da cidade; que era, n'uma palavra, o
Chiado portuense de então. António Lobo andava sempre de
bolsa aberta, e não discutia despezas, quando a chineza lhe re-
quebrava os olhos n'uma doce languidez perturbadora. Deixa-
va-se queimar n'aquelle estranho fogo do Oriente, que o abra-
zava, e ao qual a já começada Torre dos Clérigos, se lhe
puzessem dentro uma alma de vinte annos, não lograria resistir.
Sabia a «tancareira», sem nunca perder de vista o seu prin-
cipal cuidado, empregar agradáveis artes para ir distraindo
António Lobo com os aspectos da cidade, surprezas galantes
e expedientes graciosos.
Umas vezes vestia-se á portuense, de saia preta e mantilha
de coca, como as melhores damas da cidade. Outras vezes imi-
tava o trajo das camponezas do arrabalde e arreiava-se com
muito e pesado ouro macisso.
Um dia tinha o capricho de percorrer as ruas em cadeiri-
nha ou de passeiar em sege até á Foz e Mattosinhos; outras
vezes, á luz do dia ou ao clarão do luar, embarcava rio acima
com António Lobo, escolhia barqueiros que soubessem tanger
algum instrumento, e gosava assim um dos poucos hábitos
alegres da cidade, tal era o que então se denominava «Fúrias
do rio», isto é, excursões fluviaes, ruidosas e concorridas.
Aquella pequenina mulher, sempre astuciosa e reservada,
procurava com todos estes artifícios prender António Lobo a
uma cidade, que não possuia seducções estonteadoras, nem
sequer distracções variadas.
O Porto, com os seus sessenta mil habitantes, tinha o as-
pecto rude de um burgo methodico e laborioso. Não era uma
cidade que sorrisse. A apparencia das ruas e das casas dava
uma pesada sensação de monotonia uniforme. Quasi todos os
prédios eram esguios, de trez a cinco andares, e as ruas es-
o LOBO DA MADRAGOA
55
treitas, o que afogava dentro d'ellas a vista, confrangendo-a.
Sobre as altas clarabóias ardiam revérberos de sol, que con-
trastavam exoticamente com a escuridão dos arruamentos.
Ainda havia uns restos de
rotulas nas janellas, que de
onde a onde lembravam ves-
tígios mouriscos. De toda esta
cidade tristonha sabia um ru-
mor constante e confuso, de
ensurdecer. Era produzido
pelo barulho das seges, das
liteiras, dos carros de bois,
das recuas dos almocreves,
e até pelos tamancos dos
transeuntes batendo o ladri-
lho de pedras largas e com-
pridas, que constituía o pa-
vimento das ruas.
Min nao queria sair do
Porto emquantonão perdesse
a esperança de encontrar
transporte para Macau, mas,
quando se convenceu de que
só poderia achal-o em Lis-
boa^ foi ella própria que tra-
tou de apressar a viagem
empregando recursos habi-
lidosos.
Recorreu ao grande ex-
pediente de todas as mulhe-
res : o ciúme.
Levava António Lobo ás
praças mais concorridas de
regateiras guapas, lindas mo-
cetonas que vendiam pão,
aves e fructas, taes eram as
praças de S. Bento, S. Do-
mingos, S. Roque e Ribeira, e mostrava-se amuada accusan-
do-o de olhar com muita attençSo para todos esses bellos exem-
plares de mulher portugueza.
Elle defendia-se com tanta convicção e verdade, que a
chineza acabava por se convencer de que não era aquelle o
melhor caminho para conseguir o seu fim.
Resolveu então, comquanto este novo processo pudesse ter
maior risco, atormentar de ciumeira o coração de António Lobo.
A cliiueza Min
56 o LOBO DA MADRAGÔA
Ella bem sabia que tinha dado nas vistas do Porto, o que
aliás era natural, pois que se evidenciava nSo só pelos cara-
cteres de raça, como pela variedade e riqueza de trajos e ador-
nos, e ainda pelos seus passeios em cadeirinha, em sege e em
barco.
Até então era a chineza que se retrahia n'um grande ar de
honestidade intangivel, quando os portuenses a miravam com
apetitosa curiosidade; agora, mudara de rumo, e era ella
mesma que os atiçava com olhares inflammaveis, provocando-
os a observal-a e seguil-a.
António Lobo, que nao deixava Min um momento em
liberdade, lisonjeava-se de vêr como ella despertava cada vez
mais a attençSo dos homens, e orgulhava-se da sua conquista
sem olhar ao preço por que lhe sahia.
Tinha começado o verSo de 1750.
Um domingo, no rio Douro, Lobo sentiu a vertigem do
ciúme, quando notou que um barco, conduzindo rapazes do
commercio, seguia a pequena distancia o seu barco, e que um
dos rapazes ia cantando trovas de amor, provavelmente dirigi-
das a Min.
D'esta «Fúria do rio» voltou António Lobo furioso.
Fez uma scena de ciúme, e disse imperativamente á chi-
neza que tinha resolvido sahir do Porto.
— Para onde? perguntou ella.
— Está claro que para Guimarães.
— Tudo menos isso, replicou Min. Estou farta de aturar
o ódio e os insultos das fêmeas rudes de Chaves e Guimarães,
de todas as estúpidas mulheres de aldeã. Se queres sahir do
Porto, nSo sou eu que hei de contrariar te; mas com a condi-
ção de que não sahiremos d'aqui para uma terra mais pequena.
Amo-te sinceramente, custar-me-ia muito ter que separar-me
de ti ; mas se teimasses em voltar para Guimarães, deixar-te-ia.
— Para onde havemos de então ir? perguntou António
Lobo meio aturdido por tão resoluta e inesperada declaração.
— Uma cidade maior que o Porto... só Lisboa. Não tem
que pensar.
— E o que hei de eu lá fazer?
— O mesmo que fazias em Guimarães e que fazes aqui.
Min quiz temperar a rispidez d'esta phrase com um sorriso
dengoso, acrescentando:
— Amar-me. . .
Lobo replicou com vivacidade :
— E ser amado.
A chineza correu para elle, apertou-o meigamente nos bra-
ços, pousou-lhe um beijo na bocca, e disse :
o LOBO DA MADRAGÔA 57
— Está bem de vêr que sim. Mas Lisboa é uma terra
grande, onde tu, que és intelligente, poderás encontrar posição
que te convenha, se quizeres ou precisares procural-a. No
Porto apenas se trata de negócios e tu não tens geito para
negociante. Digo ou não digo a verdade ?
António Lobo ficou pensativo durante um momento ; depois,
completamente subjugado, obtemporou :
— Pois vamos lá para Lisboa.
Decorridos oito dias, fins de julho, o filho do ourives de
Guimarães e a otancareira» de Cantão desembarcavam no Cães
da Pedra.
Foram hospedar-se ali perto, na estalagem do Reboto, porque
a chineza, seguindo sempre o seu plano, queria ficar perto do
Tejo.
A capital era uma novidade para António Lobo, e quasi o
era também para Min, que tinha aqui desembarcado quando
chegou de Macau, mas que se demorara apenas vinte e quatro
horas, seguindo logo viagem para o Porto com o criado de
Telles da Silva.
A cidade offerecia no seu aspecto geral um profundo con-
traste com o Porto. Era grande, alegre no exterior, magestosa,
quasi monumental,
O accidentado dos montes do Castello, da Graça, do Carmo,
de S. Francisco, das Chagas e de Santa Catharina, coroava-a
de um caprichoso recorte, sobre o qual descia o azul claro do
céu, n'uma exuberância triumphal de luz e côr.
Ao oriente, a casaria apinhava-se muito densa, pela ver-
tente meridional do morro do Castello, descendo escalonada
para o bairro de Alfama.
Ao occidente a população rareava, mas a ribeira do Tejo
espraiava-secom sorridente largueza em toda a margem direita,
matisada pelo arvoredo das quintas fidalgas, pela frontaria dos
palácios de recreio, pelas casaes alvejantes e pelos rodisios dos
moinhos de vento.
O mosteiro de Belém avultava imponente n'essa mancha
luminosa, e os seus lavores rendilhados pareciam vivos quan-
do a luz abundante do sol os fazia palpitar.
Depois, correndo na direcção do oceano, outras casas mo-
násticas, posto que muito mais humildes e modestas, taes como
o convento de S. José de Riba- Mar e o de Nossa Senhora da
Boa-Viagem, faziam alvejar os seus muros e campanários sobre
logares altos, quasi imminentes ao Tejo, ao passo que outras
casas religiosas, como a dos Cartuxos de Laveiras, se escon-
diam terra dentro na espessura dos bosques.
A torre de S. Vicente de Belém, com o seu lindo desenho
58 o LOBO DA MADRAGÔA
manuelino, sorria n'uma galanteria de linhas, tSo discreta e
grave, que não prejudicava a impressão de ser, como realmente
era, uma fortaleza militar.
De modo que se o oriente da cidade denunciava a existên-
cia de uma população amalgamada dentro^de bairros escuros
e estreitos, restos de habitações mouriscas e de construcções
medievaes, o occidente era já n'essa época, pouco anterior ao
grande terremoto, uma renascença brilhante de Lisboa, rea-
lisada pelo agrupamento de palácios, quintas, egrejas e fortes.
Mas, observando a cidade no seu conjunto, occultos os
antigos arruamentos orientaes e as viellas que seemmaranha-
vam entre o Terreiro do Paço e o Rocio, Lisboa mostrava ser,
logo ao primeiro lance de olhos, uma capital digna de hombrear
com as mais bellas de toda a Europa.
O Terreiro do Paço, com as suas portas e postigos ao
fundo, sobre os quaes assentavam altas edificações, com o vasto
palácio real que ao poente rematava por um elegante torreão
sobre o Tejo, com os casarões da Alfandega e do Terreiro do
Trigo ao nascente, era como que um vestíbulo condigno da
magestade e belleza da grandiosa cidade.
O Tejo, amplo, scintillante de ondas doiradas, povoado de
navios de todos os paizes do mundo, fez estremecer de orgulho
patriótico o coração de António Lobo, porque lhe deu a visão
das nossas glorias marítimas, e da fundação do nosso domí-
nio colonial por meio de ousadas conquistas e aventurosas
navegações.
A belleza da cidade e das terras férteis do seu Termo
parecia avultar ainda mais attraente pelo contraste que fazia
com a margem esquerda do Tejo, árida, escalvada, nua, apenas
cortada de um trecho de povoação em Almada, villa que pare-
cia envergonhar-se de ter deante de si uma cidade que ainda
de longe a esmagava.
António Lobo ficou deslumbrado nos primeiros momentos
em que viu Lisboa e, lembrando-se de Guimarães, a sua pe-
quena e pacata villa natal, mediu mentalmente toda a existên-
cia da nacionalidade portugueza desde o velho castello do conde
D. Henrique, onde a monarchia principiara, até ao sumptuoso
Paço da Ribeira, onde um cézar agonisava.
Já no Porto tinha ouvido falar muito do perigo que estava
correndo a vida de el-rei D. João V, por aggravamento da sua
antiga enfermidade. As noticias que chegavam ao norte do paiz
eram cada cada vez mais inquietadoras.
Mas agora, em Lisboa, esse mesmo assumpto preoccupava
todas as conversações, em todas as classes sociaes e em todos
os logares públicos. Dizia-se com um sentimento profundo,
o LOBO DA MADRAGÔA 59
apenas próprio de uma grande dôr nacional, que el-rei nosso
senhor estava em artigos de morte.
Parecia tratar-se de um m.onarcha que tivesse levado o
seu exercito a successivas victorias ou felicitado o seu paiz
com uma torrente caudal de prosperidades, resultantes de uma
sabia administração.
Nada d'isso acontecera, o thesouro publico estava vasio, o
reino pobríssimo, porque o rei moribundo linha dissipado uma
riqueza colossal em beatices, amores, ostentações e outras
ruinosas prodigalidades.
Mas o povo queria-lhe muito entranhadamente, porque
D. JoSo V o tinha deslumbrado como nenhum outro rei ainda,
dando-lhe o espectáculo de uma realeza á Luiz XIV enxertada
em moldes portuguezes: fora beato, fora amoroso, fora incons-
tante, fora imprevidente como todos os portuguezes.
Gastar dinheiro? Mas não estava o povo habituado a vêr
a nobreza dissipar cada dia a herança dos seus maiores, ati-
rando-a pela janella fora com embaixadas, ciganas, freiras,
alcovêtas e cantarinas? O rei tinha effectivamente gastado mui-
tos milhões de cruzados, mas gastava como quem era : devia,
por isso, gastar mais que todos os outros fidalgos juntos. E
da sua prodigalidade alguma coisa tinha ficado em mármore,
em rocalha, em carrilhões e paramentos de egreja. De mais a
mais, sabia-se cá fora, o rei morria christãmente — como
todo o portuguez quer morrer, sejam quaes for os erros do
passado — porque dissera a um dos seus familiares: «Deixai-
me, que eu não sou mais que um punhado de terra envolto
em uma miséria de peccados». Todo o peccador portuguez,
que morre contricto, obtém o perdão dos seus compatriotas,
quando o não possa obter de Deus.
Na estalagem do Reboto entravam muitos homens do mar,
porque o proprietário era um velho carregador da carreira do
Brazil, que traficara de conta propria^e juntara dinheiro. Dizia-
se que tinha negociado em escravos, e que fora essa a prin-
cipal origem do seu cabebal.
Pois ahi mesmo, dentro da estalagem, não se fallava senão
da doença de el-rei D. João V, e da sua morte próxima.
Até a chineza parecia agora mais reconciliada com os por-
tuguezes, por dó de sua magestade fidelíssima. Conversava com
os homens do mar, especialmente com o dono da estalagem,
e ia repetir a António Lobo as noticias, cada vez peiores, que
de hora a hora se espalhavam por toda a cidade.
A occasião, por ser de alvoroço geral, pareceu a Min a
melhor possível para tratar da sua repatriação, O próprio Lobo
queria estar ao corrente do que se pçissava, e encarregava-a
60
o LOBO DA MADRAGOA
de o saber na estalagem. A chineza não perdeu o ensejo, e
conluiou-se com o velho Reboto, que por sua parte não perdia
qualquer opportunidade de ganhar dinheiro. Estava a partir do
Tejo, disse-lhe elle, um navio que tocava em Macau. Dentro
de poucos dias devia levantar ferro.
Elle mesmo se encarregava de tudo. Quanto a guardar se-
gredo, acrescentou o soler-
te estalajadeiro, todos os
segredos se podiam guar-
dar com segurança pondo-
Ihes dinheiro em cima.
Ficou o negocio com-
binado. El-Rei D. João V
podia viver ou morrer, que
a chineza não se importava
nada com isso.
Sexta feira, 31 de ju-
lho, pouco depois das sete
horas da tarde, troou a ar-
tilharia e dobraram todos
os sinos da cidade.
Era um enorme estron-
do fúnebre, que retumbava
dentro de todos os prédios
e de todos os corações.
O grande rei havia ex-
pirado, e todo o povo cho-
rava por elle.
Trez dias se gastaram
em clamores públicos e of-
ficios religiosos, n'um delí-
rio de saudade inconsolável.
Na segunda feira, 3 de
agosto, pelas 10 horas da
noite, organisou-se o prés-
tito que devia acompa-
nhar o cadáver de sua ma-
gestade ao mosteiro de S. Vicente de Fora.
A multidão, chorosa, abria alas, que a todo o momento
engrossavam, como se novas ondas de população tivessem ro-
lado sobre a cidade, vindas de longe, talvez de vinte léguas
ou mais.
Iam adeante os porteiros da camará, com as suas insígnias,
marchando a passo solemne.
Seguiam-se os dois .corregedores do crime, os ofihciaes da
António Lobo
o LOBO DA MADRAGÔA 61
casa real, os grandes do reino, o regedor das justiças, os pre-
sidentes dos tribunaes.
Depois vinha, em grande numero, a cleresia, cónegos, be-
neficiados, capeliaes, cantores, de tochas na mao, uns a pé, ou-
tros a cavallo, segundo sua jerarchia ecclesiastica.
O marquez mordomo-mór precedia o coche fúnebre, que
era tirado por seis frizões, com jaezes e adornos de luto, e ro-
deado por moços da camará.
Após o coche, montados em ginetes, que arrastavam guai-
drapas negras, cavalgavam o marquez de Marialva, estribeiro-
mór, e D. Manuel de Sousa, capitão da guarda allemã.
Todos os fidalgos vestiam capa comprida, e traziam longos
crepes pendentes dos chapéus.
Tanto o carro mortuário, como o coche de respeito, que se
lhe seguia, eram acompanhados pela guarda real, e os regi-
mentos de infantaria, que estavam postados nas ruas do tran-
sito, iam formando atraz d'este ultimo coche, no couce do cor-
tejo fúnebre.
A marcha foi lenta e demorada, de modo que já passava
da meia noite quando, após as descargas da infantaria no largo
de S. Vicente de Fora, cessou o troar da artilharia nos fortes
e o dobrar dos sinos nas egrejas.
Toda a população de Lisboa, n'aquella noite memoranda,
se recolheu tarde.
António Lobo e Min pareciam impressionados por esse es-
tranho espectáculo do funeral de um cézar augusto; Min, com
ser estrangeira, ainda pouco antes de adormecer dizia que os
portuguezes tinham razSo para chorar a perda de um grande
rei, e que ella própria estava perturbada de contagiosa com-
moçao.
Pela manhã, António Lobo estranhou a falta da chineza.
Perguntou por ella. Havia desapparecido, levando comsigo todo
o dinheiro que encontrara.
A morte tinha roubado um rei ao seu povo. A «tancareira»
de Cantão roubara todo o dinheiro ao amante.
Noite fatal e tremenda !
V
o bando do Lobo
António Lobo, quando se certificou da fuga e do roubo,
teve uma explosão de cólera truculenta.
Quiz ir queixar-se ao corregedor do bairro, mas o estala-
jadeiro disse-Ihe que, segundo mais de uma vez ouvira, a man-
ceba de homem solteiro ou casado nao podia ser demandada,
nem soffrer pena alguma, pelo roubo que lhe fizesse. Quanto á
pessoa da chineza, acrescentou ironicamente que já devia ir
longe, porque partira a bordo de uma nau, que levantou ferro
ao romper da manhã, e áquella hora navegava de certo no
mar alto.
Philosophicamente, concluiu dizendo :
— Em mulheres não ha que fiar.
Lobo percebeu tudo: fora aquelle homem o agente e enco-
bridor da fuga ; por isso Min se mostrava tão interessada em
saber d'elle noticias a respeito da enfermidade de el-rei. Era
um pretexto para urdirem o seu plano.
Chammejante de indignação, sentindo accordar, depois de
uma longa atrophia, o seu génio altivo e audaz, António Lobo
encarou de frente a realidade e accusou o estalajadeiro de cúm-
plice no roubo e na fuga.
O velho Reboto, sem se mostrar extremamente indignado,
respondeu- lhe com um sorriso amarello :
— O que pôde você fazer? Ir queixar-se de que foi roubado
na minha estalagem? Seria; eu próprio acredito essa queixa.
Mas bem sabe quem o roubou. Foi a manceba com quem você
o I.OBO DA MADRAGÒA 63
vivia, e que lhe fugiu. A lei do reino isenta-a de toda a culpa.
Vemos casos d'estes todos os dias, e não é você por isso mais
infeliz do que muitos outros homens. De mais a majs estou es-
tabelecido ha dezoito annos e toda a gente sabe que não preciso
roubar ninguém para viver. Quanto a ter medo, é doença que
não conheço: andei por casa do diabo, vi deante de mim mui-
tos homens, pretos e brancos, também vi algumas feras, e
nunca mudei de côr. Vamos ao que importa : vá vêr se a china
ainda lhe deixou com que pagar os últimos dias de hospe-
dagem.
Lobo mediu-o de alto a baixo com aiTCganho.
— Já lhe disse, tornou o velho amaciando com superiori-
dade a voz e a phisionomia, que lhe não tenho medo. Você
quer ter uma briga commigo? Decerto não levaria a melhor;
mas que levasse, ficaria ainda mais desgraçado do que está. E'
muito novo, parece gozar saúde, pôde trabalhar, tem meio de
readquirir o perdido. Se vai a engulhar-se com a primeira peça
que uma mulher lhe pregou, não lhe chegará a vida para lasti-
mas, porque ha de encontrar muito d'isso. Quer você matar o
bicho? Ó rapaz, traz d^ahi Cartaxo bom. Beberemos os dois.
Olhe que eu sou melhor para amigo do que para inimigo.
António Lobo sentou-se n'um escabello de pinho, com a
cabeça escondida entre as mãos. Apetecia-lhe matar aquelle
homem, mas as palavras d'elle resoavam-lhe ainda nos ouvidos
como um clamor de verdade : «Ficaria ainda m-ais desgraçado
do que está.» E Lisboa, aquella magestosa Lisboa que elle ti-
nha visto dias antes com encantada surpreza, repugnava-lhe
agora como um covil de malfeitores e chatins, de que aquelle
estalajadeiro cinico era a expressão immunda e vil. Pudesse
transportar-se n'esse mesmo momento a Guimarães, vêr as ar-
vores e os montes da sua infância, a casa de seus pães, as ruas
onde brincara, e ainda que lá tivesse apenas uma hora de vida,
morreria tranquillo e contente.
O velho Reboto, como se lhe adivinhasse os pensamentos,
acercou-se d'elle e disse-lhe mansamente, n'um tom quasi pa-
ternal :
— Seja homem, seu Lobo! e pense como um homem. Não
me torne a mim, nem a ninguém a culpa do que succedeu.
Quando uma mulher quer bater as azas, não ha calabre nem
grilhão que possa segural-a, foge como um passarinho por
qualquer fresta da gaiola. Ora a jóia da sua china, poucas ho-
ras depois de ter entrado aqui, disse que por força queria em-
barcar para Macau ; que já no Porto procurara transporte, mas
que o não encontrou; e que por esse motivo, só por esse, qui-
zera vir a Lisboa.
64
o LOBO DA MADRAGOA.
António Lobo começou a vêr claro, a lêr toda a verdade
nas entrelinhas do passado, reconhecendo que tinha sido ape-
nas um instrumento de ignóbil especulação nas mSos astutas
da chineza.
Quando um homem cái moralmente de tao alto, uma de
António Lobo e o estalajadeiro
duas coisas lhe acontece fatalmente: succumbe, se é um fraco,
um triste, um doente; resiste, e ri de si mesmo, se tem o es-
pirito e a saúde florescente de António Lobo.
Elle, ouvindo todas estas revelações, apenas voltou ao pas-
sado para fazer uma pergunta ao velho Reboto :
— Mas por que nSo inspiraria eu a você a sympathia bas-
tante para me contar tudo isso a tempo de poder dar uma lição
severa a essa reles aventureira? Tel-a-ia esganado como a uma
cadella que nos quer morder.
o LOBO DA MA DRAGO A 65
— Pois ahi está : por isso mesmo. Tel-a-ia esganado ! Bo-
nita coisa ! Gemeria a estas horas nos ferros d'el-rei, seu Lobo;
mas como felizmente não aconteceu assim, achase vivo e são
como um pêro. Você mesmo confessa que o diabo da china era
uma aventureira reles; olhe que valia a pena ter de a pagar
por bôa 1 Deixe-a ir, com Belzebuth, e fique de pé atraz com as
aventureiras. Tratemos de beber, que nao vá o vinho zangar-se
de o fazermos esperar.
E, dito isto, o velho Reboto encheu dois copos, passando
um a António Lobo, que o poz á bocca e esvasiou.
— Que tal? perguntou-lhe o estalajadeiro.
— Bom vinho, respondeu António Lobo, mas forte.
— Nanja forte. Você, segundo me disse a china, é de Gui-
marães.
— Sou.
— Pois é por isso que lhe parece forte este Cartaxo. Lá no
Minho só bebem vinho verde, e eu não o posso tragar; arra-
nha a guella como se fosse uma lixa. Também é de todos os
vinhos portuguezes o único que não quero beber. Que eu a res-
peito de vinho, e mulheres, só de Portugal.
E, enchendo novamente os dois copos, continuou pairando
como todo o bom estalajadeiro historista:
— Olhe, seu Lobo. Quando eu embarcava para o Brazil,
tive ocasião de conhecer mulheres de muitos paizes, porque o
Brazil é, mal comparado, uma torre de Babel, aonde vão dar
todos os estrangeiros que procuram fortuna, sejam homens ou
mulheres. Lá me avistei com as brazileiras, que eram gente de
casa, e que, diga-se a verdade, parecem um favo de mel, mas
eu acho-as doces de mais. Lá vi gregas e italianas e francezas
6 flamengas e moscovitas — até moscovitas da Rússia! — mas
com franqueza lhe digo que me não fizeram mossa todas essas
aventureiras errantes, e que nunca topei, para meu gosto, me-
lhor mulher que a portugueza. Tenho pena de não saber fallar,
que eu lhe diria agora quanto vale e quanto pesa a mulher da
nossa terra. Experiência não me falta; o que me falta é a lo-
quella.
E bebeu um trago de vinho, demorando-se a saboreal-o.
— As nossas portuguezas, continuou depois, nem são tão
moUes como as brazileiras, nem tão abelhudas como as hespa-
nholas. Parece que Deus nosso Senhor teve muita conta no
tempero com que apurou a portugueza ; nem de mais, nem de
menos. Pois não é assim, seu Lobo?
O filho do ourives de Guimarães começava a achar uma
estranha graça ao bom senso pratico d'aquelle estalajadeiro fi-
nório, que talvez na sua vida nunca tivesse aberto um livro.
66 o LOBO DA MADRAGÔA
— Nas estrangeiras, proseguiu Reboto, o cabello muito
louro e a pelle muito branca encontram-se a cada passo, mas
olhe que chega a gente a enjoar-se de estar a olhar constante-
mente para aquelles pires de creme, onde o que não é leite, é
canella, e o que não é canella, é leite. E o que me diz ás ruivas,
que por lá se encontram avondo? Parecem feitas de cobre, como
as caldeiras dos navios. Mulheres altas como torres topam-se
aos milhares por todo esse mundo de Christo. Mas a mulher,
seu Lobo. se é a companheira do homem, deve acompanhal-o
em tudo, até na altura. A gente não ha de incommodar-se a
mandar beijos para o sette-estrello ; perder-se-iam muitos no
caminho. Ora a nossa portugueza. . .
E bebeu novo trago de Cartaxo, pausadamente.
— Ora a nossa portugueza não tem felizmente cabellos de
estopa nem de linho : as suas tranças e os seus olhos são como
certas pedras negras, que não sei que nome lhe dão os ourives,
mas que á luz do sol podem ter todas as cores, até a do oiro,
sem nunca deixarem de ser negras. Os rostos — oh! lindos
rostinhos das portuguezas ! — são morenos como as fatias de
pão torrado, que uma boa cosinheira, quando saiba do seu oííi-
cio, não deixa tostar de mais nem de menos. As portuguezas f
Nem são tão altas que pareçam torres, nem inteiriças e esguias
como fusos de fiar. Se a gente quer levar comsigo uma portu-
gueza, dobra- a como se fosse uma peça de cambraia, que se
ageita ao conducto ; mette-a debaixo do braço, e para qualquer
parte que vá, não nos dá peso nem incommodo. — E' verdade,
oh seu Lobo ! diga-me você agora se também é da minha
opinião.
António Lobo estava já outro homem, continuava renas-
cendo em si mesmo, depois d'esse oppressivo parenthesis de
escravidão amorosa, em que perdera toda a exuberante vitali-
dade de espirito que lhe conhecemos em Guimarães.
la-se animando, e bebendo.
— Concordo, não ha duvida ; das cachopas da minha terra
nunca eu tive razão de queixa.
— Nem ellas certamente de você, interrompeu o estalaja-
deiro piscando gaiatamente um olho.
— Está bem visto que não: amor com amor se paga.
— Eram portuguezas, e vonda.
— Vim cahir, como um patau, no estafermo da china.
— Bravo! Você já lhe chama estafermo! Está aqui, está
curado. Não procure mestre cirurgião, que não precisa.
— Curo-me a mim mesmo, «que é mais barato.
— Mas olhe que eu também ajudei a tempo com a mezinha.
— Não digo que não. Em todo o caso o doente, quando
o LOBO DA MADRAGOA
67
tem animo, auxilia muito a cura. E eu vou dizer a você o sina-
pismo que estive deitando no coração para o espertar.
— Então qual?
— Um soneto. Você sabe o que é um soneto ?
— Sei, é verso ou glosa. Mus você fez isso sem mole ! Diga
lá sempre, que hei de gostar de ouvir.
António Lobo recitando na estalagem
António Lobo recitou um soneto, tão duro de linguagem
contra a chineza, que o estalajadeiro o entendeu perfeitamente,
e que o coUector das «Poesias joviaes e satyricas» não ousou
aproveital-o, se é que chegou a conhecel-o.
Quando António Lobo começava o primeiro terceto, entra-
ram na estalagem dois indivíduos, que deviam ser freguezes
antigos, porque o Reboto acenou-lhes familiarmente com a mão,
fazendo-lhes signal para que se sentassem e ouvissem.
68 o LOBO DA MADRAGÔA
Eram dois ginjas^ de carSo vermelhaço, gordos, pachor-
rentos, amigos de bons petiscos e boa pinga.
Lobo, cego de fúria poética, continuou recitando e, quando
terminou, tanto o Reboto como os dois recemchegados irrom-
peram n'uma tSo espontânea e unisona risada, que o estala-
jadeiro, cahindo em si, correu á meia porta que estava aberta,
dizendo:
— O' diabo! ó diabo! E a morte de el-rei! Que não fosse
alguém ouvir-nos.
Poz a cabeça fora da porta, olhou cuidadosamente para a
direita e para a esquerda, e voltou mais tranquillo por nSo ter
visto transeunte, que pudesse estranhar tamanha risota em
occasião de luto nacional.
Ambos os ginjas limparam as lagrimas, que os dois ter-
cetos tinham provocado.
Um d'elles, o mais novo, que se chamava Anacleto e era
natural de Angeja, dizia:
— Caramba! Nem o aCamões do Rocio», no tal poema que
lhe attribuem, foi mais longe do que este moço.
— Viva lá, cavalheiro! disse o outro ginja. No género, é
de se lhe tirar o chapéu.
O Reboto também deu a sua opinião :
— Conheci em Pernambuco o Gregório de Mattos, e ouvi
por lá dizer muitos versos d'elle. Muita vez aqui entrou n'esta
casa, como os amigos se lembram — voltando-se para os velhos
— o Thomaz Pinto Brandão, que já está fazendo tijolo ha uns
bons sete annos. Mas com franqueza lhe digo que de nenhum
d'elles ouvi coisa que se parecesse com isto ! Sabe que mais,
seu Lobo? Você, se qui/er ficar em Lisboa, não apanha menos
paparocas e petisqueiras do que o Pinto, nem ha de ser menos
conhecido. Tome nota de que lhe faz esta prophecia o velho
Reboto, que tem visto muito mundo e ouvido muito verso.
Os dois ginjas, especialmente o Anacleto, tomando com
António Lobo a mesma familiaridade que já tinham na casa,
quizeram ouvir todo o soneto, que o poeta promptamente repe-
tiu, ainda vibrante de indignação, mãe fecunda de versos, se-
gundo disse Juvenal.
António Lobo respondeu ao estalajadeiro que resolvera
regressar a Guimarães, sua terra natal, e pediu-lhe que sou-
besse n'aquelle mesmo dia quando sahiria algum navio para o
Porto.
— Bem mal faz, contestou o Reboto. Na província, um
poeta que sabe dizer verdades com tanta graça ha de por força
andar aos empurrões a toda a gente, que aquillo por lá é muito
pequeno e empilha as pessoas, como sardinha em tigela. Mas
o LOBO DA MADHAGÔA 69
OU eu me engano muito ou você cá tornará, que isto, amigo,
sempre é a corte, e deixe falar quem fala
O Anacleto, apesar de ser da província, também abun-
dava n'estas ideias, e teimava com António Lobo para que
ficasse.
Tanto elle como o outro ginja, não perdendo nunca um
pretexto qualquer para comesaina, offereceram uma ceia ao «en-
diabrado poeta de Guimarães», n'essa noite, e o velho Reboto,
que não quiz ficar atraz dos seus dois freguezes, teve a gene-
rosidade de dizer-lhe que, visto querer ir-se embora, e haver
sido roubado, dava por liquidado o resto da conta.
O estalajadeiro não era homem para se arruinar com fran-
quezas. Amava o dinheiro desde que aprendera a ganhal-o,
com algum risco da pelle, no mar e na escravatura. E para
amar o dinheiro não ha como saber quanto elle custa a ganhar,
qualquer que seja o processo, com excepção do jogo. Mestre
Reboto dava facilmente conselhos; ás vezes, para ir fazendo as
pazes com o céu, também dava algumas esmolas em vitualhas,
que sobejavam na cosinha da estalagem : mas não dava, nem
emprestava dinheiro a ninguém.
Ora, declarando saldada a conta de António Lobo, fizera
apenas uma apparente generosidade, relativa a dois ou trez
dias de hospedagem, porque, além da despesa diária dos dois
hospedes, apanhara á chineza boa maquia, para que ella pu-
desse embarcar em segredo. De modo que, ao contrario de
perdei', lucrara muito; e assim, se a chineza roubou António
Lobo, mestre Reboto, por sua vez, roubou a chineza. Justo
equilíbrio de astúcias e nigromancias, que tornam este mundo
o melhor dos mundos possíveis.
O filho do ourives Diogo embarcara para o Porto, d'onde
seguiu immediatamente para Guimarães.
Quando tornou a vér a sua terra, o castello do conde
D. Henrique, o pago dos duques de Bragança, o campo do
Toural e a casinha de seus pães, respirou desopprimido como
se lhe tirassem de sobre o peito um peso enorme, que o es-
magava.
A pátria tem attracções irresistivelmente consoladoras
para os infelizes: é por isso, decerto, que os grandes crimi-
nosos a procuram, indo assim cahir facilmente nas garras da
policia.
António Lobo não voltava criminoso, se não é crime es-
banjar em pouco tempo a herança paterna, reunida á custa de
trabalho e dedicação. Mas regressava pobre ou quasi pobre.
Apenas pudera salvar do naufrágio um resto de dinheiro, que,
ao partir para Lisboa, lhe não coubera talvez nas algibeiras
70 o LOBO DA MADRAGÔA.
Lá O foi encontrar no mesmo esconderijo que o pae lhe tinha
indicado, e d'onde elle próprio tirara o outro, que tão rapida-
mente desapparecera por entre os dedos da chineza.
Commoveu-se ao pensar na vida honesta do pae, deante
dos destroços d'aquelle modesto pecúlio, que o honrado ouri-
ves juntara migalha a migalha, como a formiga.
Mas fora passageira essa commoção, porque logo o dis-
traíram as suas antigas relações amorosas, contentes e ufanas
de que elle voltasse no amor aos sentimentos patrióticos; e os
seus antigos amigos e companheiros, que folgavam de o ou-
vir falar do Porto, de Lisboa e de todas as aventuras que a
chineza lhe proporcionara depois que ambos partiram de Gui-
marães.
Não ha nada que divirta tanto os rapazes como a historia
de uma paixão cara, que arrastou á pobreza ; parece-lhes uma
divinisação do sacrifício. A antiga lenda do tteu amor e uma
cabana», com uma côdea de pão e uma sardinha assada, exal-
ta-os muito menos, chega a aborrecel-os como um achado
archeologico.
Já assim era no século xviii, porque já assim era no prin-
cipio do mundo.
O que foi a convivência de Adão e Eva senão a primeira
vida amorosa dentro de uma «cabana» pittoresca : o Paraiso
Terreal? Eva enfastiou-se mortalmente (nunca este adverbio
teve melhor applicação) d'aquella doce e melancólica sereni-
dade : por isso deu ouvidos á serpente tentadora e cravou o
dentinho branco na maçã prohibida. Adão, que era pouco
mais velho do que Eva, também por sua vez estava aborreci-
do ; n^o consta da Biblia que protestasse contra o procedimento
de Eva.
António Lobo via-se a dois passos da pobreza extrema, e
comtudo não pensava em trabalhar. E' que o trabalho é um
producto da educação, como qualquer outro. E aquelle rapaz
de vinte annos fora educado a ouvir dizer o pae : «Quem deve
aqui trabalhar, sou eu.»
Circumstancia notável, mas exacta: quanto mais António
Lobo se aproximava da pobreza, mais altivo e despreoccupado
se mostrava. A recordação de Min levava-o a querer evitar
novas decepções e vexames, até no amor. A experiência é uma
escola de perversão, a peior de todas as escolas, porque é a
mais pratica. E foram as raparigas de Guimarães quem mais
soffreu com o desastre de António Lobo, porque elle estava
agora desconfiado de todas as mulheres, por causa de uma. Já
nSo era o mesmo para ellas, tão escrupuloso e tão discreto como
tinha sido.
o LOBO DA MADHAGÔA 71
Nao sei quem disse que o peior inimigo da mulher é a
mulher. Não ha maior verdade do que esta. A lição recebida
de uma mulher desperta sentimentos de desconfiança e repre-
sália para com todas as outras.
Voltando á sua antiga vida, mais derrancado ainda pela
experiência, António Lobo tornou-se mal visto em Guimarães.
Os frades, divulgado o roubo da chineza, accusavamn'o
publicamente de ter malbaratado a pequena herança do ourives
Diogo e agoiravam mal do fim d'aquelle rapaz, que considera-
vam perdido.
Nem elle procurou o padrinho, nem o padrinho o procurou
a elle.
Os velhos amigos do ourives voltavam a cara para o lado,
quando António Lobo passava por elles, e os fidalgos wisigo-
thicos diziam alto e bom som que lhe recusariam uma esmola
se elle ousasse pedir-lh'a.
António Lobo sabia tudo isto e julgou dever medir-se com
toda a villa, cambiando indignação por indignação. Compoz um
soneto iracundo, que principiava accusando de bêbados os vi-
maranenses.
Olha tu, Guimarães, das cortes velhas
Nenhuma a primazia te disputa ;
Ainda que baixa, és terrinha enxuta,
Onde são bem chuchadas as botelhas.
Depois chamava animaes aos frades e devassas ás mu-
lheres.
Concluia pedindo ao céu uma limpeza geral para Guima-
rães, um terremoto que não deixasse pedra sobre pedra, como
aquelle que trez ou quatro annos antes tinha destroçado a cidade
de Lima no Peru :
Assim Jove iramortal, que os bons estima,
Te ponha a mesma mão pelo cabelio,
Que poz ha tempos em Calhau de Lima.
Aqui foi Trova. Os vimaranenses, quando souberam d'este
soneto, julgaram-se offendidos na honra das suas famílias, e
juraram vingança.
António Lobo apenas sabia de noite, acompanhado por ou-
tros sucios tão irrequietos como elle, se bem que menos notó-
rios. Pagava, emquanto o pôde fazer, as despezas do vinho e
da comesaina, para trazer contente e unido o seu bando, que
o proclamava o primeiro poeta satyríco do Minhc».
Já na villa se fallava do «bando do Lobo», que infestava a
72 o LOBO DA MADRAGÔA
deshoras as ruas de Guimarães, e alvoroçava os pacíficos ha-
bitantes com a cantoria de glosas chocarreiras.
Em contraposição a este bando organizou-se outro, capita-
neado por um cutileiro de appellido Raposo.
Os bandos que promoviam arruidos foram durante séculos
um «sport> predilecto da mocidade portugueza, a despeito das
«Ordenações», que encarregavam ao corregedor da comarca a
missão de averiguar se das «competências ou bandos se seguiam
pelejas, revoltas, mortes ou outros males e damnos».
Mas a tolerância dos costumes e a própria organização do
serviço dos quadrilheiros, que eram tirados d'entre os cidadãos,
e não estavam para arriscar a pelle, nem perder as noites, fa-
ziam que continuasse impunemente a tradição dos bandos a
despeito das «Ordenações.»
A lei, em Portugal, tem sido sempre lettra morta.
Houve por vezes conflicto entre os dois bandos, que a ronda
dos quadrilheiros seria impotente, ainda quando o tentasse,
para conter em respeito. Ficavam rachadas algumas cabeças,
porque os varapaus de lódão, principal arma do minhoto, ensa-
rilhavam alto com o fim de inutilizar a victima, procurando-
Ihe o craneo.
O bando do Raposo era talvez mais esforçado que o do
Lobo, mas não provava tanta petulância, nem tanta disciplina.
E a razão estava em (|ue, no primeiro bando, todos se jul-
gavam tão valentes como o chefe, ao passo que o Lobo, entre
a sua gente, dispunha de superioridade que lhe provinha do
talento poético, da odyssea amorosa pelo Porto e Lisboa, das
suas fortunas e desastres com a aventureira de Cantão, e até
da pobreza em que se encontrava, como todos os bohemios
celebres.
Não era a vara de lódão a única arma contundente que o
bando do Lobo sabia manejar. O seu chefe, improvisador temí-
vel, lingua solta e maligna, possuia outra arma talvez mais
perigosa para os adversários : era o verso, que chega ao inte-
rior dos conventos, dos palácios, das tabernas e alcouces,
muito mais elástico, portanto, do que um varapau qualquer.
Peior ainda que tudo isso, o verso ficava na memoria do
povo como um elemento dissolvente, um gérmen de anarchia e
revolta contra as tradições sociaes.
Todos os dias, um novo soneto de António Lobo desabava
sobre Guimarães como chuva de granizo que batesse em todas
as vidraças e cantasse em todos os telhados.
Não havia outro remédio senão ouvil-o, e todas as classes
da população se iam mostrando aggravadas porque o dicaz
poeta não poupava nenhuma.
o LOBO DA MADRAGÔA 73
Viviam na villa alguns homens instruídos, cultores das
bellas-artes, e esses, mais que nenhuns outros talvez, se in-
quietaram com os rudes ataques d'aquello novo e destemido
collega, que parecia disposto a flagellal-os.
Haviam fundado em dezembro de 1724 uma «academia vi-
maranense», na qual se agruparam fidalgos eruditos, cónegos
da real coUegiada, doutores em leis, abbades do concelho,
n'uma palavra, a fina flor das lettras de Riba-Vizella.
Gastavam o seu tempo n'essas pomposas ninharias que
caracterisaram as nossas academias em geral, e faziam sessões
solemnes muito apparatosas, taes como as celebradas em 1747
e 1748 na presença do arcebispo D. José de Bragança.
António Lobo armou o seu arco de sagitario audaz contra
a «academia vimaranense», e desfechou,
Ahi vae amostra do impetuoso ataque contra os académi-
cos olympicos :
Mil parabéns te dou, ó pátria amada,
Victor serio, deixemos zombaria,
Pela raça da nova poesia
Que tão castiça tens, tão propagada !
Para bem seja aquella barrigada
Que de poetas encheu a academia ;
Se deu treze por dúzia, e a demasia !
Santo António abençoe esta ninhada !
Ninguém julgue ser erro do lunario
Que esta terra sem tempo, e sem semente
Produzisse um bom fructo litterario:
Que o brotar tanta Musa de repente
Foi enxerto, que fez o secretario
Na carcunda do douto presidente.
O odio litterario é o mais rancoroso de todos os ódios.
De modo que os vimaranenses poderiam perdoar as in-
vectivas contra a sua villa, mas os académicos não souberam
mostrar-se superiores ao desacato feito á academia.
Atiçada por elles, cresceu a opinião publica contra António
Lobo, e com ella a hostilidade entre os dois bandos adversos.
Uma noite houve um recontro violento em que foi princi-
palmente visada a pessoa de António Lobo, o qual, apesar da
enérgica defeza dos seus sequazes, sahiu mal-ferido da con-
tenda.
74 o LOBO DA MADRAGÔA
Um dos aggressores excedeu a todos os outros no afogo
da arremettida.
Era o continuo da «academia vimaranense.»
António Lobo, defendendo-se como podia, jurou-lhe pela
pelie dizendo :
— Ah ! villao assalariado, tu m'as pagarás qualquer hora.
Tu e a academia.
VI
Consequências de ama rapaziada
António Lobo, curado o ferimento, continuou a levar a
mesma vida.
Nao sahia durante o dia, e gastava-o entregando-se á lei-
tura de quantos livros os seus amigos lhe podiam obter.
Deu-se a cultivar o latim e o francez, que tinha começado
a aprender em Coimbra, e mostrava-se avantajado no conhe-
cimento d'essas duas linguas, coisa que frei Salvador da Guia
nao queria acreditar, quando lh'o disseram.
Os recursos pecuniários iam faltando. A casinha da rua de
Santa Rosa de Lima estava hypothecada a um agiota que, para
desaffrontar Guimarães, exigira juros leoninos. De vez em
quando, António Lobo mandava vender ao desbarato, por al-
gum amigo, qualquer objecto que ainda lhe restava da herança
paterna.
A pobreza já lhe batia á porta, e comtudo aquelle rapaz
corajoso parecia não se inquietar com o dia de amanha.
Tinha o estofo peculiar aos bohemios de raça.
Diz com verdade o padre Ferreira Caldas fallando de An-
tónio Lobo na sua monographia sobre Guimarães: «viveu por
muitos annos e falto de meios na rua de Santa Rosa de Lima.»
Os annos de miséria que passou em Guimarães foram,
principalmente, os que decorreram entre 1750 e 1756.
A' noite, António Lobo deixava em paz os livros, e reu-
nia-se aos seus companheiros, frequentando com elles os al-
couces e as tabernas, onde a sua graça endiabrada aflorava
espontânea no calor das libações e dos improvisos.
Umas vezes por outras havia desordens, alimentadas pela
76
o LOBO DA MADRAGÔA
rivalidade dos dois bandos inimigos, mas a população iá es-
tava acostumada a esses conflictos, e agora preoccupava-se
menos com elles.
António Lobo encontrava nos bordeis os amores laceis, as
o continuo |)reso^á argola pelo baudo
paixões ephemeras, que as Vénus do monturo proporcionam
aos bohemios pelintras.
No seu coração e na sua lyra não passava uma doce briza
de idealidade amorosa.
Era que elle não tinha procurado ainda no azul uma alma
casta de mulher que não fosse tSo frágil e tangivel como as
outras, e que por um momento ao menos o retivesse no pen-
dor de uma existência corrompida e malbaratada.
Cada vez mais empobrecido, valiam-lhe os amigos e com-
panheiros com o auxilio de mealhas, dando-se por bem pagos
o LOBO DA MADRAGÔA 77
de militarem no seu bando e de o terem por chefe e modelo.
Assim ^foi [o tempo decorrendo até que um acontecimento
ruidoso veiu tornar impossível a permanência de António Lobo
em Guimarães.
Certa noite o seu bando encontrou o continuo da «academia
vimaranense^» que recolhia de Braga em serviço de recovagem
para alguns académicos.
António Lobo, mal que o viu, antegostou o prazer da vin-
gança.
Prenderam-n'o, e Ievaram-n'o para a rua de Santa Rosa de
Lima, onde se constituíram em tribunal para o julgar por o antigo
delicto commettido em desaffronta da «academia vimaranense.»
O homem, amordaçado, cahia de joelhos e erguia as mãos,
implorando misericórdia com afflictivo gesto.
O tribunal funccionou no meio de uma graça esfusiante,
que irrompia dos discursos burlescos e das altitudes cómicas
dos julgadores
A sentença condemnou o réu a correição publica no pelou-
rinho da villa, o qual foi substituído, para menor responsabili-
dade do pseudo tribunal, por a argola de um ferrador.
Ahi amarraram o padecente, pondo-lhe orelhas de burro,
com este lettreiro : «Castigo que em logar próprio soffre a «acade-
mia vimaranense» na pessoa do seu mais preclaro ornamento.»
O primeiro transeunte que passou por ali, e viu esta có-
mica exhibição, largou a rir e a clamar: «O' gentes! acudi cá!
vinde vêr esta parodia !»
O ferrador abriu logo a porta, mas já então acudiam visi-
nhos, que também desatavam a rir.
— Quem te prantou assim? perguntaram muitas vozes.
— Foi o Lobo e o seu bando esta noite quando eu vinha de
Braga.
— Fizeram-te algum mal ?
— Fizeram-me burro, salvo seja, como vós estaes vendo.
E emquanto o ferrador desamarrava o nó que prendia o
padecente á argola, retiniam gargalhadas dos adultos e apupos
do rapazio.
Qnando a noticia d'este hilariante acontecimento se espa-
lhou na villa, tornou-se assumpto geral de variadíssimos com-
mentarios.
Na vida de província o que mais se deseja encontrar, ao
começar cada dia, é um assumpto, uma novidade qualquer.
Não importa que seja importante ; se o não fòr, a imaginação
popular lhe dará vulto e peso.
D'esta vez, a matéria era nova em folha e, de mais a mais,
piccaresca.
78
o LOBO DA MADRAGÔA
Umas pessoas riam ; outras mostravam-se indignadas.
E a imaginação popular, trabalhando sempre, ia acrescen-
tando de conta própria fabulosos episódios, que ainda mais
aggravavam a situação.
Dizia-se que o continuo da academia apparecera mettido
dentro de uma pelle de burro ; que o arreiaram com albardão,
cabeçada e retranca ; e que o tinham obrigado a comer cevada,
Vista de Amarante
dizendo-lhe ao arraçoal-o : tToma, é para ti e mais p'r'á aca-
demia.»
Os académicos receberam o caso muito a sério, mostra-
ram-se irritadíssimos, e foram queixar-se do aggravo ao cor-
regedor da comarca, que immediatamente procedeu.
António Lobo e os seus companheiros trataram de sal-
var-se fugindo, logo que tiveram conhecimento da queixa da
academia.
O Lobo resolveu ir para Villa Real de Traz-os-Monles,
acompanhando um dos cúmplices, Gaspar Duarte, que era de
lá, e lhe offerecera hospitalidade em casa de parentes.
Melteram-se ao caminho inteiramente desprovidos de re-
cursos, expiando, légua a légua, a sua estrondosa rapaziada.
o LOBO DA MADRAGÔA 79
Mas iam alegres, satisfeitos da proeza que tanto havia amofi-
nado os inclytos académicos.
— A esta hora, dizia António Lobo, não ha sábio em Gui-
marães que nSo peça a nossa cabeça.
— Eu, respondia Gaspar Duarte, não teria duvida em em-
prestai a, se tivesse a certeza de que m'a restituiam.
— Que, a dizer a verdade, nao nos faria muita falta: sem
cabeça temos nós ido vivendo, graças a Deus.
— Sim... olha que eu estou capacitado de que não ter
juizo é um habito alegre; assim como ter juizo é outro habito,
muito menos alegre certamente.
— Por essa razão os académicos de Guimarães devem es-
tar agora ainda muito mais alegres do que nós. . .
Eriam ambos, comose levassem asalgibeirascheiasdedinhei-
ro, aquelles dois estouvados, que não tinham onde cahir mortos.
Fizeram caminho em direcção a Amarante porque, dissera
Gaspar Duarte, era terra de lindas raparigas e de bons rapazes.
— E' de suppor, acrescentou, que tenham piedade d'estes
dois execrandos proscriptos e nos dêem hospedagem por algu-
mas horas.
— Eu, pelo menos, conto com a protecção de S. Gonçalo,
respondeu António Lobo.
— Para te casares com alguma velha gaiteira ?
— Não ! por ser a única pessoa de Amarante que eu co-
nheço de nome.
Sempre alegres e frescos, como se caminhassem por gosto,
deram entrada na villa, que pittorescamente se escalona á mar-
gem do rio Tâmega.
O súbito advento de dois rapazes desconhecidos despertou
curiosidade, como sempre acontece na província quando appa-
recem caras novas.
Entraram na estalagem do Janeco, onde António Lobo fez a sua
apresentação e a de Gaspar Duarte dizendo aofilhodoestalajadeiro:
— Já cá sabem que ardeu em Lisboa o Hospital de Todos
os Santos?
— Já sabemos,
— Pois nós somos dois dos doentes que tiveram a infelici-
dade de morrer queimados.
O filho do estalajadeiro achou muita graça ao dito, que foi
como faulha de que brotasse um incêndio de popularidade para
os dois viajantes.
Horas depois estavam elles relacionados com todos os ra-
pazes de Amarante, a cujos olhos ainda mais se engrandece-
ram quando lhes contaram, despertando ruidosa alacridade, a
historia da sua fuga.
80 o LOBO DA MADRAGÔA
Gaspar Duarte denunciou os dotes poéticos de Lobo, o que
pôde já considerer-se um pleonasmo de popularidade.
— Aqui perto em Jazente, disse um dos rapazes de Ama-
rante, também ha um abbade que é poeta.
— Como se chama elle? perguntou António Lobo.
— Paulino Cabral de Vasconcellos.
— Nunca ouvi fallar.
— E' filho do medico da quinta do Reguengo e ha dois
annos que está parochiando Jazente.
— Idade?
— Uns trinta annos. Mas é já tão calvo como se fosse velho.
— Calvo?
— E tem muita pena de o ser, porque nao desgosta de ga-
lantear as damas.
— O maroto!
— Canta de preferencia uma Nize, que andamos a vêr
quem será.
— JMabo ! disse António Lobo. Todos os poetas teem uma
Nize. Só eu não tenho nenhuma! E que tal como poeta ?
— Dizem que bom.
— Isso costuma dizer-se sempre de todos os maus poetas.
— Por ahi gabam-n'o muito, especialmente as damas.
— E' porque lhes faz versos. As mulheres sSo como os
agiotas: não emprestam nunca sem receber juros. E eu d'isso
entendo alguma coisa.
— Das damas?
— Entendo ainda mais dos agiotas.
Gargalhada geral.
— Outro dia fez elle um soneto a Jazente.
— Alguma dama?
— Nao, senhor. E', como ha pouco disse, a freguezia onde
está por abbade. Fica na margem esquerda do rio Mendes,
d'aqui a uma hora de caminho.
— Já me não lembrava de Jazente. Vê-se que o padre só
canta o género feminino : as damas e as íreguezias. Mas digam
lá o soneto para a gente fazer uma idéa do homem.
— Apenas sei o principio.
— Diga sempre. Pelos domingos se tiram os dias santos.
— Direi. Começa assim:
Aqui eobre esta penha, que defronte
Me fica do Marão, sentar-me intento,
Para lançar ao mundo o pensamento
Antes que o sol se metta no horisonte.
— O' diabo! exclamou António Lobo. E' philosopho medi-
o LOBO DA MADRAGÔA 81
tativo, sentado sobre uma penha, a olhar para um monte. Nao
gosto do género. Prefiro a satyra.
— Elle também tem algumas satyras.
— Também! Ah ! então estou com a minha gente.
— Faz satyras, sim, mas não gosta que lh'as façam. Outro
dia o abbade de Jazente, estando deante de senhoras, ia a tirar
o solidéo e veio-lhe pegada a peruca.
— Oh! que bello laniíe ! apostrophou António Lobo.
— Vai depois, outro poeta que temos cá, Theodoro de Sá
Coutinho, fez-lhe uma glosa e diz-se que o abbade nSo gostou.
— Nao gostou ! Talvez por serem inimigos ?
— Não, senhor. Sao amigos. Nao gostou, ao que parece,
por lhe fallar na peruca ; do mais nao se importaria.
— Com que então não gostou? Pois tem homem pela proa. Faça
favor de escrever. Torne a dizer -me como o padre se chama.
— Paulino Cabral de Vasconcellos.
— Bem. Então escreva lá.
E António Lobo dictou, n'uma impetuosa pujança de im-
provisação, este soneto :
Quiz Paulino ostentar de christandade,
Co*a careca do tempo á inclemência ;
Porém esta excessiva reverencia
Involve circumstancias de vaidade :
Lembrou-se que em cabellos n'outra idade
Com Abrahão tivera competência ;
E que faz, vendo a calva em decadência ?
Pede a Deus lhe reforme a enormidade.
Tirou do solidéo ; e indo a erguel-o
A peruca descobre o casco liso,
Onde rastos não ha nem d'um só pêllo :
Mas o que sobre tudo move o riso,
E' vèr que só a Deus peça cabello
Quem muito mais carece de juizo !
As gargalhadas retumbaram de par com os applausos,
n'uma enthusiastica expansão própria de rapazes quando, ines-
peradamente, se encontram na presença de um outro que se
impõe a todos elles pelo duplo prestigio do talento litterario e
da vida bohemia.
— Vamos agora mandar isto ao homem, disse serenamente
António Lobo, para vêr se elle acode á puxada.
E logo foi chamado um portador, que levou a Jazente o
soneto -cartel.
Paulino Cabral não respondeu immediatamente. Tirou in-
formações, e soube que o auctor era um rapaz chamado Lobo,
6
82 o LOBO DA MADRAGÔA
que vinha fugido de Guimarães por qualquer estroinice prati-
cada em desabono da sabia academia vimaranense.
Resolveu-se então a responder,, nao só para não dar o braço
a torcer como poeta satyrico, mas também porque tinha ami-
gos na academia de Guimarães, onde elle próprio, alguns annos
depois, glorificou a presença do arcebispo D. Gaspar de Bra-
gança: e assim, de uma cajadada, ripostava ao bote e deprimia
o inquietador dos seus amigos vimaranenses.
António Lobo recebeu este soneto, que era a desforra do
abbade de Jazente :
Oh ! que ruslico estás, monte Parnaso,
Feito pasto de «Lobos» 1 quem dissera
Que uma tão atrevida e voraz fera
Teu alto nome havia deixar razoH
Da tua Cabalina não faz caso
Quem puro cysne d'essas aguas era ;
Vendo ter-te ultrajado a clara esphera
Outro bruto, mais feio que o Pegáso :
A Castalia está turva, o Pindo secco
E até o mesmo Apollo erra o caminho
Mettendo se na venda do Janeco !
Intractavel estás, pobre, e mesquinho ;
Pois teus bellos jardins são sujo beco,
E teus bellos cristaes botado vinho !
Se António Lobo tivesse de ficar em Amarante, este so-
neto, comquanto apenas contivesse vagas allusões, seria para
elle motivo de inextinguível resentimento, e, para ambos, causa
permanente de azedos conflictos, porque a verdade é que os
poetas satyricos sao os mais susceptíveis ás satyras dos outros,
sobretudo á primeira satyra que os alveja.
Mas a resposta do abbade de Jazente foi já recebida quando
Lobo e Gaspar Duarte iam sahindo de Amarante para Villa
Real, preparados como peregrinos para atravessar o Marão,
com seu alforge cada um.
Forneceram-lhes carinhosamente as provisões do caminho
os rapazes de Amarante, que os acompanharam até á distancia
de uma légua, e se despediram d'elles com muitas expansões
de saudade, como se fossem amigos Íntimos desde a infância.
Cada um dos que ficavam invejava a sorte d'aquelles dois
fugitivos estróinas, que iam agora metter-se ás ásperas veredas
do Marão, passagem aliás nada convidativa e agradável.
Por sua vez, António Lobo e Gaspar Duarte partiam como
para uma festa, que n'aquella agreste serra lhes tentasse o
o LOBO DA MADHAGÔA 83
animo juvenil com desconhecidas seducções e inéditos attra-
ctivos.
Em Amarante offereceram a Gaspar Duarte uma espingar-
da, que elle acceitou, porque os lobos creados nos barrocaes
do Marão poderiam incommodal-os no transito. Foi feito igual
offerecimento a António Lobo, mas elle recusou-o dizendo:
— Lobos f Não tenho medo nenhum d'elles. São da minha
familia. Havemos de tratar-nos como parentes.
Durante o caminho, especialmente até á Ovelha, onde a ve-
getação começava a ser escassa, muitas vezes Gaspar Duarte
chamou a attenção de António Lobo para os relances de formi-
dável paizagem, que relampagueavam por entre as penhascosas
quebradas do Marão.
Ao avistarem o valle pittoresco de Anciães, disse elle a An-
tónio Lobo :
— Olha que para admirar a natureza não ha como viajar a
pé. Dentro de uma liteira ou a cavallo, o horisonte parece dar-
nos a impressão de nos ir acompanhando monotonamente, como
um arrieiro a que ninguém dá importância. Mas quando viaja-
mos a pé, o caso é differente, somos nós próprios que procu-
ramos os pontos de vista, reparando n'elles, e para melhor os
contemplar subimos um cômoro, trepamos um penedo ou per-
demos alguns passos.
António Lobo, nada contemplativo, respondeu-lhe dizendo
que a natureza, vista uma vez, não tinha mais que vér: era
uma linda semsaboria, que já não offerecia surpreza a ninguém.
— São montes, são valles, são rios, são arvores, são ro-
chedos. Com estes elementos imprescindíveis tens que variar
o quadro ; portanto a variedade não pôde ser grande. Quanto
ao homem, isso é bem differente. Todos os dias surgem novos
caracteres, novas perversões, novos crimes, novas loucuras,
que fazem da alma humana um variadíssimo panorama. Eu
pendo mais para a observação do homem ; gosto de lhe surpre-
hender as paixões, a audácia ou a fraqueza, e castigar-lh'as.
Prefiro Juvenal a Virgílio.
Estas palavras são como um nitido reflexo da individuali-
dade moral de António Lobo ; elle a si próprio se julgava com
acerto.
Sem embargo, e parecendo, á primeira vista, contrariar a
sua mesma doutrina, acrescentava :
— Crês tu que eu me conheça tão bem como agora conheço
estes relances do Marão? Pois não creias. Quem sabe por que
metamorphoses a minha alma terá de passar amanhã? Quem
sabe que espécie de mulheres poderei encontrar no meu cami-
nho? E acredita tu, Gaspar Duarte, o homem não é outra coisa
84 o LOBO DA MADRAGOA
mais do que um pedaço de cera, que a mulher molda capri-
chosamente entre os dedos, fazendo d'elle um idiota, um heroe,
um anjo, um demónio ou um monstro. Tal será o homem,
qual a mulher que encontrar cada dia. Já vês que estou intei-
ramente dentro da minha doutrina : o que o homem terá de ser
amanha, nao o sabe ninguém. E' uma surpreza que está reser-
vada para todos, até para elle mesmo.
Gaspar Duarte ouvia-o com reverente fanatismo, já dis-
posto a despresar os aspectos do Marão e a concordar em que
só o homem merece ser observado entre todas as manifesta-
ções da natureza.
Felizmente, não tiveram, os dois amigos, maus encontros
na serra. Os lobos não appareceram, talvez em respeito ao pa-
rente Encontraram, sim, alguns pastores que andavam guar-
dando seus rebanhos, e que do alto dos rochedos vigiavam
attentos as rezes errantes.
— Estranhas existências estas! disse António Lobo indicando
um dos pastores. Aqui tens tu aquelle homem, immovel, além,
sobre o rochedo. O que pensa? o que sente elle? Quem sabe !
E' um livro fechado para nós ambos.
— Segundo a tua doutrina, pensa n'uma mulher.
— Que duvida ! Pensa n'uma mulher, que talvez não pense
n'elle. Pensa no bem, pensa no mal? EUa o estará inspirando
de longe, enlouquecendo-o talvez como se fosse uma rajada de
vento leste.
— Em todo o caso: infelizes creaturas, os pastores. Que
tristeza de vida a d'elles !
— infelizes, por que?
— Por viverem na solidão.
— Quem te diz a ti que um doce pensamento os não acom-
panhe constantemente na solidão das montanhas? Podes crer
que a maior parte d'elles se julga feliz.
— Isso agora !
— Não sabes a historia do rei e da camisa?
— Não sei.
— Pois eu te conto: Havia um rei, sempre triste, que não
encontrava prazeres nem cuidados que o distraíssem. Em vão
consultou feiticeiras e magos para descobrir remédio á sua in-
explicável melancolia. Davam-lhe beberagens, ensinãvam-lhe
exorcismos, mas o rei era sempre triste, cada vez mais triste
ainda. Um dia alguém foi dizer ao desgraçado soberano que
apparecera um adivinho eximio, o qual sabia o principio e o fim
de todas as cousas. Foi logo chamado á corte o adivinho,^ e
disse ao rei: «Senhor, a causa da vossa tristeza foi certamente
um sortilégio, mas é fácil combater seus funestos effeitos, com-
o LOBO DA MAEfRAGÔA
85
tanto que mandeis procurar a camisa de um homem feliz e a
vistaes, cingida a vosso corpo, por sete dias e sete noites.» E
desde aquella hora toda a criadagem do rei andou em cata de
um homem que se julgasse feliz, mas nao apparecia nenhum,
António Lobo e Gaspar Dnarte atravessando o Marão
porque os mais contentes sempre accusavam alguma razão de
queixa contra o destino.
«De uma vez foi visto um pastor tangendo a sua frauta e
bailando sósinho na chapada de um monte. — Olá, ó pastor f
chamaram-n'o. Tu és contente com a tua sorte? — Muito. — E
consideras-te feliz? — Muitíssimo. — Dá-nos cá a tua camisa,
que t'a vamos pagar a peso de oiro. — A minha camisa! —
Sim — Mas eu, senhores, nao trago camisa. Aqui tens tu, Gas-
par Duarte, como na solidão dos montes podem os pastores
considerar-se felizes. »
Os dois amigos foram amenisando com este e outros des-
86 o LOBO DA MADRAGÔA
enfados de espirito, durante umas longas dez horas, a sua ca-
minhada através do Marão, cujas asperezas soffreram com
alegria, pouco menos alegria que a dos pastores felizes, se não
era tanta.
Já se avistava ao longe no ponto culminante de Villa Real
a egreja do Senhor Jesus do Calvário, quando tornaram a en-
contrar outro rebanho de cabras.
Era guardado por uma pastora, que estava comendo uma
côdea de pão e uma cebola crua.
— Terá camisa? perguntou maliciosamente Gaspar Duarte.
— Bem vês que tem. Mas, apezar d'isso, é tão feliz, que
nem sequer deu ainda por nós.
— Então seria menos feliz se nos visse?
— Não. E' que vive em si mesma, sem dar attenção a mais
nada.
— Olá, cachopa ! gritou Gaspar Duarte-
A pegureira voltou a cabeça, espantada, e, suspendendo a
mão que ia levar á bocca, respondeu com indifferença :
— Adeus, moços.
Depois continuou a comer tranquillamente.
— A pragmática dos trat^jmentos não chega até aqui 1 disse
jovialmente António Lobo. Esta nossa gente do norte tem uma
rasoira sensata para medir as idades, que são a única base da
sua classificação social : moços e tios. Eu não fallei em Lisboa
senão com o estalajadeiro Reboto e com dois jarrêtas amigos
d'elle, mas se me tivesse avistado com pessoas da corte, havia
de me vêr atrapalhado para lhes não errar os tratamentos.
Adeus, moços f E' simples e próprio. De mais a mais isto veiu
lembrar-nos que estamos na mocidade, e que a mocidade nos
auctorisa a fazer todas as tolices que quizermos.
— Vamos a isso, respondeu rindo, Gaspar Duarte.
D^ali a pouco entravam em Villa Real pelo bairro de
Almodena.
VII
Despedida em verso
Foi em Villa Real de Traz-os-Montes que António Lobo
de Carvalho pôde livremente dar largas á sua exaltada imagi-
nação de rapaz estróina e de poeta satyrico.
Ali entrara já com a sua lenda, que fora logo espalhada
por Gaspar Duarte. Creara immediatamente novos adeptos, ra-
pazes fortes como troncos de cedro e mais valentes que os de
Guimarães.
A vida era também mais alegre, porque, apezar dos fu-
mos de fidalguia que divinisavam algumas famílias, havia maior
sociabilidade do que no vetusto e somnolento berço da monar-
chia.
Jogava-se, bebia-se, amava-se. Muitos conflictos resol-
viam-se á bordoada, e ninguém ia queixar-se ao corregedor da
comarca como em Guimarães.
As aventuras amorosas eram uma tradição galante de
Villa Real : António Lobo explicava isto dizendo que, por ser
frio o clima, o sangue affluia ao coração, aquecendo-o de mais.
Entre os rapazes que andavam na borga havia trez ou qua-
tro que tinham graça e talento. Um d'elles chamava-se Jorge
Mariz,era espirituoso e audaz, e affeiçoou-se devotadamente a
António Lobo, tornando-se, como Gaspar Duarte, seu compa-
nheiro inseparável.
Era oriundo de uma illustre e numerosa familia de Riba-
Corgo, que dera muitos frades e freiras aos conventos de todo
o reino.
o LOBO DA MADRAGOA
Estudava com os frades de S. Francisco para seguir a
vida ecclesiastica, se pôde dizer-se — estudar — o viver como
estudante sem propósitos de estudioso.
Os livros eram-lhe apenas pretexto para receber a mezada,
Um aspecto de Villa Eeal : Porto Eomao
que elle se apressava a dissipar, gastando sempre mais alegria
que dinheiro.
António Lobo gozou durante dois mezes a hospitalidade
que lhe deram os parentes de Gaspar Duarte, mas elle próprio,
comquanto lhe aborrecesse o trabalho, procurara a maneira de
conquistar maior liberdade de acção, ensinando soffrivelmente
francez e latim.
Quando, porém, se via em grandes apuros, mandava me-
moriaes em verso ás casas fidalgas, que, segundo a moda do
tempo, lh'os despachavam com generosidade.
Nós hoje não comprehendemos sem repugnância a pedin-
chice dos poetas portuguezes de outr'ora, especialmente do sé-
culo XVIII, mas ahí estão as obras d'elles a demonstrar o facto,
que parece lisonjeava tanto os poetas como os fidalgos.
Aquelles, inculcavam-se victimas do mesmo destino atroz
dos seus antigos confrades em Apollo, a maior parte dos quaes,
pelo menos, viveu na ociosidade e na miséria; estes vanglo-
o LOBO DA MADRAGÔA 89
riavam-se de ser cantados e louvados como illustres Mecenas,
protectores das musas.
Acrescia a circumstancia de que António Lobo era tido
na conta de gracioso e ladino, sendo moda em Villa Real achar
pilhéria ás suas facécias e ribaldarias.
Assoprado por esta aura lisonjeira, elle ia avançando em
phantasias doidas de turbulenta bohemia, estravagancias rebus-
cadas com o propósito de alimentar a celebridade.
Uma vez, António Lobo e os seus companheiros insepará-
veis lembraram-se de explorar a monomania amorosa de um
velho tonto, então muito conhecido em Villa Real pelo dimi-
nutivo de Quinzinho, escrevendo-lhe apaixonadas cartas em
nome de uma supposta dama mysteriosa.
Ella, por mSo d'elles, confessava-lhe o seu ardente amor,
e ao mesmo tempo um discreto pejo de lhe declarar quem fosse
sem estar bem segura de ser correspondida com sinceridade e
firmeza.
Quinzinho respondia a ponto, ardendo em curiosidade e
paixão, offerecendo-se para dar todas as provas de firmeza e
sinceridade, que a mysteriosa dama lhe exisse.
Impuzeram-lhe alguns sacrificios ; exigiram-lhe que se
prestasse a exhibições ridículas.
Obrigaram-n'o a passar em certa rua, que devia ser a da
bella desconhecida, com uma carga de lenha ás costas.
Ora n'essa rua, que era a dos Vazes, moravam, com ou-
tros estudantes, António Lobo e Jorge Mariz.
Quinzinho cumpriu a imposição.
Também o obrigaram a dar serenatas de gaita-de-folles,
passando e repassando a deshoras na mesma rua,
Os rapazes juraram guardar segredo de todas estas machi-
nações, emquanto não chegasse a hora do ultimo lance especta-
culoso que tinham combinado.
Queixavam se os visinhos de ser accordados, alta noite,
pelo toque repetido e insistente da flagelladora cornemusa.
— Quem a tange é o Quinzinho.
— Quinzinho! Está cada vez mais tolo!
Houve quem logo alvitrasse que devia andar em tudo
aquillo alguma tramóia gaiata do Lobo e dos outros.
Mas elles negavam tão obstinadamente, que conseguiam
ser acreditados.
Muitas pessoas perguntaram ao próprio Quinzinho :
— Por que andas tu, fora de horas, a tocar gaita-de-folles?
— E' cá uma coisa... respondia elle com vaidosas reti-
cencias.
— Volta de amor?
90 o LOBO DA MADRAGÔA.
— E' cá uma coisa. . .
— Quem pôde ser na rua dos Vazes? A mulher de Fulano?
A cunhada de Sicrano?
E o Quinzinho, muito lépido:
— E' cá uma coisa. . .
A verdade é que elle sabia tanto como todas as outras
pessoas.
Ao cabo d'estas provas, que se repetiram durante muitas
noites, Quinzinho recebeu uma carta mais confiante e auspi-
ciosa.
A sua dama estava satisfeita, contente de saber-se amada
com verdadeira dedicação. Como recompensa, concedia-lhe uma
entrevista muito intima, que devia realizar-se ás duas horas da
noite, quando em Villa Real apenas velassem duas pessoas :
ella e elle.
Abrir-lhe a porta era impossível, mas elle podia sem receio
subir n'um cesto, que estaria pendente de uma corda, rente
com a parede. Onde achasse o cesto, ahi era a casa : condição
única, ir com os olhos vendados apegando-se aos muros. Nâo
tivesse medo de uma queda, porque a mysteriosa dama, auxi-
liada por uma criada confidente, faria subir o cesto sem perigo.
No amor, concluía a carta, tudo depende de mutua con-
fiança : acreditasse Quinzinho tanto na sua dama, quanto ella
acreditava n'elle.
Quinzinho foi, de olhos vendados, tacteando os muros, até
encontrar pendente de uma corda um cesto vindimo.
Metteu-se dentro do cesto, que principiou a subir lenta-
mente. Mas, a meia altura do prédio, o cesto parou.
— Meu amor, dizia cautelosamente Quinzinho, puxa mais
a corda.
E uma voz, que parecia feminina, respondia de cima no
mesmo tom :
— NSo podemos, e somos duas! Ai que tormento! que
vergonha !
Quinzinho, tendo arrancado a venda, perguntava :
— Mas onde estou eu?
— Estás no cesto, filho.
— Nao é isso! Pergunto o prédio.
— O prédio é o meu.
— Mas quem és tu?
— Sou a mulher que te ama.
— Então, se me amas, puxa mais a corda.
— Nao posso ; não podemos.
— Ora esta ! EntSo deixa-me ir para baixo.
E de cima, a mesma voz, simulando grande perturbação :
o LOBO DA MADRAGÔA
91
— O meu pae accordou ! Foge ! foge !
Fugir, como? Quinzinho, se tivesse levado uma navalha,
haveria cortado a corda, embora apanhasse um tombo mestre.
Assim, na impossibilidade de escapulir-se, agachou-se, muito
Qninziulio pendurado no cesto
encolhido, dentro do cesto, esperando a cada momento a cólera
implacável de um pai de familia, ultrajado na fachada do seu
prédio.
A cólera não veio nunca, mas veio o frio da manhã, e a
certeza de que a bella dama não apparecéria mais.
Quinzinho, de tempos a tempos, gemia.
Quem poderia ouvil-o á hora do somno profundo n'uma
terra de província?
92 o LOBO DA MADRAGÔA
No dia seguinte, quando Quinzinho fez rir Villa Real in-
teira, apparecendo dentro do cesto vindimo, pendurado da ja-
nella de António Lobo, soube-se que uma visinha tinha ouvido
gemer de noite.
Ella própria o confessou dizendo :
— Ouvi, mas pensei que fosse alma penada. Metti a cabeça
debaixo da roupa, e rezei um Padre Nosso, a tremer com
medo.
Esta brincadeira, que teve em toda a villa um «successo
de gargalhada», como dizem hoje em dia os francelhos do no-
ticiário, foi o ponto de partida para a organização de um club,
que António Lobo planeou com o propósito, dizia elle, de dar
cabo do «rançoso Amor dos lusos.»
O leitor quer, decerto, que eu lhe troque isto em miúdos.
O «rançoso Amor dos lusos» era o namoro por meio de
«gargarejos nocturnos», epistolas amatorias, sonetos, glosas,
madrigaes, olhai-es languidos, ademanes aífectados e outras
denguices piegas.
As freiras clarissas n5o escapavam a este programma in-
transigente, que visava também a supprimir o tiroteio de motes
e glosas galantes nos abbadeçados, vulgarmente conhecidos
pela designação de «outeiros.»
António Lobo escreveu, com a collaboração dos seus ami-
gos, o texto do programma, justificando-o primeiro por meio
de um preambulo elucidativo.
Graças ao caderno manuscripto em que mão desconhecida
reuniu as memorias biographicas de António Lobo, posso trans-
crever alguns períodos d'esse revolucionário preambulo :
«Todos os animaes nascem predestinados ao amor, por
condição natural a que só o homem obedece com conhecimento
de causa, ao passo que os outros seres mais inferiores o fazem
cegamente, apenas por bruto instincto.
«Que uns d'estes seres, occupando logar secundário na or-
dem da creação, sejam excessivamente selvagens no amor,
como por exemplo os tigres e ainda os gatos que d'elle3 deri-
vam remotamente; que outros sejam em demasia ternos, e mi-
mosos, taes como os pombos, coisas são essas que sem esforço
podem comprehender-se ; mas deve causar justa estranheza, e
até repugnância, que o homem, dotado da faculdade de ra-
ciocínio, não saiba graduar suas paixões amorosas, de modo
a não amesquinhar nem o amor, nem a razão, nem a si
próprio.
«Em o nosso paiz os amantes e namorados chegaram ao
extremo de tornar- se pessoas ridículas, que merecem escar-
neo. São peraltas, chechisbéos em ponto de rebuçado, são es-
o LOBO DA MADRAGÔA 93
padachins por amor, sSo freiraticos de grade, são vates de
olhos em alvo e mão no peito, sSo jarretas de flor serôdia, são
fedelhos a engatinhar para o templo de Gnido, são todos elles
uma sucia e cambada de parvoeirões amanteticos, que devem
ser corridos e monteados para onde nào tornem a fazer damno
á dignidade humana, nem prejuizo ao senso-commum.
«D'esta entrepreza tao necessária como sympathica encar-
rega-se voluntariamente o «Grupo philosophico de Villa Resl»,
que de tão louvável resolução deita o presente clamor, para co-
nhecimento e governo de todos os habitantes de um e outro
sexo.
«Amem os portuguezes as portuguezas, que não ha mais
bellas mulheres no orbe terráqueo. . .»
Aqui, não resistimos á tentação de interromper o pream-
bulo para lembrar que se está lendo nas entrelinhas a recorda-
ção da perfídia de Min e da patriótica parlenda do estalajadeiro
Reboto em Lisboa.
A experiência é a mestra da vida, por ser a historia d'ella,
escripta por cada homem.
<Amem-n'as, continua o preambulo, porque é seu natural
e seu goso. Amem-n'as com puro ou impuro amor, com vil
egoismo ou nobre desinteresse, mas devem fazel-o sem den-
guice, nem requebro, nem galanteria excessiva, que torna di-
gna de riso uma sublime lei da natureza e um fraternal preceito
da religião christã.
«Ame- se a camponeza ou a dama, a pastorinha do monte
ou a fidalga de solar^ mas amem-se para que ellas o saibam,
não para que o saibam todos. Seja um negocio entre dois, e
não uma transacção publica e notória. Dizem os chatins que a
alma do negocio é o segredo; pois seja-o também d'este nego-
cio em que dois corações ajustam viver um para o outro, com
interesse commum.
«Guerra aos peraltas e casquilhos enamorados, aos pinta-
legretes e tafues namoradiços. Guerra aos freiraticos, aos assu-
carados e delambidos galans. Fiquem só os amantes que sai-
bam honrar a sua espécie e a sua pátria, bem como o bello
sexo, que devem saber merecer».
Este preambulo é um grito revolucionário, lançado em pleno
século xvni contra a pieguice amorosa dos portuguezes, que já
vinha do século anterior como sendo moda e tradição geral -
mente acceita.
Ha n'esta brincadeira de rapazes o que quer que seja de
alto programma de restauração nacional pela sobriedade do
sentimento, e de restauração da raça pelo corte cerce dos vicios
de educação.
94 o LOBO DA MADRAGÔA
Nao deve admirar-se o leitor se lhe eu disser que a este
pregão respondeu logo outro pregão de um grupo que a si
mesmo se denominou «tradicional», e cuja doutrina se oppunha
fundamentalmente á de António Lobo e dos seus amigos.
Aqui temos, pois, constituídas em Villa Real duas espécies
de «academias», ao gosto d'aquelle século, para discutir e dis-
sertar sobre theses philosophicas ; com a differença, porém,
de que estes jovens académicos juntavam a acção á pala-
vra, e combatiam a braços depois de terem discutido littera-
riamente.
Vê-se que o espirito de António Lobo avançava e progre-
dia, porque em Villa Real já o infeliz amante de Min nSo era
apenas o chefe de uma horda de revoltos arruaceiros, mas de
um grupo de rapazes que desfraldavam um pendão litterario,
comquanto não estivessem ainda isentos da pecha do tempo: o
«sport» da arruaça.
O «grupo philosophico» fazia correrias nocturnas em Villa
Real com o fim de impedir os «gargarejos» e as serenatas, no
que encontrou apoio ém todos os pais de familia, que diziam
rindo: aCom esta brincadeira lucramos nós; sempre é uma
ronda vigilante.»
Houve collisões entre os dois grupos, mas o maior confli-
cto occorreu por occasião de um «outeiro» no convento de
Santa Clara.
Fecharam-se dentro da grade os freiraticos para glosar os
motes das clarissas, e saborear os pasteis e o o Porto» que el-
las galantemente liberalisavam aos seus poetas.
O «grupo philosophico», querendo estorvar a festa, mu-
niu-se de tambores, zabumbas, trombones, requintas, chaves
e panellas velhas e marchou em pé de guerra para o campo do
Tabolado.
Estava o «outeiro» no apogeu do enthusiasmo poético,
quando chegou á portaria do convento, com o mais discreto
silencio, esta «troupe» de endiabrados instrumentistas.
Em occasião de abbadeçado, a liberdade e o regosijo nos
conventos eram communs ás madres, ás noviças e até ás cria-
das da casa, vulgarmente denominadas «tachos.»
Ao passo que as freiras se ajuntavam em tertúlia na grade
da abbadeça, escapando-se alguma d'ellas para qualquer outra
grade, onde de relance pudesse trocar um segredo com o apai-
xonado galãn ; as criadas vinham para as janellas e d'ahi ati-
ravam motes, gulodices e beijos aos felizes dominadores dos
seus corações.
De modo que pôde dizer-se que os «outeiros» eram dois,
o das freiras e o das criadas, por igual animados.
o LOBO DA MADRAGÔA 95
Na grade da abbadeça havia mesa posta durante trez noi-
tes consecutivas; serviço permanente de bolos, pudins, fiam-
bres, vinhos e licores.
As freiras estavam enjauladas ao fundo da grade e senta-
das em cadeiras de espaldar, dispostas em semicírculo.
Da parte de fora agrupavam-se, em torno da mesa, os frei-
raticos, que ordinariamente se punham em pé para recitar as
suas glosas. •
Motes e glosas eram outros tantos vehiculos amorosos,
que transportavam declarações, galanteios, ás vezes remo-
ques ciumentos, do interior para o exterior da grade e vice-
versa.
E, quando era preciso, também a «roda» trabalhava pas-
sando, de dentro para fora ou de fora para dentro, uma epis-
tola, um mimo, qualquer lembrança gentil, que assim escapa-
vam á observação do conspícuo auditório.
Dentro da grade, havia nos «outeiros» d'aquelle tempo um
«cravo» ou espineta, espécie de piano primitivo, em que as frei-
ras se acompanhavam para cantar algum dos «minuetes» então
em voga.
A abbadeça e as outras monjas fingiam não entender que
a volta d'ellas Cupido esvaziava o carcaz despedindo settas in-
cendiarias.
Já, na sua mocidade, tinham aquellas vetustas madres sido
attingidas, em occasião idêntica, por iguaes farpões. Conheciam-
Ihe a tempera, o impulso e o sybillo. E sorriam gravemente,
como n'um êxtase pudibundo, recordando doces horas do pas-
sado, ternas memorias fugitivas, que ellas estavam agora tra-
duzindo mental e saudosamente n'esta simples phrase : «O
amor.»
As criadas das Claras deram fé de se aproximar do muro
do convento um rancho de homens embuçados, mas julgaram
que seriam Adónis seus, que viessem fazer-lhes agradável
surpreza.
Estava um joven ecclesiastico no afogo de glosar um mote
que lhe dera agua pela barba, quando de repente o rancho dos
embuçados rompeu n'um tremendo charivari alroador, verda-
deiro temporal de notas dissonantes.
O mote exigia rimas difíiceis e provocara, por isso, a atten-
çâo geral :
«O coração tem caprichos».
E o joven ecclesiastico, que diziam ser admirador platónico
de uma noviça trintona de Villa Pouca d'Aguiar, tendo-se final-
96 o LOBO DA MADRAGÔA
mente desembaraçado das dificuldades da glosa, ia dizendo
com inflammada emphase :
De Amor aos doces tormentos
Não resistem trovadores,
Nem monarchas, nem pastores,
Nem cadeas, nem conventos,
Nem os lapões friorentos,
Nem os aéreos cochichos.
Até os santos dos nichos. . .
N'isto esíusiou como inesperado vendaval um conjuncto
medonho de sons, guinchos agudos, ribombos rouquenhos, fi-
fias irritantes, que arripiavam o ouvido e o cérebro.
O joven ecclesiastico deteve-se, muito pallido, com os «san-
tos dos nichos» entalados nos gorgomilos, talvez por castigo
de sua irreverência. E todos os seus ouvintes, especialmente
as freiras, não menos lividas do que elle, olhavam uns para os
outros, surprehendidos, confusos, como se de prompto nSo ati-
nassem com a explicação de tão estranho successo.
De repente uma voz exclamou troando para se fazer ouvir:
— E' o «grupo philosophico !))
E outras vozes confirmaram muito de rijo :
— E' o grupo!
— E' o grupo !
Accenderam-se então os espirites guerreiros dos freiraticos,
como chamma que uma súbita viração atiçasse.
— Temos que desaffrontar-nos, berrava um.
— Vamos a elles ! alvitrava outro.
— A elles ! repetiam muitos ou todos.
As freiras não quizeram ouvir mais. Correram em tropel
para a porta interior da grade, assustadas, empurrando-se,
acotovellando-se, perseguidas por aquelle ingente fragor de
sons discordes que se repercutia, retumbante, no vasto corre-
dor, mal illuminado por lanternas sextavadas suspensas do tecto.
Os freiraticos procuravam as nodosas mocas, de que por
cautela se faziam acompanhar todas as noites.
Alguns, já sobraçada a moca, atafulhavam os bolsos de
rebuçados e pasteis, outros despejavam, guellas abaixo, copos
de velho «Porto», estimulando-se para a briga.
Em dois ou trez minutos a grade tomara o aspecto de mu
campo de batalha, coberto de destroços e ruinas: cadeiras des-
alinhadas, bolos espalhados fora das bandejas de prata, vinho
entornado, copos partidos ou tombados sobre a mesa.
A hoste dos freiraticos, disposta em ordem de batalha, va-
lentões á frente, abriu a porta que dava para o Campo do Ta-
bolado e sahiu.
o LOBO DA MADRAGÔA 97
Sentindo este movimento, o «grupo philosophico» puxou
com maior fúria o clangor dos trombones e a percussão das
caixas de rufo.
Era uma inferneira de ninguém se entender: parecia o ini-
cio de um combate selvagem.
E, quando os freiraticos avançaram, António Lobo e os
seus companheiros jogaram contra elles os pesados instrumen-
tos como armas de guerra, ouvindo-se então o retinido aspér-
rimo do choque das mocas com os tambores, os trombones e
as panellas velhas.
O combate foi rápido e decisivo. Dentro em pouco o Campo
do Tabolado estava limpo de combatentes válidos; apenas ja-
ziam no chão trez homens inutilisados.
Eram dois freiraticos, e Jorge Mariz Um dos freiraticos,
justamente o joven ecclesiastico que ficara engasgado com a
sua glosa, cahira aturdido pela pancada de um tambor, que
lhe enfiaram pela cabeça abaixo. Jorge Mariz tinha apanhado
uma forte mocada em cheio no peito, e perdera os sentidos.
António Lobo voltara pouco depois com Gaspar Duarte
para reconhecer as victimas, inquieto por lhe faltar Jorge Mariz.
Vendo-o cabido por terra, ambos o levantaram em braços.
Quasi ao mesmo tempo, vieram trez freiraticos procurar os
seus correligionários.
Uma voz de mulher disse com serena firmeza, do alto da
janella :
— Parece que esses dois são o Padre Gonçalo e o Torcato
de Mouçoz.
Ao ouvir pronunciar estas ultimas palavras, outra freira
deu um gritinho de saguim e recolheu-se da janella.
Mas aquella mesma voz continuou resolutamente :
— Se precisardes alguns soccorros, vinde por elles á
portaria.
Então Padre Gonçalo, o da glosa, respondeu, já restabele-
cido, desembaraçando-se do aro do tambor :
— Não, minha açucena. Eu não preciso. Estou incólume.
E a mesma voz de mulher, n'um tom de orgulhosa affouteza :
— Sois um verdadeiro Roldão !
Jorge Mariz teve uma copiosa hemopethise durante a noite,
o que alvoroçou de receio e cuidado os seus amigos.
— Isto não está bom, disse António Lobo. Para este rapaz
se tratar necessitava maior descanço e commodidade.
— Se me levam para casa, inquieto minha mãe, pobrezi-
nha I Antes para Landim.
— E' verdade ! Queres tu ir para Landim ? respondeu An-
tónio Lobo. Arranja-se uma liteira, e eu acompanho-te.
98 ' o LOBO DA MADRAGÔA
Entretanto chegara um dos do grupo e dissera :
— António Lobo! tu precisas safar-te quanto antes.
— Então só eu é que sou culpado !
— Somos todos, mas tu és o «Mafarrico de Guimarães»,
conhecido como tal, e toda a gente se queixa de que accordou
por tua causa. Isso é que te nSo perdoam: que lhe estragasses
a noitada.
— Pois dize lá a essa gente toda que eu vou levar o Mariz
a Landim, e que entretanto podem dormir a somno solto.
Foram uns arranjar a liteira, e António Lobo, vendo Jorge
Mariz mais tranquillo, sentou-se e escreveu :
Pátria de valentões, paiz guerreiro,
Só tu, Villa Real, comtigo falio ;
Vão Pansas e Roldões jogar o talo,
Ou vSo na tua escola andar primeiro.
Quem ha que os teus aguarde no terreiro,
Se até S. Jorge foram desmontal-o,
Pois indo nas mais terras a cavallo
N'esta é capucho o santo cavalleiro !
No triumpho de Baccho a villa armada,
Uns com brancos arnezes, outros tintos,
Â's moças todas dão uma assaltada.
Fez-lhe Baccho os broqueis, compoz-lhe os cintoa
E soltou-lhe um pendão co' esta fachada :
Todos são pobretões, mas mui distinctos.
Jorge Màriz abriu os olhos e perguntou :
— O que estás tu fazendo, ó LoboV
— Estou a despedir-me de Villa Real.
A allusão a S. Jorge explica-se pelo facto de ter o senado
villarealense resolvido que, na procissão de «Corpus Christi»,
d'aquelle anno, o guerreiro santo fosse em andor e não a ca-
vallo.
Quando dois os trez estudantes tornaram conhecido em
Villa Real este soneto, os fidalgos, tratados de pobretões, man-
daram os seus moxillas em perseguição dos fugitivos. Alguns
freiraticos, sentindo as costas quentes, quizeram acompa-
nhal-os.
Tem-se escripto que António Lobo foi alcançado pelos seus
perseguidores e espancado por elles. Esta noticia carece de
fundamento, porque entre a composição do soneto e a organi-
zação da cavalgada vingadora, medearam horas.
Lobo calculava o que viria a acontecer e por isso não per-
deu tempo no caminho.
o LOBO DA MADRAGÔA 99
Já muito a seguro, dizia elle a Jorge Mariz :
— A esta hora, se os rapazes divulgaram o meu soneto,
estão rabiando os valentões de Villa Real. Olha se elles me
apanhassem agora lá !
Dentro da liteira, António Lobo ia distraindo com os seus
ditos graciosos e picantes o pobre Jorge Mariz, a quem o ba-
lanço do vehiculo incommodava por vezes.
— Desconfio, dizia-lhe Lobo, que esta liteira é muito mais
brava do que o animo dos valentões de Villa Real. E comtudo
os machos são apenas dois. Os de fora. . . bem entendido.
VIII
Therezinha
E agora tornamos ao momento em que este romance prin-
cipiou.
O leitor já conhece de sobra a vida airada do «Mafarrico
de Guimarães» até esse momento, em que uma nova phase da
sua existência ia começar.
Jorge Mariz chegou a Landim, acompanhado por António
Lobo, mas não encontrou seu tio, o padre Dom Joaquim, que
estava na quinta da Palmeira a recrear-se no exercicio da pesca.
— Melhor! disse Jorge. Vamos para a Palmeira, que sem-
pre é mais linda e variada terra que Landim.
A jornada era curta, de Landim á Palmeira, e não aggra-
vou, por isso, a fadiga de Jorge Mariz, que apesar de ter ainda
alguma expectoração sanguínea, vinha animado da esperança
de uma cura radical.
Os rapazes confiam tanto da mocidade, quanto os velhos
se receiam da velhice, que já de si mesma é uma doença grave.
O padre Dom Joaquim Mariz sobresaltou-se quando viu
enfermo o sobrinho, mas approvou a mudança de ares, e rece-
beu de boa sombra António Lobo, cuja apresentação Jorge fi-
zera o mais summariamente possível.
E' que António Lobo lhe tinha recommendado :
— Não digas quem eu sou, para evitar que teu tio veja
logo em mim um inimigo dos frades e, portanto, um péssimo
hospede.
Comtudo esta prevenção não teria sido necessária, porque
o LOBO DA MADHAGÔA 101
António Lobo se mostrou discreto e agradável a ponto de con-
quistar as sympathias de quantos cónegos regrantes estavam
«breviando» na Palmeira.
Especialmente Dom Joaquim Mariz se lhe confessou aííei-
çoado e reconhecido pelos serviços prestados ao sobrinho.
— Fizeste bem, dizia o cónego a Jorge, em trazer um
amigo da tua mesma idade para te acompanhar e distrair. Isto
é casa de padres, cuja recreação única se resume na pesca.
Nós divertimo-nos pouco, e ainda menos podemos divertir.
Estava-se na primavera de 1758, justamente na occasiào
em que principiavam a recrudescer as hostilidades entre os
cruzios da Palmeira e os benedictinos de Santo Thyrso á conta
da recente construcção da «pesqueira nova».
António Lobo viu logo n'esta questão uma variante ao seu
génio turbulento, que poderia tornar mais agitada a vida mo-
nótona da Palmeira.
Sem querer saber de que lado estava a razão, manifestou-
se, immediatamente, a favor dos cruzios contra os bentos, ani-
mando-os á lucta e offerecendo-se para seu auxiliar e pro-
pugnador.
Os cruzios gostaram de encontrar um rapaz de animo va-
loroso, que de nada parecia ter medo, e redobraram de carinhos
para elle.
Chegara em boa hora, no momento opportuno. Agradece-
ram á fortuna o ter-lh'o enviado n'aquella occasião, e fizeram -
lhe saber que folgariam muito de o reter ali como seu hospede.
António Lobo estava satisfeitíssimo : tinha boa mesa e boa
companhia, gastava o tempo na caça, na pesca e na leitura.
De vez em quando sahia-se com alguma satyra, que os
padres cruzios apreciavam devidamente, sobretudo quando era
desfechada contra os seus visinhos benedictinos.
Jorge Mariz ia melhorando» a olhos vistos, mais por eífeito
da vida tranquilla que ali passava, do que por virtude de dro-
gas medicinaes que houvesse ingerido.
O tio era adversário convicto da medicina e dos médicos,
aos quaes, como outr'ora Frei Bartholomeu dos Martyres, cha-
mava {(trampões», isto é, mistificadores.
— A saúde ou a doença, dizia elle ao sobrinho, é o próprio
individuo que a faz. Eu tenho feito a minha saúde. Tu fizeste
a tua doença, não sei como, nem quero saber. Mas como acer-
tadamente te propuzeste agora a ter saúde, has de tel-a, e já a
vais tendo, que nem pareces o mesmo de quando aqui chegas-
te. O nosso António Lobo esse está são como um pêro. Ainda
elle ha de compor um poema em honra dos bons ares da Pal-
meira e das lindas vistas do rio Ave.
102 o LOBO DA MADRAGÔA
António Lobo, sempre que isto ouvia, agarrava pelos ca-
bellos a opportunidade de adular os cruzios :
— Eu hei de cantar, sr. Dom Joaquim, mas é a derrota
dos bentos sobre o rio Ave no dia em que a Palmeira assegu-
rar a reivindicação dos seus direitos de propriedade.
Os cruzios riam -se, e por sua vez o estimulavam dizendo :
— Vamos a isso, que já temos as nossas hostes augmen-
tadas com o feliz advento de um legionário esforçado.
E António Lobo, sempre no mesmo trilho de lisonja, pon-
do-se em attitude de continência militar :
— Prompto, meu capitão.
Passado algum tempo, notaram os cruzios, e notou Jorge
Mariz, que António Lobo, não obstante mostrar-se sempre
muito interessado nas contendas com os benedictinos de Santo
Thyrso, parecia menos jovial, e um nadinha contemplativo,
contra a inclinação natural do seu génio.
— Já está aborrecido da nossa hospedagem fradesca, dis-
se-lhe um dia o padre Dom Joaquim Mariz.
— Pelo amor de Deus ! contestou com sincera vivacidade
António Lobo. O maior sacrifício a que poderiam condemnar-me
era levarem-me d'aqui para outro sitio, tão bem e tão contente
estou.
N'isto fallava o Lobo inteira verdade.
Os cruzios, em vista d'esta peremptória declaração, con-
cluíram que o hospede tinha faltas de dinheiro e cotisaram-se
para lhe fazer a amável surpresa de collocar sobre a almofada
do seu leito um dobrão embrulhado n'um papel que dizia :
«Lembrança de amizade dos padres hospedeiros ao seu estimá-
vel hospede, o qual certamente os desculpará da benévola ou-
sadia».
Era a primeira vez, depois da morte do pai, que alguém
lhe facilitava a posse de uma quantia avultada.
O dobrão, essa linda moeda de oiro que tinha a efíigie de
el-rei D. João V, valia 24$000 réis.
Um presente que parecia cahir do céu.
António Lobo também explorou, além das contendas com
os frades thyrsenses, o gosto que alguns padres cruzios mos-
travam em praticar com elle a lingua franceza, que a respeito
do latim bem podiam elles ensinar-lh'o a fundo.
D. João V conseguira, pelo exemplo, introduzir em Portu-
gal os usos e costumes francezes, as cabelleiras, as camisas,
as canções, todas as galanterias de Pariz. Um peralvilho era
um «frança.» Os que, fallando, cultivavam a «francezia,» mes-
clando de gallicismos a nossa lingua, começaram a ser trata-
dos de francelhos e galliciparlas pelos bons puritanos.
o LOBO DA MADRAGÔA 103
O gosto pela lingua franceza invadiu os salões, as acade-
mias e os conventos.
D. João V morreu, mas a moda ficou.
Os cruzios de Landim e da Palmeira foram também na
corrente da francezia, como os seus confrades de muitas outras
communidades tanto masculinas como femininas.
Annos volvidos, o abbade de Jazente, Paulino Cabral, des-
crevendo as manias ridículas dos frades, só achou para attri-
buir aos cónegos regrantes a de gostarem preferentemente do
idioma francez.
Refiro-me a um soneto, que tem aqui opportuna transcri-
pçao :
Desterrado murmura o Jesuitn,
O Dominico seu logar pretende,
O Nery «Novos Methodos» defende,
E ás ricas confessadas faz visita:
Intrometter-se o Grillo premedita;
O Cruzio, que está só, «francez aprende,»
E em casa do juiz, de quem depende,
Entra com pés de lã o Carmelita:
O Capucho no estrado toma assento,
Exorcisma, e responsa qual juer damno,
E depois sempre traz para o convento:
O Loio é fofo, triste o Graciano,
Tolo o Bernardo, comedor o Bento,
O Franciscano, em flm, é Franciscano.
Como estivesse ainda viva na memoria de António Lobo
a resposta do abbade de Jazente á satyra que lhe mandou ao
passar em Amarante, aproveitou o nosso heroe, que a ninguém
perdoava em taes assumptos, a occasião de lhe dar azedo tro-
co a este soneto com esfoutro, obrigado ás mesmas consoan-
tes:
Que lhe importa ao Abbade o Jesuita ?
Do Nery, ou Dominico que pretende ?
Vá cuidar nas ovelhas, que defende,
Que pode no bispado haver visita:
Saber quer o que o Grillo premedita,
E que francez é o que o Cruzio aprende?
E' darem-lhe as lições de que depende.
Para o metterem leigo Carmelita.
Não torne « fazer outra, que eu assento
Que do santo cordão sentirá damno,
Se inquietar o Capucho no convento:
Perdem muito o Bernardo, e o Graciano;
Não se metta c'o Loio, deixe o Bento,
E...
104 o LOBO DA MADRAGÔA
Aqui tenho de suspender a transcripçSo, porque António
Lobo termina mandando que o abbade de Jazente beije em lo-
gar impróprio o frade franciscano.
Estes dois sonetos servem, comtudo, para mostrar quanto
o Lobo se insinuou no animo dos cruzios da Palmeira, até no
es(imular-lhes o gosto pela lingua franceza, e quanto ficaram
sempre mal avindos os dois poetas, António Lobo e o abbada
de Jazente, por causa d'aquella troca de sonetos em Ama-
rante.
E' que, mais uma vez o dizemos, os poetas satyricos não
prescindem de represálias uns contra os outros.
Sem embargo dos regalos e commodidades que os cónegos
regrantes prodigalisavam na Palmeira ao seu dilecto hospede,
nSo ha duvida que elle parecia agora menos estouvado e le-
viano.
Os cruzios não deram a principio com a causa d'esta trans-
formação, posto que a estranhassem; mas descobriu-a logo Jor-
ge Mariz sem que o seu amigo lh'a confessasse.
António Lobo amava ; eis tudo.
Amava n'uma doce idealidade, pela primeira vez na sua
vida.
Tinha já vinte e oito annos, e comtudo não havia amado
ainda d'aquelle modo, porque nem as cachopas de Guimarães
e Villa Real, nem a «tancareira» de Cantão puderam dar-lhe
sensações de immaculado lyrismo no amor.
António Lobo encontrara, finalmente, uma rapariga casta,
de uma honestidade varonil, digamos assim, porque sabia im-
por respeito a um homem habituado a conquistas fáceis e con-
tel-o, reverente, como deante de um altar onde a virtude tives-
se culto.
Era a Therezinha de Villalva,
António Lobo experimentou então na pratica aquelle senti-
mento lerno e recatado que, no programma do «grupo philoso-
phico», tinha sido apenas uma theoria excêntrica.
Amava com mysterio, em segredo, que é talvez o maior
encanto do amor; amava sem ostentação e descaro; amava go-
zando uma felicidade até ahi desconhecida para elle, recolhido
agora n'uma concentração muito intima e muito funda.
Jorge Mariz disse- lhe uma vez:
— O' António, tu gostas da Therezinha?
Lobo ficou surprehendido com esta inesperada pergunta,
pois que suppunha que tinha aquelle delicioso amor bem escon-
dido no coração; e ficou desgostoso também, porque não que-
ria que se quebrasse o encantador mysterio que tão grato e apra-
zível lhe era.
o LOBO DA MADRAGÔA 105
Respondeu, pois, contrariado :
— Gostar ! Acho-a apenas boa rapariga, e por isso a es-
timo.
Mariz insistiu:
— Mas parece-me que, o julgar pelo que me contaste em
Villa Real, não estimaste assim a china.
António Lobo replicou com mal disfarçada indignação:
— Ora essa ! Pois tu queres comparar uma innocente ra-
pariga do campo com uma mulher perdida, que já trazia do
Oriente um curso completo de vicios e torpezas ! Nao compa-
res as duas mulheras, nem os sentimentos que ellas podem
inspirar. . . aos outros.
Repugnou a António Lobo a lembrança do tempo que pas-
sara na companhia de Min; parecia-lhe que tinha sido um so-
nho negro que o asphyxiava ainda.
Mariz carecia de experiência em negócios de amor, mas
compensava-a pela instinctiva penetração própria da sua idade
em taes assumptos.
Os rapazes adivinham, nos segredos do coração, o que não
sabem ; ao passo que os velhos, ainda os mais condecorados
nas campanhas amorosas, nem sempre descobrem com faci-
lidade as affeições dos moços que com elles convivem.
Sirvam de exemplo os padres cruzios da Palmeira, mui-
tos dos quaes teriam, por ventura, amado muito.
Quem descobriu a paixão de António Lobo pela Therezinha
de Villalva não foram elles, mas Jorge Mariz, um rapaz.
Faz isto lembrar as creanças da beira-mar, que não anda-
ram ainda no mar largo, mas que são capazes de enxergar
muito ao longe a mastreação de um navio, que os velhos ma-
rinheiros não descobrem.
Mariz quiz ter a certeza de que se não havia enganado, e
formulou uma pergunta astuciosa :
— Então, se apenas a estimas, não te oppões a que alguém
possa amal-a?
António Lobo fez-se pallido como um combatente que se
vê apertado contra o ultimo entrincheiramento, e replicou com
vivacidade:
— Amal-a tu?
Mariz desfechou uma sonora gargalhada e respondeu :
— Socega, homem! Quiz apenas levar-te a confessar um
sentimento que eu já havia surprehendido, e que tu negavas.
— Negava, é certo. Desculpa-me. Mas eu nunca na minha
vida tinha sentido esta espécie de amor, cuja confissão me pa-
rece ser uma publicidade que o profana. E' um estado d'alma
que se compraz no mysterio e no recato. Dá-lhe isso um certo
106 o LOBO DA MADRAGÔA
caracter de sigillo religioso, de segredo de confessionário, que
guardamos respeitosamente dentro da nossa própria consciên-
cia. Eu mesmo, a principio, não sabia classificar este senti-
mento. Nao sabia que era amor.
— Bravo ! E' o programma do nosso grupe de Villa Real
posto em acção !
— Mas assim é, realmente ! Já tenho pensado n'isso com
alguma surpreza, porque eu, até chegar á Palmeira, não tinha
conhecido senão o amor que deve occultar-se, não porque seja
puro, mas, ao contrario, por ser impuro.
— Estás transformado !
— Não sei se estou. Sei apenas que encontrei em mim
mesmo um aspecto novo do meu próprio ser.
— Apaixonado é que tu estás. Aposto que tens feito versos
d'amor á Therezinha.
— E' curioso ! Não tenho. Dir-se-ia que os sei sentir, e não
os sei fazer. Ao pé d'ella fallo-lhe de todas as cousas que ella
pode entender, as cousas mais vulgares d'este mundo. E sin-
to-me então poeta sem versos e sem rimas; poeta de um es-
tranho encanto que me inebria e que, se o passasse ao papel,
ficaria profanado deante de mim próprio.
— Mas então é o amor dos anjos!
— Não, é o amor que todos os homens, decerto, devem
sentir uma vez na vida, porque eu, que nunca tive pretensões
a ser anjo, o sinto agora pela primeira vez aos vinte e oito an-
nos.
— Mas a que leva esse amor? Ao casamento ? O' António !
muito me havia de rir, se te visse casado, pai de meninos,
chefe de família pacato e pesadão !
— Deus me livre!
— Deus te livre?! Então para que amas tu? Para perde-
res a Therezinha, cuja virtude encareces?
— Não, nunca. Amo-a para ser feliz um momento na mi-
nha vida. como um caminheiro que se senta, cançado, á som-
bra de uma boa arvore e, depois de restauradas as forças, se-
gue seu caminho. Não tenho génio para casado, nem o posso
ser, porque sou pobre e, com franqueza, não gosto de trabalhar.
Habituei-me, como sabes, a viver ao acaso, sem eira nem beira,
esperando sempre vér cahir do céu o maná do deserto. Que
mulher toleraria esta vida, e que outra vida differente toleraria
eu ? Mas suppõe que eu chegava á allucinação de me casar. . .
— Ah ! admittes a hypothese ?
— Admitto-a apenas para discutil-a e combatel-a. No dia
em que eu tivesse a primeira desillusão ou o primeiro desgosto,
seria o mais infeliz e o mais revoltado dos homens. Iria por
o LOBO DA MADRAGÔA 107
esse mundo fóra pregar contra o casamento, confessando pu-
blicamente, em toda a parte, que só tinha escripto desconcha-
vos no programma de Villa Real : que a mulher, ainda que seja
a mais bella das portuguezas, é só para vêr e nSio para despo-
sar. Podes crer que havia de crear fanáticos, de fazer escola.
Eu sinto em mim uma costella revolucionaria de Luthero.
— Se fizesses escola, acabava-se o mundo! disse Jorge
Mariz rindo.
— Nao. Acabava-se o casamento, o que é differente. Nas
espécies irracionaes não ha casamento, e ellas subsistem. Eu
tenho sido irracional até hoje; voltarei a sel-o talvez amanha.
Mas parei agora dentro de um parenthese de raciocínio encan-
tador, sei que existe ainda a mulher pura e honesta, que existe
para mim, e que pode existir para os outros, ao menos uma
vez na vida, e depois, provavelmente, fecha-se o parenthese, e
acabou-se, nao íica mais nada.
— Fica sempre o poeta com a sua imaginação fogosa.
— Não confundas. O meu génio é que é fogoso; a minha
imaginação, não. A satyra é para mim um desafogo necessário,
uma válvula de segurança que eu abro de vez em quando para
não morrer asphyxiado. Imaginação fogosa, eu t Vê lá se fui
capaz de idealisar uma tal mulher como a Therezinha de Vil-
lalva antes de a ter encontrado. Posso compor uma grosa de
sonetos para descompor o abbade de Jazente, mas não serei ca-
paz, nunca, de inventar uma novella de cavallaria. «Vade re-
tro» !
E, como se quizesse voltar de novo á silenciosa concen-
tracção da sua alma, António Lobo sorriu dizendo que bastava
de parola : queria ir pescar no rio. E foi.
O leitor já conhece, vagamente, a Therezinha de Villalva.
Mas certamente não desestimará que eu lhe desenhe o per-
fil d'essa linda camponeza, que inspirou a António Lobo um
amor purificado de vulgares materialidades.
O leitor seria menos exigente do que a leitora n'este ponto,
razão de mais, porém, para eu querer esboçar o retrato de The-
rezinha : gosto de ser gentil com as damas... até nos romances.
Sim, não ha duvida que as leitoras estarão esperando algo
mais do que aquella rápida phrase, já escripta mais longe, para
dar a primeira impressão do aspecto de Therezinha : «honesta
gracilidade».
Esta phrase é pouco, e é muito.
E' pouco para satisfazer o desejo de examinar um retrato,
discriminar feições, accentuar traços physionomicos.
E' muito porque se ficará fazendo sempre alguma idéa da
mulher a cujo respeito se tenha dito que era graciosa e dis-
108 o LOBO DA MADRAGÔA
creta, grave e gentil, o que tende a estabelecer uma suave har-
monia entre o seu caracter e o seu aspecto.
O leitor, esse, não protestou ainda, que me conste, contra o
facto de eu lhe nao haver descripto a physionomia de António
Lobo.
Nem eu, francamente, o poderia fazer, dada essa exigência,
á falta de elementos de pintura. Não existe nenhum retrato seu,
e a tradição apenas informa que era, physicamente, um homem
vulgar, magro e moreno, com certa expressão de vivacidade
intellectual no olhar.
Quanto ao retrato de Therezinha poderei, felizmente, satis-
fazer a curiosidade da leitora, porque ouvi o depoimento tradi-
cional dos seus conterrâneos.
Era uma rapariga de estatura regular, de uma brancura lu-
minosa, querendo eu significar com esta expressão que de ne-
nhum modo devem suppôl-a de uma pallidez de cecém ou de
uma coloração baça como as pérolas.
Não. Havia luz e saúde, vida e calor no tom suave das
suas carnes ; nem appareciam a descoberto os sulcos azues das
veias como em certas mulheres extremamente brancas.
Tinha os olhos e os cabellos pretos : os olhos mais que-
brados de brandura que fulgidos e provocantes; os cabellos
naturalmente ondeados desciam n'um ligeiro recorte sobre
a fronte.
Mas assevera a tradição que em duas coisas se assignalou
principalmente a Therezinha de Villalva entre todas as rapari-
gas do seu tempo : na compostura desaffectada e senhoril do
gesto ; e no cuidado, ainda hoje pouco vulgar no Minho, com
que tratava o aceio do seu corpo e da sua roupa.
— Segundo ouvi dizer a velhos, (contou-me um que já o
era também) as suas mãos, posto estivessem habituadas aos
trabalhos da lavoura, pareciam de princeza.
E insistiu n'um pormenor, cujo realismo não é despi-
ciendo :
— As unhas pareciam seixinhos côrde rosa, da beira-mar.
Ah! a leitora elegante, que todos os dias gasta algumas
horas no apuro da sua «toilette,» não poderá facilmente admit-
tir que lindas raparigas do Minho, verdadeiras «madonnas» de
Raphael, façam recuar de horror deante da ponta negra dos
seus dedos.
Pois assim mesmo é que é. O que ha de peior no Minho
são as unhas^ nas mulheres como nos homens.
Se António Lobo tivesse dito francamente a Jorge Mariz
♦ Amei a Therezinha de Villalva porque, «rara avis,» ella limpa
as unhas», eu haveria comprehendido logo a razão do seu amor.
o LOBO DA MADRAGÔA 109
Nao era preciso maior discurso.
Mas d'onde viria este excepcional cuidado de aceio, que
distinguia a Therezinha de Villalva entre todas as raparigas
minhotas do seu tempo. . . e do nosso ?
Respondo já.
EÍla era filha do Manuel barqueiro da quinta da Palmeira;
e afilhada do padre cruzio Dom Joaquim Mariz.
Nasceu em Villalva, onde o pai, filho de lavradores humil-
des, foi creado nas poucas geiras de terra que elles ahi pos-
suíam.
A mãe era uma rapariga que tinha estado alguns annos
ao serviço da casa de Ruivães, onde adquiriu hábitos senhoris.
Seus amos contrariaram muito o casamento com o barqueiro
dos cruzios, porque desejavam dal-a como esposa á algum la-
vrador abastado. Mas a rapariga teimou, e casou com o Ma-
nuel barqueiro,
Quatro annos depois de casada, morreu de um typho.
O barqueiro, muito protegido pelos cruzios, comquanto já
pudesse viver melhor do que os pais tinham vivido em Villalva,
viu-se na situação embaraçosa de não ter quem olhasse pela
infância da filhinha.
Foi a Villa do Conde pedir conselho a uma tia materna,
que ali estava como criada no convento das freiras.
Era uma mulher de cincoenta annos, doente e beata, mas
que tinha feito o seu pé de meia com o fim de passar uma ve-
lhice descançada, pensando apenas nos achaques e nos santos.
— Olha, disse ella ao sobrinho, quem vai tomar conta da
tua filha, sou eu. Estou farta de trabalhar, e quero tratar de
mim. Se a tua Thereza não tivesse já trez annos, não lhe pega-
ria, que não estou para desmamar creanças. Mas já tem idade
de cahir e levantar-se sem ser preciso acudir-lhe. Pois olha
que vou, sobrinho, que também a saudade de Villalva nunca
se amorteceu cá dentro.
E indicava o coração.
Ora a «tia Rosa,» educada pelas freiras de Villa do Conde,
adquirira no convento hábitos de esmero, que ella, por sua vez,
transmittiu á Therezinha, cuja mãe os havia trazido, á sua
parte, da casa nobre de Ruivães.
O barqueiro dizia ás vezes á tia Rosa:
— Vossemecê é como a minha companheira, que Deus te-
nha em bom logar. Cria-me esta rapariga para rainha ! Olhe
que ella é filha de um barqueiro.
Mas, no intimo da sua alma, gostava de vêr a filha mais
aprimorada de maneiras que as outras raparigas.
— Deixa-te d'isso, sobrinho, replicava a tia Rosa. Eu tam-
110 o LOBO DA MADRAGÔA
bem fui creada de servir, mas nem por isso deixei de prezar-
me sempre. A tua cachopa trabalha quanto faz mingua. Não
querer ser vasculho não é defeito ; antes virtude. Deixa ir as-
sim, que vai vem.
A estas duas correntes de educação, a da criada das fidal-
gas de Ruivães e a da criada das freiras de Villa do Conde,
deveu a Therezinha de Villalva o muito de senhoril que, nos
hábitos e nas maneiras, a tornavam mais distincta que todas
as outras raparigas da sua idade.
O pai, vivendo de dia e de noite na Palmeira^ indo raras
vezes a casa, não dava tempo a que a filha fosse aprendendo
d'elle qualquer rudeza no sentir ou no fallar; e já era tarde
para isso, ainda que não acontecesse assim, porque a educa-
ção cria raizes como as plantas.
Quando Therezinha andava nos quatorze annos, a tia Rosa
ficou paralytica.
Era a sobrinha que tratava d'ella com o mesmo carinho
e dedicação com que por ella havia sido tratada.
Logo pela manhã, Therezinha ia á Palmeira cuidar dos
arranjos do pai, da sua roupa branca, do seu fato, ás vezes da
sua saúde ; e levava os engommados e os trabalhos de cos-
tura que os padres cruzios lhe encommendavam.
Quasi sempre tinha occasião de beijar a mão ao padrinho,
o sr. Dom Joaquim Mariz, que a estimava muito.
Voltando da Palmeira, Therezinha preparava o seu almo-
ço e o da tia.
Depois ia lavar no Sanguinhêdo, trabalhar nas suas terras,
pequenas mas lindas e bem tratadas como um brinco; e ainda
o tempo lhe chegava para costurar, fiar, engommar e brunir,
cantando sempre.
Na Palmeira, emquanto ali se demorava, a sua presença
era um sol radiante, que a todos dava alegria e vida.
Dir-se-ia que só rompia a manhã quando ella chegava.
Um coração, especialmente, palpitava então mais vivo, com
um sentimento que não era apenas o simples contentamento
de a vêr tão alegre, tão moça, e tão donairosa.
Não. Esse sentimento era o amor.
Havia na Palmeira um rapaz, ajudante do barqueiro, que
a adorava loucamente.
Tinha desenove annos, e chamava-se Miguel.
Forte e sadio, era, como todos os rapazes da sua condi-
ção, ignorante, rude e trabalhador.
Therezinha estimava-o como bom rapaz e companheiro de
seu pae, porque, dizia ella, nem ás arvores da Palmeira dei-
xava de ter estima.
o LOBO DA MADRAGÔA 111
Mas n5o o queria para marido, porque havia entre os dois,
ella e elle, um abysmo a separal-os : a differença de educação
e, portanto, de caracter.
Eram duas pessoas que tinham nascido na mesma condi-
ção social, mas que divergiam profundamente entre si pelos
hábitos adquiridos desde a infância.
Quando António Lobo chegou á Palmeira, na primavera
de 1758, Therezinha, que tinha então 24 annos, sentia comple-
tamente livre o coração.
Era essa a razão da sua alegria e da sua felicidade.
Toda a liberdade é boa; principalmente a do coração.
E, comtudo, o pobre Miguel amava-a loucamente.
IX
flmop pupo
António Lobo íôra mais feliz, porque logrou, quando che-
gou á Palmeira, enfeitiçar o coração de Therezinha.
Elle tinha attractivos que o Miguel nao possuia : era ale-
gre, discursivo, audaz, estouvado, e sabia, quando o julgava
conveniente, temperar a sua doidice com uns amaneirados pro-
pósitos, que vinham mais da intelligencia que da educação.
Nós bem sabemos como elle fora creado á vontade nas
ruas de Guimarães.
A Therezinha de Villalva causou-lhe, como já o ouvimos
confessar a Jorge Mariz, uma profunda sensação, tão nova co-
mo fascinante.
EUa era a mulher honesta, que a si mesma se guarda com
a encantadora innocencia de quem desconhece a existência do
mal.
Fazia-se amar e respeitar, sem pensar n'uma ou n'outra
coisa.
De mais a mais esta creaturinha adorável pela belleza e
pela honestidade appareceu deante de António Lobo como en-
gastada n'uma excepcional moldura de maneiras tão discreta-
mente senhoris, que faziam surprehendente contraste com a ru-
deza crassa e bronca do femeaço do Minho.
Tão rara espécie de mulher não conhecia elle ainda e, com-
tudo, comprehendeu desde logo toda essa poética espiritualisa-
ção que na mulher do christianismo sobrevelou as fascinações
carnaes da mulher pagã.
o LOBO DA MADRAGÔA
113
O que elle principiou a amar na Therezinha de Villalva,
nao foi o corpo, mas a alma. E o seu amor, por isso mesmo
que não irrompeu de um deslumbramento dos sentidos, nas-
ceu gradualmente, na convivência de todos os dias. Dá-se com
o amor, quasi sempre, o mesmo phenomeno que se nota no
modo como as aves levantam vôo: quanto maiores sSo, como
A barca da Palmeira
por exemplo a abetarda, mais lhes custa a subir. Quanto mais
puro e sincero é o amor, mais vagarosamente nasce.
António Lobo, como todos os poetas levianos e vagabun-
dos, tão vulgares no seu tempo, e ainda depois, porque foi
Bocage quem fechou a porta a essa classe de poetas, experi-
mentou o amor platónico, o amor casto e impolluto, inspirado
por uma «alma suave» de mulher.
Bocage, para em tudo ser um bohemio extraordinário,
amou assim duas vezes.
Lobo affeiçoou-se lentamente a Therezinha, fazendo reparo
nas suas peregrinas qualidades, quando ella ia pela manha á
Palmeira.
Esperava-a para a vêr e para lhe fallar, sem a principio
114 o LOBO DA MADRAGÔA
ter a consciência de que era o coração que o punha de senti -
nella á chegada da barca. Mas levantava-se cedo, de madruga-
da, e nao tirava os olhos da margem esquerda do Ave até
avistar a Therezinha no decHve que desce para o rio. Parecia-
Ihe que a passagem da barca era excessivamente vagarosa. E
quando a Therezinha saltava em terra, António Lobo, varian-
do sempre o local, preparava a occasião de se fazer encontrado
com ella.
Nao se lhe declarou nunca ; fallava-lhe de tudo, menos de
si mesmo.
Por sua parte, a Therezinha nao tinha bem a certeza de
que o amasse; e menos ainda de que fosse amada. Estimava-o
muito, gostava de o vêr e de o ouvir, e o pobre Miguel pare-
cia-lhe cada vez mais seccante como namorado, comquanto
continuasse a ser para ella um bom rapaz.
Na Palmeira, apenas duas pessoas puderam desde logo
classificar com segurança o sentimento que a Therezinha ins-
pirava a António Lobo.
Estas duas pessoas eram Jorge Mariz, como já sabemos,
e o barqueiro Miguel.
Nenhum dos outros habitantes da Palmeira, incluindo o
pae de Therezinha, estranhavam os repetidos encontros, as
conversações repetidas, entre a cachopa e o hospede dos cru-
zios.
No campo, especialmente no Minho, a convivência toma
sempre o caracter de familiaridade, permitte liberdades que
n'outro qualquer meio social seriam muito reparadas.
Bastará dizer que os rapazes e as raparigas, de differentes
famílias, se tratam por tu, e que esse tratamento nao importa
a idéa de qualquer intimidade condemnavel.
O que principalmente indignou o barqueiro Miguel foi a
suspeita de que o «Mafarrico de Guimarães», cuja fama lhe nao
abonavM a pureza dos costumes, quizesse perder Therezinha.
Constituiu-se, portanto, n'uma espécie de esculca vigilan-
te, que nao a perdia nunca de vista emquanto ella se demorava
na Palmeira, e que procurava seguir os passos de António
Lobo depois que a Therezinha regressava a Villalva.
Uma coisa o admirava, e era que o Lobo nao atravessas-
se o rio para a margem esquerda, não fosse a Santo Thyrso,
nao sahisse do couto da Palmeira, onde caçava e pescava.
Muitas noites andou o Miguel rondando o edifício, espe-
rando sempre encontrar António Lobo a surgir- lhe de uma
porta ou a saltar de uma janella para sahir sem ser presen tido
dos cruzios.
Nunca o encontrou, porém.
o LOBO DA MADRAGÔA
115
A janella do quarto do hospede estava fechada, os cSes
nSo ladravam, o silencio era profundo tanto dentro da casa co-
mo na quinta.
Ainda assim, Miguel, n'uma occasião em que o Manuel
*^yt*.:
A barca
a Therezinha e o Miaruel
barqueiro lhe mandou buscar Therezinha na barca, não teve
mão em si que lhe nao dissesse, muito embaraçado, fincando
a vara no peilo e pregando os olhos na corrente:
— Ando ha muito para te dizer uma coisa, Therezinha...
— Pois diz.
— E' que nao tenho tido occasião. Deante de teu pae, não
t'a dizia. Na Palmeira, todo o tempo te parece pouco para con-
versares com o «Mafarrico».
— Queres fallar do sr. António Lobo? Pois elle tem nome
de baptismo. Mafarrico é o demo, salvo seja.
— Eu não sei se elle é o demo, se já o foi ou se está para
o ser. O que sei é que elle te persegue todos os dias.
— Perseguir-me ! a mim? Onde viste tu isso, ó Miguel?
— Tenho-o visto com estes que a terra ha de comer.
Ii6 o LOBO DA MADRAGÔA
— Não mettas a tua alma no inferno, rapaz ! O sr. Antó-
nio Lobo nunca fez pouco de mim, e se o fizesse perdia o seu
tempo.
— Mas é que eu tenho medo. . .
— De quê?
— Nao sei se t'o diga. . .
— Podes dizer. Quem não deve, não teme.
— Digo?
— Já se vê que sim.
— Tenho medo que elle te deite a perder.
Therezinha levantou-se n'um Ímpeto, fazendo oscillar li-
geiramente a barca.
Depois, olhando para a margem direita, que se aproxima-
va, respondeu sem olhar para Miguel :
— Tu perdeste o juizo, rapaz!
E, sempre de pé, logo que a proa da barca tocou em ter-
ra, saltou de um pulo, sem proferir mais palavra.
Miguel, muito aturdido, disse ainda :
— Desculpa.
Ella não respondeu.
Quando começaram a aggravar-se as hostilidades entre os
cruzios e os benedictinos ou entre os criados de uns e outros,
Thereza mostrou-se muito preoccupada com a possibilidade de
um conflicto sério.
— Trago o coração a tremer, disse ella a António Lobo.
— E comtudo já deve estar habituada, respondeu elle, a
esta guerra dos frades.
— A gente nunca se habitua ao que é mau. De mais a
mais tenho tantas pessoas amigas na Palmeira, que sinto me-
do de que passem por algum perigo.
— Seu pae, por exemplo.
— Está bem de vêr que sim. Mas não é só meu pae.
— Quem mais então?
— Meu padrinho, todos os senhores cónegos e...
— Diga, diga.
— E o sr. António Lobo também. •
— Mas repare que me deu o ultimo logar.
— Não, senhor. Ainda ha mais gente aqui.
— Quem?
— O sr. Jorge.
— Esse não se mette na contenda, que o tio não deixa.
Mas dá-lhe tanto cuidado o sr. Jorge?!
— Dá-me tanto cuidado como todos os outros Ainda o se-
nhor me dá mais, porque sou mais sua amiga.
— Deveras ?
o LOBO DA MADRAGÔA 117
— Deveras. Creio que nao fiz mal em dizer isto. ..
— Nenhum. Pelo contrario...
— E também tenho pena dos criados que precisam ganhar
o <pao nosso de cada dia» e podem arriscar a vida.
— Tem talvez maior interesse por algum d'elles?
— Nao, sr. Pensa que eu tenho algum conversado?...
— E se pensasse?
— Enganava-se. Nao tenho, e nao tive nunca.
— Mas ha por ahi alguns rapazes. . . O Miguel, por exem-
plo, de quem seu pae é tao amigo. . .
— Também eu sou.
— E' ? !
— Sou, porque elle é muito bom rapaz e dá-se muito bem
com meu pae.
— Ahi está um casamento possível.
Therezinha respondeu com evidente convicção :
— Nao havia ninguém n'este mundo que fosse capaz de
me fazer casar com elle; mas isso nao tira que seja bom ra-
paz.
— Imagine que alguém tinha de morrer na Palmeira por
causa da contenda. Quem lhe custaria menos que morresse?
— Ora essa ! disse Therezinha rindo. Pois nao fica sem
resposta.
— Quem ?
— O «Drago,» respondeu ella continuando a rir.
«Drago» era o cao mais bravo dos cruzios.
E d*ahi a minutos, Therezinha, dominando o riso, como
se de repente a preoccupasse um pensamento sério :
— Sabe uma cousa, sr. Lobo? Eu queria pedir-lhe um fa-
vor. . .
— Que lhe não torne mais a fallar?
— Nao, senhor ! Que me avise quando forem deitar a baixo
a pesqueira.
— Quer então que eu lhe revele um segredo ?
— Quero.
E, logo, corrigiu com pejo :
— Peço.
— Mas para que o desejava saber?
— Para ir rezar a Nossa Senhora da Piedade, em Arge-
mil.
— Por mim ?
— Já lhe disse que por todos.
— Pois bem, direi, assim eu possa.
— Pode, porque vamos combinar um signal, que nao dê
muito nas vistas.
118 o LOBO DA MADRAGÔA
— Qual ha de ser?
Therezinha deteve-se a reflectir um momento.
— Olhe, o sr. Lobo, quando me vir chegar á beira do rio,
desfolhe o ramo de uma arvore.
— Bem, está combinado.
De novo Therezinha se deteve silenciosa.
— O que mais quer? perguntou sorrindo António Lobo.
— Desejava que, no fim de tudo, me apparecesse de longe
para eu saber que lhe n3o aconteceu mal algum. . .
— Ah ! como lh'o agradeço, Therezinha !
E ella, continuando a phrase serenamente :
— . . . nem a meu pae.
— Fique certa. Logo que eu julgue ter passado a borrasca,
apparecer-lhe-hei n'alguma clareira da malta. Esteja bem at-
tenta para me ver.
— Hei de estar; lá isso não tem duvida.
— Se eu apparecer. . .
— Ha de apparecer. Tenho fé em Nossa Senhora da Pie-
dade. Mas em todo o caso é preciso ter juizo, também.
— Ter juizo, como?
— O sr. Lobo não se guarda muito dos perigos. Não seja
tão destemido.
— E' génio meu. Que lhe hei de eu fazer?
— Faça o que lhe eu digo e . . . adeus !
António Lobo ficou pensativo durante algum tempo, a re-
construir este dialogo, que tinha para elle o encanto d'uma di-
vina musica desconhecida. E concluiu como deante de uma
surpreza que o inebriava : «Mas é certo I eu amo esta rapariga,
e ella também me amai.
Isto passou-se poucos dias antes de Jorge Mariz o inter-
rogar: já então elle não tinha duvidas sobre a espécie de sen-
timento que a Therezinha de Villalva lhe havia inspirado.
O dobrão dos cruzios andou, muito tempo, intacto na algi-
beira de António Lobo.
Pela primeira vez deixou o dinheiro de arder rapidamente
nas suas mãos.
— E' curioso I dizia Lobo comsigo mesmo. Até parece que
me fiz avarento por amor, eu, um perdulário !
Pensou em offerecel-o a Therezinha.
Um dia abordou o assumpto.
— Therezinha f
— Sr. Lobo!
— Queria fazer-lhe um presente.
— Ora que idéa 1 Um presente ! Diga lá o que é.
Elle mostrou o dobrão que resplandecia á luz do sol.
o LOBO DA MADRAGÔA 119
— E* uma rodella de ouro! exclamou ella admirada.
— E' dinheiro, explicou António Lobo.
— Dinheiro? Nunca tinha visto este.
— Acceita?
Therezinha não respondeu. Olhou vagarosamente em der-
redor, parecendo procurar alguma cousa.
O chão estava alastrado de boninas, como se a Natureza
houvesse entornado sobre a terra a paleta de um pintor.
Florinhas miúdas, muito pequenas e muito vivas, davam
a impressão de uma poeira colorida, que manchava alegremente
o tapete verde da relva.
Era a urze, com os seus baguinhos roixos ; o codêço bri-
lhando n'uma floração translúcida de topasio; o trovisco, con-
tribuindo poderosamente para a variedade das cores, com o
seu claro esmalte de coral ; era a abrótea, branca como um
pingo de neve; a macella, redondinha, coroada de amarello e
branco; a violeta brava, vacillando, branca e roixa, entre o
noivado e a viuvez; era a leituga vivamente amarella; o trevo
campestre, emulo do lilaz dos jardins; o myosótis docemente
azul; o tremontêlo rivalisando a ametista; era uma riqueza
infinita de cores, passando por delicadas graduações, a vestir
a terra com uma singeleza e uma opulência, cuja polychro-
mia o maior poeta e o maior pintor nâo seriam capazes da
attingir.
Therezinha, como se encontrasse o que procurava, res-
pondeu :
— Sabe o que eu posso acceitar-lhe? E' alguma d'estas flo-
res, se quizer dar-m'a.
N'esse momento, António Lobo lembrou-se de Min, por
mais extraordinário que pareça isso.
Lembrou-se, sim, impressionado pelo frisante contraste
que diff"erençava o caracter da «tancareira» de Cantão e da
camponeza de Villalva: uma roubara o ; a outra repellia o di-
nheiro que elle queria off"erecer-lhe.
Sentiu-se quasi vexado.
— Pois, bem, Therezinha, off^erecer-lhe-hei uma flor, sepro-
mette guardal-a.
— Prometto.
António Lobo olhou um momento, embaraçado na esco-
lha; depois, resolutamente, curvou-se, arrancou um raminho
de myosótis, e entregou-lh'o.
— Sabe como se chama esta flor?
— Ao certo nao sei, porque me parece que não pode ter o
nome que lhe dão os meus aldeões. É' tão pequena e tão bonita,
que bem ha de ter outro nome, porque o merece. De mais a
120
o LOBO DA MADRAGÔA
mais é azul como o céu, mas um pouco mais desmaiadinha
que elle.
— Foi por isso, talvez, que lhe attribuiram uma significa-
ção melancólica: a da ausência, da separação que vai começar.
— Então, se é agouro, não n'a quero.
António Lobo offereoendo o ramo a Therezinha
— Não é agouro; não creia em agouros, Therezinha. Esta
flor pequenina quer dizer: Não me esqueças.
— Ah! como é lindo! Bem me queria a mim parecer!...
— Mas então como lhe chamam cá?
— Um nome muito feio.
— Não se pode dizer?
— Pode. «Orelhas de rato».
o LOBO DA MADRAGÔA 121
— Feio, sim, mas também nao deixa de ser expressivo. A
ausência é como um ratinho que róe os corações namorados.
— Isso deve ser!
— E e:.ta flor, quando a gente a manda, descobre o segredo
da nossa alma, é como a orelha do rato que ficasse de fora para
o denunciar.
— Mas pensa em ir-se embora da Palmeira?
— Nao penso. Quem me dera aqui ficar eternamente!
— Está isso na sua mSo.
— Ah! Therezinha! Que homem pode gabar-se de ter o fu-
turo fechado na mão? Nenhum. E eu menos que todos.
— Porque?
— Porque sou... como hei de dizel-o? Sou uma espécie
de «Judeu Errante».
— Credo! Judeu !
— Nao se assuste, Therezinha. Quero eu dizer que sou um
homem que nao tem familia, nem pátria...
— Mas o sr. Lobo é de Guimarães.
— Sou. Que importa ser? Já não tenho lá ninguém que
me estime.
— Mas pode ter n'outra terra. E se tivesse, ficava?
— Eu sei lá, Therezinha!... O meu destino não se parece
talvez com o dos outros homens.
— Não entendo isso I
— Nem eu próprio; mas é assim. Olhe aquella andorinha
que vai passando no ar. Para onde irá ella agora?
— Quem sabe!
— Pois eu sou como aquella andorinha.
— E' porque quer. A terra de que a gente gosta faz-nos
crear raizes n'ella. Não gosta da nossa terra?
— Gosto muito.
— A mim parece-me que não haverá outra mais linda em
todo o mundo. Gosto tanto das nossas arvores e dos nossos
campos ! Havia de me custar muito ter de deixar tudo isto.
— E' natural. E não deixe nunca, Therezinha.
— Faço tenção : aqui nasci e aqui espero morrer. Olhe, uma
rapariga, a Margarida Prata, que casou com o brazileiro de
Guimarei, foi viver para Lisboa e chorava lá com quem a ma-
tava. Tinha muita riqueza, muitas roupas e muitos criados.
Que monta isso? Ao cabo de seis annos, morreu de saudade.
O brazileiro quiz tornar a casar com outra rapariga dos nossos
silios. E sabe o que aconteceu?
— Provavelmente casou, mas a segunda mulher, aprovei-
tando a lição da primeira, conseguiu que elle não voltasse mais
para Lisboa. E' isto ?
122
o LOBO DA MADRAGÔA
— Agora! Nao encontrou cachopa que o quizesse.
— Também a Therezinha?
— Qual ! Eu n'esse tempo era um tapulho, mas tenho ou-
vido dizer. Ai ! sr. Lobo, que é já tão tarde ! Vou-me embora.
— Então, adeus. Veja se guarda as flores que lhe dei.
— O «Nao me esqueças?» Guardo, sim. Ainda que as flores
sequem, e fiquem mirradinhas, hei-de conserval-as.
Dito isto, despediu-se, e vinha descendo para o rio, quando
Miguel lhe sahiu ao encontro, surgindo, inesperadamente,
d'entre o arvoredo.
Elle tinha estado á espreita. NSo pôde ouvir o que os dois
disseram, mas viu António Lobo entregar as flores a There-
zinha e ella acceitar-lh'as.
— O' cachopa! gritou elle.
— Ah ! és tu, Miguel !
— Sou eu, sou.
E dirigindo-se para ella, mas conservan-
do as mãos escondidas atraz das costas, per-
guntou :
— Que flores sao essas que tu ahi levas?
— Então nao n'as vêsV
— Vejo. Quem me havia de dizer que tu
gostavas tanto d'ellas !
— Pois gosto.
— Então, se gostas, pega lá mais.
E mostrou a mão direita, que empunhava
um grande ramo de myosótis.
Therezinha desatou a rir e estugou o passo,
caminho do rio.
— Que nome dás tu a essas flores, ó Mi-
guel?
— Farta estás tu de o saber. São cOre-
Ihas de rato.»
E Therezinha, rindo cada vez mais:
—«Orelhas de rato!» Isso são ellas! Valha-te Deus, rapaz!
Dando uma corridinha saltou ligeira á barca, onde o pae a
esperava.
— Anda, rapariga, que são horas, disse o Manuel bar-
queiro. Se te demorasses mais, tinhas de ir á volta pela ponte,
que eu amarrava a barca.
— Olha a grande caminhada!
O barqueiro metteu a vara á agua, e fincou-a no peito.
Como visse então o Miguel á beira do rio, com os myosótis
na mão, gritou-ihe :
— O' Miguel ! essa ramalhoça é para varreres o forno 1
o ramo de António Lobo
o LOBO DA MADRAGÔA
123
Miguel respondeu :
— Não, senhor. E' para atirar flores aos peixes.
E arremessou-as ao Ave.
O Manuel barqueiro replicou, gritando cada vez mais :
— EUes nSo pegam n'essa isca.
Emquanto Therezinha passa na barca, recordemos ao leitor
que, no dia em que a pesqueira nova explodiu, ]Antonio Lobo
não se esqueceu de fazer os si-
gnaes combinados, tanto para
avisar Therezinha do rompimen-
to das hostilidades, como depois
para lhe dar a saber que elle e
o Manuel barqueiro estavam in-
cólumes.
Apesar dos conselhos do
Chantre da Real Collegiada de
Guimarães, a contenda entre os
cruzios e os benedictinos conti-
nuou, por vezes muito acirrada.
Mas isso não faz ao nosso pro-
pósito. Bastará dizer que vimos
um documento pelo qual se ve-
rifica que em 1761, isto é, trez
annos depois da explosão, o
Dom Prior do mosteiro de Lan-
dim, que era então o padre Agos-
tinho de Nossa Senhora, propu-
nha aos benedictinos um con-
vénio medeante a indemnisação
de oito mil cruzados, paga aos
cruzios.
Se este convénio fosse acceito, os cruzios renunciariam
aos seus suppostos direitos, mas, de futuro, não poderiam os be-
nedictinos de Santo Thyrso construir azenhas em qualquer
parte do Ave defronte da quinta da Palmeira, nem conservar
pesqueira alguma, ou fazel-a de novo.
Era o que elles chamavam to rio livre.»
Suspeito que os benedictinos não transigiram, mas não
tenho d'isso prova segura.
Quando Therezinha, depois de haver saltado da barca,
passava em Argemil, os criados da quinta da Batalha, atalayas
do rio, disseram-lhe as costumadas galanterias.
— Ah! Therezinha! Therezinha! Ninguém é capaz de
tirar-te essa balda de gostares mais de Santo Agostinho que de
S. Bento I
o ramo do Miguel
124 o LOBO DA MADRAGÔA
— Um bello dia embargamos-te a passagem por ordem do
nosso santo patriarcha.
— E veremos então se santo Agostinho tem animo de vir
cá buscar-te.
Therezinha, caminhando atrigada, por ser já tarde, res-
pondeu :
— Eu também gosto muito do vosso S. Bento. Quereis vós
vêr?
E desatou a cantar :
S. Bentinho da Batalha,
Aqui tendes as solteiras.
Se não quizerdes casal-as,
Dailhe um dote, serão freiras.
CahiP do Géa
António Lobo não gostou nada de que o Chantre da Real
Collegiada de Guimarães o tivesse visto na Palmeira por occa-
siao da feira de S. Bartholomeu.
Antes quereria que os vimaranenses o suppozessem morto
ou errante por esse mundo de Christo, como já uma vez o jul-
garam ausente em Macau, quando elle estava no Porto e depois
em Lisboa.
Conhecia bem os costumes da provinda, onde sempre
tinha vivido, e quão duradoiros e violentos são os ódios que lá
germinam de qualquer futilidade.
E' que os ódios parece serem como os líquidos : quanto
menor é a superfície que os contém, mais se alteam ; quanto
maior, mais baixam.
Nas grandes cidades, o ódio espraia se, dilue-se; chega a
perder de vista o seu alvo e, por isso, a poupal-o durante lon-
gos intervallos de tempo.
Na província zumbe constantemente como um enxame de
abelhas contido n'uma pequena colmea; e morde, a cada mo-
mento, porque a toda a hora encontra a sua victima.
De mais a mais, segundo a grande verdade bíblica, nin-
guém é propheta na sua terra.
E elle tinha nascido em Guimarães.
Peior que tudo isso, porém, era o momento histórico que
a sociedade portugueza atravessava.
As famílias nobres — e as de Guimarães não cediam em
126 o LOBO DA MADRAGÔA
jactância a nenhumas outros — procuravam agora estreitar os
laços de solidariedade de classe contra um inimigo commum,
unindo-se, encostando-se umas ás outras, fazendo parede, como
um rebanho de ovelhas que sente o farejar do lobo á porta do
redil.
A nobreza começava a sentir-se affrontada com o valimento
politico do conde de Oeiras, que parecia nao querer reconhecer
as balisas impostas pelo consenso tradicional na organização
da sociedade portugueza.
Sebastião José de Carvalho entrara no poder por influencia
da rainha viuva junto de el-rei D. José. Fora nomeado secre-
tario de Estado dos negócios da guerra e estrangeiros, e nin-
guém diria que d'esse gabinete, de que faziam parte, além d'elle,
que era um estreante, Diogo de Mendonça, um fraco, e Pedro
da Motta, um velho gasto, sahiria o inicio de uma nova épo-
ca de administração económica e politica.
Os acontecimentos favoreceram a rápida manifestação das
faculdades governativas de Sebastião de Carvalho, especialmen-
te da energia e firmeza do seu caracter.
Por occasião do incêndio no Hospital de Todos os Santos,
occorrido poucos dias depois da entrada de Sebastião de Car-
valho nos conselhos da coroa, mostrou elle que se não deixa-
va assoberbar j^or circumstancias imprevistas.
Era o dedo a denunciar o gigante.
Vieram logo depois as medidas tendentes a evitar a expor-
tação do ouro para restabelecer a balança de commercio e, pe-
rante as reclamações da Inglaterra, Sebastião de Carvalho mos-
trou-se destemido e altivo, comquanto depois tivesse de modi-
ficar, pela lição da experiência, esta sua theoria económica.
Vieram também a reducção dos direitos sobre o tabaco, a
emancipação dos Índios do Brazil, a formação das grandes
companhias de navegação e commercio e, sobretudo, vieram
os actos de força, as providencias rápidas e decisivas com que
Sebastião de Carvalho acudiu á população da capital por occa-
sião do terremoto de 1755 e com que tratou de fazer recons-
truir a cidade, que tinha ficado reduzida a um montão de ruí-
nas.
O rei e o paiz começaram a comprehender que havia n'a-
quelle homem o vulto de um reformador audaz.
Ao rei, inspirava confiança; ao paiz, receio; especialmente
á nobreza, que estava costumada a dominar na corte.
Em 1756, fallecia Pedro da Motta e o conde de Oeiras fo-
ra transferido para a secretaria do reino, onde mais directa-
mente ainda, como primeiro ministro, podia subjugar todos os
elementos da vida interna do paiz.
o LOBO DA MADRAGÔA 127
No anno seguinte, os tumultos do Porto contra a forma-
ção da Companhia do Alto Douro foram punidos com draco-
niana severidade, nSo pelo que em si mesmos valiam, porque
não tinham passado de uma arruaça, mas para aproveitar a
occasião de impor respeito e de crear temeroso prestigio.
N'esse mesmo anno foram expulsos do Paço os jesuítas e,
a breve trecho, prohibidos do exercido da confissão e da pré-
dica no patriarchado
Então a nobreza, vendo accentuar-se de dia para dia o
plano de absorpção politica traçado por Sebastião de Carvalho,
conheceu que a hora do ostracismo da sua classe não tardaria
muito, e procurava fortalecer-se pela união e pela solidarieda-
de na lucta de poderio travada contra o primeiro ministro.
E a nobreza não se enganava, porque não tardariam a le-
vantar-se os patíbulos de Belém.
António Lobo, depois que o Chantre da Real Collegiada o
foi encontrar na Palmeira, receiou a desforra da academia vi-
maranense, composta de fidalgos e ecclesiasticos, agora mais
que nunca unidos pelas circumstancias politicas da época.
Julgava-se elle pequeno de mais para que o conde de Oei-
ras se occupasse em defendel-o, ainda quando lhe reclamasse
justiça contra uma villa inteira, que certamente tomava o par-
tido da academia.
De mais a mais a consciência accusava-o de ter sido ar-
ruaceiro e brigão, tanto em Guimarães como em Villa Real, e
Sebastião de Carvalho já havia dado sufíicientes provas, em
Lisboa, de querer oppôr a repressão policial á liberdade de
costumes tolerada pela tradição.
Por todos estes motivos, e por saber quanto o ódio na pro-
vinda é minaz e persistente, António Lobo ficou receioso de-
pois da visita do Chantre á Palmeira.
Comtudo decorreu o mez de setembro, que é o mais ale-
gre no campo, sem que a academia vimaranense desse signal
de si.
Chegaram as vindimas, e Therezinha demorava-se agora
mais na Palmeira por esse motivo.
A vindima é uma festa agrícola, que pôde durar alguns
dias, e quasi sempre dura, nas propriedades importantes.
No Minho, as vinhas d'enforcado contribuem para dar um
aspecto mais pittoresco á apanha das uvas.
Rapazes e raparigas trepam por altas escadas de mão, ar-
rimadas contra as arvores onde a vinha se enlaça, e, assim
empoleirados, colhem cachos que vão atirando para dentro dos
cestos pendentes das escadas.
Cabeças humanas, resguardadas do sol por toscos som-
128 o LOBO DA MADRAGÔA
breiros de palha, surgem d'entre os ramos das arvores, o tron-
co do corpo collado ao tronco da arvore, de modo a parecer
que estão espreitando do alto rostos de esquivas dryades e de
silvanos medrosos.
As raparigas comprimem as saias apertando os joelhos,
pelo que nao teem a receiar os olhares indiscretos dos seus
companheiros de trabalho.
E todos, firmando-se nas escadas, desaninham as aves,
substituindo-as no canto, emboscados na copa das arvores,
que enchem de musica e alegria.
São, pôde dizer-se assim, as canções das uvas.
E' uma festa que primeiro se passa no ar para depois con-
tinuar na terra, porque á noite é servida a ceia aos vindimado-
res e o bailarico põe um remate brilhante a cada dia de traba-
lho.
Parentes, amigos, visinhos e até jornaleiros de profissão
acodem, quando é preciso, a auxiliar a faina das vindimas, que
é ao mesmo passo um motivo para folguedos.
Therezinha não faltava na Palmeira ás arrincadas do linho,
ás esfolhadas do milho, e ás vindimas.
Os cruzios tratavam generosamente os seus trabalhadores,
de modo que os attrahiam sempre em grande numero, e os se-
rões da Palmeira tinham fama de ser os melhores da comarca.
Therezinha era o «enfant-gaté» d'aquella casa e, portanto,
a rainha de cada festa agrícola que se ali desse.
N'essas occasiões demorava-se na Palmeira de dia e noite.
O pae transportava-a na barca e ia depois acompanhal-a a ca-
sa. Mas agora, na vindima de 1758, pôde bem imaginar-se o
praser com que ella quereria alongar as horas que fugiam ve-
lozes.
Dantes prendiam-n'a ali a alagria do trabalho em com-
mum, o canto, a dança, o serão, a folga campestre.
Agora. .. era o amor, doce grilhão, leve como um fio de
retroz, que prende as almas ás almas, solidamente.
A vindima correra mais animada do que nunca, porque a
Therezinha de Villalva, sem quebra da sua discreta gracilida-
de, não se mostrara jamais tão contente e expansiva.
Os padres cruzios riam de vêr António Lobo empoleirado
n'uma arvore a vindimar.
— E' um rapaz para tudol diziam elles gabando-o.
Não teria que procurar muito quem quizesse encontrar a
Therezinha no rancho dos vindimadores.
Bastaria achar António Lobo ; ella havia de estar perto.
Havia momentos em que ambos podiam conversar de ar-
vore para arvore, como os pássaros se namoram cantando.
o LOBO DA MADRAGÔA
129
As uvas, atiradas d'alto, chofravam no fundo dos cestos;
era o azai, o bogalhal, o espadeiro, o vinhao, as castas minho-
tas de Santo Thyrso, que dao vinho verde.
Nao sao táo doces estas castas como por exemplo o mos-
António Lobo e Therezinha vindimando
catei, que parece ter melaço dentro de cada bago, e que se en-
contra em regiões mais quentes, no Alto Douro, e no sul, a
partir de Setúbal.
A uva do Minho é um pouco amarga, por isso produz o
«verdasco», áspero no sabor e na palavra.
Mas as horas da vindima são ali mais doces do que as
uvas ; e eram-n'o principalmente para António Lobo e There-
zinha.
Dizia-lhe elle mettendo a cabeça por entre os ramos de
uma arvore á procura de cachos :
130 o LOBO DA MADRAGÔA
— Se eu aqui já não estiver para o anno, a Therezinha
estará tão contente como agora?
— E por que não ha de estar aqui?!
— Sei lá! Sou errante como a andorinha. Não se lembra
que já lh'o disse?
— Mas a andorinha faz ninho, e demora-se.
— Para emigrar quando chegar o outono.
Therezinha respondia cantando :
O' meu amor, se te fores,
Leva-me na tua alminha.
Eu sou como a borboleta:
Onde quer vai mettidinha.
E, para affastar um pensamento triste ou para desorientar
a curiosidade dos vindimadores, dizia depois:
— Olhai que lindo cacho este!
Um velho commentava olhando:
— E' vinhão, e vonda !
António Lobo reatava o dialogo, baixando a voz:
— Na minha alma, Therezinha, ha de ir sempre para on-
de eu fôr.
— Mas que teima!
— E como quer que eu fique na Palmeira? Só se eu me fi-
zer padre cruzio. . .
— Do mal o menos. Assim poderia eu vêl-o todos os dias,
como vejo meu padrinho.
— È quando casasse?
— Eu não caso nunca.
. — Tem muito quem a queira.
— Mas eu não quero ninguém.
^Ninguém?
— Só quero quem me não quer; e quem me quer não
quero eu.
O Miguel, desesperado por não ouvir o que António Lobo
e Therezinha estavam dizendo, cantava de cima de uma ar-
vore:
Hei deitar os meus olhos
A'quelle poço sem fundo;
Olhos que não têm ventura
De que me servem no mundo?
— Ouve, Therezinha? Já vê que tem muito quem a queira.
— O Miguel ? Pobre rapaz !
Uma rapariga subindo rapidamente os degraus da sua es-
cada:
o LOBO DA MADRAGÔA 131
— O' Miguel! nSio deites os olhos ao poço, que te fariam
muita falta para enxergar os cachos.
Elle, apanhando a deixa. . . no ar :
— Com os olhos fechados ou abertos até vejo de mais...
o que não queria vêr!
Therezinha fallando muito alto :
— O' sr. Lobo ! Faça favor de trazer a sua escada, que es-
tá aqui um lindo cacho a que não posso chegar.
— Lá vou, lá vou.
Miguel continuando a cantar :
Se o passarinho vendesse
As pennas que Deus lhe deu,
Também eu vendia as minhas,
Ninguém n'as tem mais que eu.
António Lobo encostou a escada á mesma arvore em que
estava Therezinha.
Subiu ligeiramente e encontrou-se, entre os ramos, frente
a frente d'ella. Nunca lhe parecera mais bonita do que n*essa
occasiao.
— E' ali! dizia Therezinha indicando o supposto logar de
um cacho.
— Ainda não vejo !
E ella, baixinho, como ajudando-o a procurar :
— O Miguel está muito arrenegado, que eu bem lh'o conheci
na voz. O sr. Lobo acautele-se sempre.
— Pobre rapaz !
~ E' bom, é. Mas tem génio, e deu-lhe para gostar de mim.
Therezinha tinha razão.
N'esse dia o ciúme atormentava o Miguel barqueiro, que
foi cantando sempre, durante a vindima, as suas penas de
amor.
No bailarico não quiz dançar, e á ceia tinha bebido mais
do que a sua conta.
Quando o serão acabou, e o rancho dos vindimadores par-
tiu vozeando alegremente, António Lobo ficou por algum tempo
sentado ao luar.
Parecia-lhe vêr ainda Therezinha, empoleirada na arvore,
deante d'elle, n'esse idylio aéreo, que fazia lembrar o amor das
aves.
Quando accordou do seu extasi, levantou- se para reentrar
em casa.
Poucos passos andados, surgiu-lhe de frente o Miguel, de
caçadeira ao hombro.
— Sr. Lobo 1 disse elle com voz alterada.
132 o LOBO DA MADRAGÔA
— E's tu, Miguel ! E de espingarda! Que é lá isso?
— Ando rondando, que não vá ter ficado alguém escon-
dido no couto.
— Mas que queres tu de mim?
— Quero dizer-lhe uma cousa muito séria.
— Pois aqui estou para te ouvir, respondeu serenamente
António Lobo.
— O senhor, ainda que o negue, gosta da Therezinha . . .
— Não o nego. Gosto. E creio que não tenho que te dar
explicações por isso.
— Mas é para casar que gosta d'ella?
— Para casar... não sei. Sou solteiro, posso casar; mas
não vejo como.
— Então é para a perder! exclamou Miguel muito exal-
tado. Pois se fôr, mato-o.
António Lobo íitou-o reflexivamente e, após um momento
de silencio, respondeu :
— Miguel, eu bem sei que tu gostas da Therezinha, e nâo
te quero mal por isso. Não tenho medo das tuas ameaças ; nem
receio homem nenhum. Mas digo-te uma cousa francamente:
se eu tentasse perder Therezinha tinhas razão para matar-me.
— O senhor não diz a verdade!
— Digo, e juro. Eu gosto d'ella tão honestamente como tu.
Façamos, porém, um contrato. No dia em que a julgares per-
dida por mim, a minha vida pertence-te. Dá-me um tiro onde
quer que me encontres. Estamos tratados.
— Veja lá o que diz !
— Digo, e repito.
— Bem. O senhor é um hemem morto no dia em que a
Therezinha apparecer desgraçada.
— Dou-te esse direito. E, agora, adeus.
— Boa noute, respondeu Miguel.
António Lobo seguiu seu caminho vagarosamente, sem
olhar para traz.
E, muito tranquillo, ia dizendo comsigo mesmo :
— Este rapaz tinha razão, se eu a perdesse.
Nos primeiros dias de outubro chegou a Landim uma carta
do secretario de sua reverendíssima o Geral da ordem e con-
gregação de Santo Agostinho.. Prior do real mosteiro de Santa
Cruz de Coimbra.
O assumpto d'essa corta era António Lobo.
Dizia o padre secretario que o prelado da ordem canónica
agostiniana tivera conhecimento, por informações fidedignas,
de que na quinta da Palmeira de Riba d'Ave se acoitava como
hospede um mancebo de ruins costumes e destragada vida. Sua
o LOBO DA MADRAGÔA Í33
reverendíssima o Padre Prior Geral estranhava este facto, que
podia ser damnoso á disciplina conventual, e ordenava que fosse
despedido o hospede, cuja visinhança inquietava, além de tudo,
pessoas de qualidade que d'elle conservavam justo resentimento.
A carta concluía recommendando ao prior de Landim que de
futuro declarasse ao prelado quaes os hospedes acolhidos no
seu mosteiro ou na brévia da Palmeira.
Este fecho continha, manifestamente, uma comminação se-
vera, espécie de censura imposta aos cruzios de Landim por
haverem recebido, na Palmeira, António Lobo.
Mandava quem podia.
Os priores de Santa Cruz de Coimbra eram prelados ge-
raes e reformadores de todos os mosteiros de cónegos regran-
tes de Santo -Agostinho no reino de Portugal, por breve apos-
tólico de Paulo IV dado em Roma no anno de 1556.
A principio, a congregação níio abrangia mais de quatro
ou cinco communidades, mas no decorrer do tempo foi cres-
cendo e prosperando a ponto que, no século XVÍII, o Prior
Geral, honrado com o titulo de cancellario da Universidade de
Coimbra desde D. João III, era o chefe de vinte ou mais con-
ventos onde exercia jurisdicção autónoma, isto é, isenta da au-
ctoridade dos prelados diocesanos.
Quando, pois, o Prior Geral enviava uma ordem aos seus
súbditos, era como se um monarcha expedisse um decreto
real.
Em Landim todos os cónegos regrantes ficaram magua-
dos com a inesperada carta do padre secretario, nSo só porque
incluia uma censura e estabelecia uma comminaçSo, mas tam-
bém porque os constrangia a despedir um rapaz de quem ape-
nas tinham motivo de agrado e sympathia.
Aquelles dos cruzios que o não conheciam pessoalmente,
sabiam a respeito d'elle as melhores referencias trazidas pelos
seus confrades que mais frequentavam a Palmeira.
Não ignoravam que António Lobo tivera já verduras e des-
mandos da mocidade, mais ou menos ruidosos, mas desde que
estava na Palmeira quasi chegava a ser um moço exemplar,
honesto, jovial, affectuoso, muito grato e aíTeiçoado aos seus
hospedeiros.
O padre Dom Joaquim Mariz, ao conhecer a ordem do Ge-
ral, não teve mão em si que não censurasse a irreflexão com
que subsci-evendo a pedidos insensatos se atirava um mancebo
para o trilho de seus erros passados, desviando-o do caminho
da rehabilitação em que mostrava querer proseguir.
— Tão certo é, dizia o padre Mariz, que o homem, como
as plantas, é susceptível de peior ou melhor cultura segundo o
134 o LOBO DA MADRAGÔA
terreno em que vegeta. Aqui, o supposto «rMafarrico» humani-
sou-se, amansou, fez-se sociável e querido. Amanha não sei o
que será d'elle, de novo entregue a si próprio e ás suas pai-
xões.
Foi este mesmo cónego que se encarregou, bem a pesar
seu, de transmittir a António Lobo a ordem do Prior Geral.
Serviu-se de suaves circumloquios para attenuar a aspe-
resa da communicaçâo; por vezes se embaraçava na escolha
dos termos, que procurava adoçar.
António Lobo, quando percebeu o que o padre Mariz já
dissera e o que nSo tinha dito ainda, exclamou raivoso :
— Eu já o esperava desde que em Guimarães havia de
constar que eu estava aqui !
— Filho ! tornou o padre Mariz. Tende a coragem própria
do vosso animo esforçado, e nao penseis em represálias, que
são como os elos de uma cadeia : travam-se umas nas outras.
Estaes ainda muito novo, nem vos faltam talentos e energias
para abrir caminho na sociedade. Mas se quereis vida mais
repousada, vinde para nós, ordenai-vos clérigo, tomareis a
nossa murça. Landim vos receberá de braços abertos, e eu
mais que ninguém.
— Ah! sr. Dom Joaquim !* Vossa Reverendíssima não me
conhece ainda. Eu sou como a ventoinha, que vae para onde o
vento a leva, mas que nunca pode^estar quieta. Uma benigna
aragem trouxe-me para aqui, onde realmente cheguei a ser fe-
liz; um impetuoso vendaval empurra-me agora para longe, e
com elle tornarei a ser infeliz em qualquer parte. E' a minha si-
na, e ninguém foge ao seu destino. De mais a mais quem sa-
be se aqui mesmo eu não teria que obedecer amanhã a des-
encontrados ventos, que me levassem do bom caminho para
algum inferno de paixões miseráveis!. . .
Dom Joaquim Mariz não comprehendeu o sentido d'estas
ultimas palavras, que António Lobo pronunciou mysteriosa-
mente vendo perpassar no espirito a encantadora imagem de
Therezinha.
Todos os cruzios da Palmeira e alguns de Landim en-
cheram António Lobo de valiosas dadivas, incluindo dinheiro,
com que elle á farta se preparou para a jornada.
Não quiz dizer para onde ia, o que os padres cruzios to-
maram como precaução de segurança contra novas represálias
de Guimarães.
Mas o motivo era outro: desejar que Therezinha o igno-
rasse.
Os cruzios, para não vexar o hospede, nem a si próprios,
fizeram segredo da ordem do Prior Geral, de modo que che-
o LOBO DA MADRAGÔA 135
gou a véspera da partida de António Lobo sem que ninguém o
soubesse fora do convento.
Combinou-se que Jorge Mariz, já completamente restabe-
lecido, deixasse a Palmeira depois de António Lobo, porque o
tio quiz que elle fosse continuar os estudos em Villa Real; e
poderia causar estranhesa aos visinhos que Jorge partisse des-
acompanhado do amigo com quem viera.
Teve António Lobo a serenidade precisa para nao trair, na
presença de Therezinha, um segredo que tanto o contrariava.
Ainda no próprio dia da partida, quando ella pela manha
veio á Palmeira, elle parecia um homem absolutamente tran-
quillo e feliz.
Encontrou a junto ás estufas, cujas altas vidraças, ainda
embaciadas de vapor d'agua, eram como que um anteparo á
espionagem de Miguel.
Nas palavras de António Lobo havia um doce toque de in-
tima, se bem que plácida saudade, que Therezinha não adivi-
nhou, desprevenida como estava.
Foi elle que n'esse dia encurtou propositadamente a entre-
vista, com receio de fraquejar e denunciar-se.
Ao proferir as ultimas phrases teve as hesitações próprias
de quem está sendo combatido por um secreto pensamento, que
as suas palavras desejam occultar
De repente, tendo relanceado um ligeiro olhar pelo recinto
da estufa, pousou na face de Therezinha um beijo timido.
Ella corou, estremecendo n'uma intensa vibração nervosa,
6 dominou-se para dizer :
— Ah! sr. Lobo! que me arrenego! Não torne...
E já não teve teve tempo de concluir a phrase, porque An-
tónio Lobo desappareceu precipitadamente.
Foi como se um passarinho abrazado nas calmas do estio,
pousando medroso á beira de um rio caudal, colhesse no bico
uma gotta d'agua e fugisse voando.
XI
Om atoleipo e uma pomba
António Lobo foi da Palmeira para o Porto.
Convintia-lhe procurar uma cidade populosa, onde menos
facilmente o pudessem ir incommodar outra vez.
De mais a mais já conhecia a terra, desde que estivera ali
com a chineza.
Fizera logo tenção de tirar o maior partido possível de
quantas distracções o Porto lhe proporcionasse, e nSo seriam
muitas, nem bastantes para cicatrisar rapidamente a lembran-
ça saudosa da Therezinha de Villalva.
Era uma ferida que o pungia ainda, sangrando a interval-
los, e avivando-se, a ponto d'elle confessar a si mesmo, enter-
necido :
— Amei sinceramente aquella mulher: uma camponeza
que eu nSo trocaria por uma rainha.
Nao foi difficil a António Lobo procurar no Porto convi-
vência que o distraísse.
— Para conhecer gente, nao ha como frequentar uma bo-
tica, pensou elle, querendo abrir caminho e entabolar rela-
ções.
Eífecti vãmente, n'aquella época, as boticas e as lojas de
confeiteiro eram logares frequentados pelos mundanos que pre-
tendiam matar o tempo; além das grades dos conventos, que
foram sempre, durante o século XVIII, os locutórios mais pro-
curados e concorridos.
Mas, dizia António Lobo com os seus botões, não lhe con-
o LOBO DA MADRAGÔA
137
vinha uma botica onde apenas se reunissem velhos caturras,
que só fallassem do passado e jogassem o gamão ou as damas.
As boticas attrahiam cHentellas especiaes, segundo a idade
e o génio do boticário
Importava pois ter mais em vista o boticário que a botica.
De informação em informa-
ção, e com o auxilio da sua ob-
servação perspicaz, António
Lobo descobriu o pharmacopola
que lhe convinha para o effeito
de tlançar-se» na vida portuen-
se, segundo a expressão que
hoje usamos.
Era o Mêna, estabelecido
na rua do Moinho de Vento, um
magrizella que perdera todo o
seu ar de beirão para se enca-
dernar no aspecto de peralvilho
presumpçoso, que habitualmen-
te punha capa e volta.
Nem escolhido a dedo o
podia António Lobo achar me-
lhor.
Sendo a francezia o fraco do
boticário, calculou o nosso «Ma-
farrico», e muito bem, que facil-
mente conseguiria insinuar-se-
Ihe no animo, logo que se mos-
trasse sabedor da linguafranceza.
Entrou certo dia na botica,
quando casualmente o próprio
Mêna estava manipulando umas
pillulas de cynaglossa.
Ao rumor dos passos, o
boticário olhou, e António Lobo,
inclinando a cabeça, saudou-o
em francez :
— «Serviteur. . .»
Mêna fixou com attenção o desconhecido, que trajava mo-
destamente, vestia e calções de briche nacional, comquanto
trouxesse a algibeira ainda quente da generosa pecunia dos
cruzios. !
— O que pretende <monsieur?»
António Lobo, dominando-se, procurou uma idéa, uma
palavra que o salvasse.
o boticário Mêna
138 o LOBO DA MADRAGÔA
E, encontrando o desejado pretexto, respondeu fingindo
certo acanhamento :
— <(Pardonl> Eu sou um provinciano do Alto Minho, que
nao tenho familia, nem bens próprios. Professo a lingua fran-
ceza, e disseram-me que vossa senhoria...
O boticário Ména arregalou os olhos e pousou a espátula,
encantado com a presença d'aquelle adventício que sabia a lin-
gua franceza e o tratava por senhoria.
Mas, colhendo as velas ao enthusiasmo para retomar o
seu ar pedante de patarata afrancezado,
Em ar de grande, tysico o semblante,
como Lobo escreveu mais tarde n'um soneto, o pharmaceutico
exclamou com maneirosa inflexão :
— Bemvindo seja a esta casa tao estimável garção! Nao
lhe faltarão por certo discípulos e discípulas que aproveitem as
suas lições e saber. A lingua franceza é hoje a predilecta de
todas as pessoas instruídas, «la langue des gents du monde.»
Se disseram a «monsieur» que eu me preso muito de cultival-
a, fallaram verdade.
— Isso realmente me disseram a respeito de vossa senho-
ria, e por essa feliz indicação me aventurei a prescindir de in-
termediários.
— O talento, «cher monsieur)), não precisa de padrinhos
nem abonadores. E' recommendação bastante, e bom passa-
porte. Pois não podia ser melhor a occasião, «la bonne chan-
ce», porque a regente do Recolhimento do Anjo e uma freira
de Santa Clara me encommendaram que lhes indicasse profes-
sor idóneo.
— Então a lingua franceza já entrou nos conventos do
Porto ?
— E* a moda corrente, e ninguém a dispensa. Os conven-
tos são jocundos «rendez-vous» de galanteria e conversação,
onde se exercita deleitosamente o espirito. Temos na cidade
freiras muito lettradas e caroaveis, que sabem fazer-se admirar
tanto por sua gentileza como illustração.
Não era preciso mais, nem tanto, para António Lobo re-
conhecer que estava na presença de um <frança)) freiratico, e
comquanto detestasse o género, como tinha demonstrado em
Villa Real, julgou dever tirar todo o partido possível de uma
situação, ^quejhe trazia vantagens de momento.
O boticário quiz ser tão amável e prestadio que logo poz
o chapéu e acompanhou António Lobo ao Recolhimento do
Anjo, ali perto.
o LOBO DA MADRAGÔA 139
Este Recolhimento (situado no local onde hoje está o mer-
cado do mesmo nome) gosava privilégios de casa religiosa, ad-
mittia exercícios monásticos, mas excluía os votos.
Fora fundado no século XVII, fora das portas do Olival,
por uma D. Helena Pereira da Maia, que o destinou a ser gua-
rida e amparo de dez meninas orphas procedentes de famílias
nobres.
Dentro de um século, a idéa da fundadora desvirtuou-se a
ponto do Recolhimento do Anjo se ter convertido n'uma nu-
merosa colmeia em que enxameavam mulheres de varias pro-
cedência e idades.
Quando António Lobo ali entrou acompanhado pelo boti-
cário Mêna, não eram menos de sessenta as recolhidas, incluin-
do as serventes.
Havia até senhoras casadas, que iam hospedar-se no Anjo
emquanto os maridos andavam ausentes, e que se elles não
voltavam (tal seria o motivo da ausência dos pobres maridos)
facilmente alliviavam suas maguas em alegre convivência, ga-
lanteando na grade e rezando no coro.
A boa fama do primitivo Recolhimento perdera-se, não só
por haver ainda maior liberdade que nos conventos, mas tam-
bém porque as aabeihas mestras» pervertiam com o mau exem-
plo a ingenuidade das donzellas incautas.
A regente, tirada d'entre as «abelhas mestras», era, n'a-
quelle tempo, pessoa cujos instinctos libertinos António Lobo
logo surprehendeu na primeira entrevista, a que o boticário o
acompanhou.
Passava dos quarenta annos. Tinha umas feições angulo-
sas, e um buço espesso, que lhe davam o aspecto de um homem
feio e moreno, enroupado n'um habito pardo com touca branca
— o habito da casa.
— Esta mulher, pensava António Lobo ao observal-a, deve
ser commum aos dois sexos.
E reparou que ao mesmo tempo que ella, dirigindo-lhe a
palavra, torcia em sorrisos dengosos a bocca avariada, fallava
ás recolhidas, que foram chamadas á grade, com certa intima-
tiva máscula.
Appareceram quatro recolhidas; as pretensas alumnas de
lingua franceza.
Neuhuma d'ellas tinha aquella honesta gracilidade, aquella
singeleza de virtude que na Therezinha de Villalva tanto encan-
tara António Lobo.
Duas, principalmente, eram interessantes raparigas, de
semblante expressivo e agraciado, mas na physionomia de to-
das havia já o que quer que fosse da complicada existência con-
140
o LOBO DA MADRAGÔA
ventual, do viver do locutório e da cella, com segredos incon-
fessáveis, mexericos e intrigas, rivalidades e preciosismos,
conhecimento do mau e desejo de conhecer o peior.
Tratavam-se mimosamente umas ás outras pelos diminu-
tivos dos seus appellidos.
Tinha-as já crestado na face e na alma esse terrível hálito
o convento de Santa Clara no Porto
que, na vida em commum, parece sahir de muitas boccas, tur-
bilhonante de micróbios, empestando o ar.
Em nenhuma se adivinhava a poesia do mysticismo, o
extasi da devoção, a vocaçBo para a contemplativa pureza do
claustro.
Eram mulheres frívolas, presumidas, que disputavam frei-
raticos e que, para os conquistar, lançavam a rede todas qua-
tro ao mesmo tempo, fallando sempre, cortando as ph rases
umas das outras, crusando olhares astutos e disparando settas
cupidineas.
— Como foi que eu, pensava António Lobo, que nao gosto
de frades e de freiras, menos ainda de freiraticos, pude vir
cahir n'esta academia de amores ovidianos, peior ainda que a
dos sábios de Guimarães?! Eu, o chefe do club philosophico
de Villa Real ! A vida é um xadrez de contradicções e parado-
xos; a minha vida principalmente! Mas Deus escreve direito
por linhas tortas : é com esta tizana violenta que hei de curar
o LOBO DA MADRAGÔA 141
a saudade de Therezinha. O veneno também cura; a questão
é saber regular-lhe as doses.
António Lobo nSo sahiu do Recolhimento do Anjo sem
que as suas futuras alumnas o houvessem disputado n'um
ardente concurso de requebrados galanteios.
As duas, de que fizemos particular menção, pareceram
desde logo travar duello renhido, questionando a posse d'aquelle
sympathico novato que o boticário Ména lhes levara pela porta
dentro aos empurrões.
Na frequência dos conventos, os caloiros eram sempre
muito apreciados^ e António Lobo nSo tinha pratica da vida
das grades, mundo especial com que nunca havia querido fami-
liarisar-se, porque lhe repugnava.
O que é certo é que elle sahiu dizendo perspicazmente a si
mesmo :
— Bem! tenho que namorar as duas, o que é excellente
garantia de que me não apaixonarei por nenhuma. Duas garra-
fadas de tizana devem curar mais depressa que uma só.
O boticário Mêna não prescindiu de o levar também ao
convento de Santa Clara, contente de fazer serviços ás freiras
e de lhes poder dizer que só elle seria capaz de ter encontrado
um professor tão agradável, em vez de algum jarreta de óculos
verdes, tresandando a simonte.
Ahi vieram á grade quantas freiras puderam ter logo noti-
cia do feliz achado do Mêna e, coisa vulgar nas casas religio-
sas, também duas, principalmente, se avantajaram no «steeple-
chase» do galanteio.
Nenhuma d'ellas teria muito mais de trinta annos, e am-
bas possuíam o curso completo da vida mundanal dos con-
ventos.
Eram rivaes por systema, pois que presumiam ser as pri-
meiras esgrimistas na táctica do amor e da galanteria.
Uma chamava-se Clara Ribeiro, ou Ribeira, como diziam
lá dentro. Era uma tremelga de voluptuosidade. Hoje dir-se-ia
uma hysterica. A outra, apparentemente menos impulsiva,
chamava-se Terencia, e, coincidência digna de nota, tinha,
além do nome, mais alguma coisa de romana: o vulto mages-
toso e uma expressão altiva no olhar como deviam ter em
Roma as imperatrizes devassas.
— Bem! disse comsigo António Lobo. Duas vezes duas,
são quatro. Isto deve divertir muito a vida de um homem, que
precisa estontear-se.
Ao cabo de um mez António Lobo estava iniciado na arte
de fazer jogos malabares com o amor conventual : realizava
alguns prodígios de equilíbrio entre as suas quatro apaixona-
142 o LOBO DA MADRAGÔA
das, as do Anjo e as de Santa Clara, que se agatanhavam nos
corredores e nas cellas á conta dos verbos francezes e da con-
jugação com o respectivo professor,
Nenhuma das quatro cedia terreno, e António Lobo apa-
rava os golpes destramente, ripostando a ponto.
Recebia presentes de lindas meias de seda e camisas de
bretanha, com punhos e bofes encanudados; além de bo-
los, rebuçados de limão ou rosa, e licores fabricados pela pró-
pria mão, diziam ellas, das suas quatro nymphas amanteticas.
A mão sempre teve altas missões de prestigio e predomí-
nio a desempenhar na vida dos conventos.
Disse um poeta grego que o pé da mulher era divino. Pois
a mão da freira valia sempre mais do que o pé.
Lançado no turbilhão das grades, e manobrado pela força
motriz de quatro freiras e oito mãos, António Lobo cahiu em
cheio no fundo de todos os enredos, bisbilhotices, e complica-
ções conventuaes.
Os freiraticos do Porto tinham-lhe inveja, mas disfarçavam
sua emulação tratando-o como o primeiro entre elles, porque
o temiam.
E' que António Lobo despendurou da panóplia a tremenda
cimitarra das suas cóleras poéticas.
E vibrava-a com o arreganho que já nós lhe conhecemos.
A sua primeira victima foi um Tenório tripeiro, que a ma-
dre Ribeira de Santa Clara odiava, porque tinha sido seu assis-
tente na grade durante um trimestre e depois lhe passou o pé
para ir namorar uma tricana maneta, a quem a natureza com-
pensara dando mais belleza que dedos.
Clara Ribeiro, muito despeitada, dizia que nunca vira ta-
manho tolo com menos mãos, porque, ainda que viesse a des-
posar a tricana, não teria em casa mais de trez, quando deve-
ria ter quatro.
E vae o sujeito, sabendo isto, espalhou um dito de espirito
pela cidade :
— Que as mãos eram menos precisas ás outras mulheres
do que ás freiras. Fora dos conventos bastaria uma, e dentro
das grades não chegavam quatro.
António Lobo, para desaggravar a freira, açacalou este so-
neto contra o volúvel peralta e a linda manetinha, que lhe ia
sugando dispendiosas tufalarias:
As antigas historias turbulentas
Dizem, que vira o século dourado
Um homem de cem mãos agigantado,
Que n'ellas vinha a ter unhas quinhentas:
o LOBO DA MADRAGÔA 143
Ora um d'estes, se as garras avarentas
N'Azambuja affizesse a um bom cajado,
Que bolças não leria amarfanhado,
A quantos não quebrara ambas as ventas?
Assim, tripeiro, a manelinha bella
Com braço e meio, que no manto esconde,
Nú e crú te ha de pôr, que isso pôde ella:
Não ouças, não, a voz que te responde.
Que se pobre te vir, de mando d'ella
Has de ir logo beber, bem sabes onde.
O homem não foi beber a parte nenhuma : mas tratou de
alHciar despeitados contra António Lobo, o que decerto lhe
nao custou muito trabalho, porque o invejavam os que não dis-
punham de tantos recursos intellectuaes e desembaraço phy-
sico.
Cahindo n'um meio corrupto, onde paixões mesquinhas e
vicios torpes fermentavam, o génio violento e o caracter aggres-
sivo de Lobo resurgiram, porque já lhe faltava a contel-os o
amor plácido e casto que a Therezinha de Villalva soubera ins-
pirar-lhe.
Fazia lembrar realmente um lobo, que tivesse adormecido
e despertasse açulado pela vozearia perseguidora dos pastores
da serra.
O que elle queria era encontrar um pretexto para destam-
par satyras, vingando resentimentos próprios ou ódios alheios.
Assim foi que a breve trecho, por instigação da regente do
Anjo, que aliás nao podia ver, compoz e divulgou sonetos con-
tra um negociante portuense, secretario da Companhia dos Vi-
nhos, recentemente demittido d'este cargo.
Que mal fizera a António Lobo tal sujeito ? Nenhum. Mas
a regente tinha-o tido por collaborador em duetos de motête
cantados na grade. Seja dito de passagem que no Recolhi-
mento do Anjo, onde a padroeira era Santa Cecília, a musica
chegava a ser um vicio, entre os outros. E o melómano fras-
cario, envergonhado pela falácia da sua demissão, abandonara
a grade, a freira, a solfa, e o culto de Santa Cecília.
Lobo, atiçado insistentemente pela regente, perseguiu-o
com irritada persistência, gritando-lhe sonetos aos ouvidos :
Ponham-lhe a borla, ajustem-lhe o capello.
Mas enterrem-n'o logo, e é necessário,
Antes que entre a basofia a corrompêl-o.
Leve cada vendeiro um breviário
E vão todos rezar no Cabedêllo
Pela alma do seu grande Secretario.
144 o LOBO DA MADRAGÔA
E, alludindo sempre á demissão, que era a balda certa por
onde o queria ferir, começava outro soneto dizendo :
Co'um penedo ao pescoço pendurado
Lá vai um dar co'os ossos na Ribeira,
Sem bastão, sem chapéu, sem cabelleira
A morrer pelos vinhos afogado.
A vingança pela inconstância dos amantes era um causa
permanente d'estes e quejandos conflictos nos conventos de frei-
ras : ellas vingavam-se d'elles e elles vingavam-se d'ellas por
igual systema, em prosa ou verso, contando miudezas vergo-
nhosas e pormenores escandalosos.
Se na clientella do convento havia um poeta, era esse o
porta- voz da vingança das freiras, até que outro poeta o viesse
zurzir por sua vez, applicando a pena de Talião.
Ora a verdade manda dizer que no Porto havia algumas
casas religiosas onde se praticava a virtude e mantinha uma
austera disciplina. Eram poucas, e entre ellas devo citar uma,
que ficava fronteira ao Recolhimento do Anjo. Refiro-me ao
convento de «S. José» de Carmelitas descalças.
Ahi a clausura attingia rigores excessivos, porque as frei-
ras não tinham communicação nenhuma com o mundo exte-
rior, nem das suas próprias famílias recebiam noticias.
O padre Agostinho Rebello dizia, annos depois, referindo-
se a este convento : <N'elle floresce a mais regular observância,
e o exercido de todas aquellas virtudes próprias do seu refor-
mado instituto. A sua egreja é um devotíssimo santuário : as
festividades que n'ella se celebram, o aceio, a gravidade, o si-
lencio e a modéstia, tudo infunde um sagrado terror.»
Eu tenho ainda mais recente informação que a do padre
Rebello. Ouvi muitas vezes uma senhora idosa dizer que o con-
vento das carmelitas era uma sepultura impenetrável, onde
santamente jaziam mulheres impeccaveis. Essa mesma senhora
tinha acompanhado ali uma menina portuense, que ia vestida
de branco, como para um noivado espiritual : a qual menina
para sempre se despediu, á porta, dos pães e dos parentes.
Elles, sem poder arrancar-se d'ali, chegaram a ouvir ranger a
tesoura com que a todas as noviças eram cortadas as tranças
do cabello. Depois, cerrada a clausura, a joven carmelita não
tornou a saber mais nada do mundo.
Em seguida á morte de D. João V, o povo do Porto, para
fazer justiça ás freiras virtuosas, chamava «odivellas» ás que
o não eram.
As recolhidas do Anjo pertenciam ao rol das «odivellas».
Na sua egreja, toda de pedra lavrada, o triduo da Senhora da
o LOBO DA MADRAGÔA 145
Apresentação e a festa de Santa Cecília eram como ruidosos
passatempos n'uma sala mundana, por opposiçao ás silenciosas
e graves solemnidades que se celebravam no visinho templo
das carmelitas descalças. E a vida normal parodiava as liber-
dades da madre Paula e outras madres reguengueiras no fa-
moso serralho monástico de D. João V.
Um dia em que António Lobo sahia do Recolhimento do
Anjo, passou por elle uma camponeza, «lavradeira» como lá se
diz, que parou a observal-o.
Elle nem fez reparo.
Era a recoveira de Santo Thyrso.
— Ou eu nao estou boa do juizo, pensou ella, ou aquelle é
o «Mafarrico de Guimarães» em carne e osso.
Iam passados quatro mezes depois que António Lobo par-
tiu da Palmeira, e Therezinha não tornara a saber d'elle, que
lhe não sahira uma hora do pensamento.
A principio, a linda cachopa de Villalva resentiu-se do que
se lhe affigurava uma traição : ter elle partido ás escondidas,
guardando tanto segredo para ella como para as outras pes-
soas.
Depois comprehendeu que o beijo, primeiro e único, que
elle lhe roubara, valia tanto como a mais carinhosa despedida,
o mais enternecido adeus.
E desde que tinha podido traduzir a expressão apaixonada
e dolorosa d'esse beijo, o seu amor por António Lobo tornou-se
adoração, capaz de todos os sacrifícios.
A recoveira foi dizer para Santo Thyrso que tinha visto o
«Mafarrico» no Porto.
Esta noticia depressa chegou á Palmeira, onde Therezinha
logo a soube.
O mesmo foi sabel-a e ir procurar a recoveira no empe-
nho de colher pormenores.
— Diga-me uma cousa, ó «ti» Anna, então vocemecê, se-
gundo por ahi sôa, viu o sr. António Lobo no Porto?
— Vi mesmo, com estes que a terra ha de comer. Vi-o sa-
hir a porta do Recolhimento do Anjo.
— Pareceu-lhe que terá saúde ?
— Se tem ! Está tão fero como na Palmeira.
— Melhor é assim.
Houve uma pausa, o tempo preciso para a Therezinha se
resolver a fallar claro.
— O' * ti» 'Anna! Eu quero encommendar-lhe uma cousa.
— Pois diz lá, cachopa.
— Mas olhe que é um grande segredo-
E a recoveira, muito ladina :
10
146 o LOBO DA MADRAGÔA
— Quantos segredos eu não levo e trago do Porto I E' mais
um. Hei de poder aguentar-liie o peso.
— Se vossemecê seria capaz de saber onde mora no Porto
o senhor António Lobo.
— O' rapariga ! Só se eu o tornar a vêr e lh'o perguntar.
— Isso não I que elle nâo Ih^o dizia.
— Então não sei que te faça
— Olhe! vá vossemecê ao Recolhimento do Anjo, já que
de lá o viu sahir, e pergunte se elle lá vae por uso e costume.
Talvez por ahi se possa saber alguma cousa.
— Lembras bem ! Para a outra vez já te eú trago a res-
posta. Mas, olha lá, ó cachopa, isso não será para teu mal?
— Não, <iti»'Anna. Não suspeite maldade nenhuma.
— Pois vê lá, que eu não quero andar mettida em enredos,
nem ter carregos na consciência.
— Tire d'ahi a idéa, e pegue lá esta lembrança.
Era dinheiro.
Na semana seguinte, a recoveira de Santo Thyrso andou
pelos arredores do Recolhimento do Anjo a vêr se encontrava
António Lobo.
Não o viu.
Resolveu-se a entrar na portaria e perguntar se ali costu-
mava ir um individuo d'aquelle nome.
— António Lobo ! repetiu a porteira. Não. Aqui vem á
grade alguns Antonios, que visitam as senhoras, mas nenhum
é Lobo.
— Este deve estar no Porto ainda ha pouco tempo.
— Ha pouco tempo V Vem cá um António Claudino, que é
do Alto Minho; mas não se chama Lobo.
— O que eu digo é de Guimarães.
— Então é outro com certeza.
Levou a recoveira esta desconsoladora resposta que amar-
gurou o coração de Therezinha.
— «Ti» Anna! se vossemecê descobrir no Porto o sr. An-
tónio Lobo, pode contar com uma boa molhadura.
— Pobresinha sou eu, e preciso muito de ganhar a vida.
Mas isso é o mesmo que procurar agulha em palheiro.
— Com a ajuda de Deus talvez consiga.
Passaram mais de seis mezes, e um dia a recoveira foi a
Villalva dizer, muito contente, a Therezinha :
— Rapariga ! tornei a vêr o sr. António Lobo !
— Aonde?!
— N'uma botica da rua do Moinho de Vento. Puz-me á
coca até que elle sahiu. Fui atraz d'elle seguindo-o de longe, e
vi-o entrar para o Recolhimento do Anjo.
o LOBO DA MADRAGÔA 147
— Outra vez para o mesmo sitio! exclamou Therezinha
com atormentado semblante. E depois?
— Deixei-o entrar no Recolhimento e, passado algum tempo,
fui perguntar á porteira : faz favor de me dizer como se chama
aquelle senhor que para aqui entrou ainda agora?
— E ella o que disse?
— Que se chamava António Claudino.
— Mas é elle?
— E' elle, sem tirar nem pôr.
— E que sabe mais, «ti» Anna?
— Perguntei-lhe se sabia dizer onde elle morava. E vai ella
respondeu: «Olhe, onde mora não sei ao certo; mas na botica
do Mêna, ali no Moinho de Vento, lh'o poderão dizer.»
— E vossemecê foi á botica ?
— Então não havéra de ir 1
— Como foi que disse na botica?
— Perguntei se me podiam dizer onde morava um sujeito
da minha terra. . .
— Bem ! bem ! Chamado como ?
— Não que eu percebo-te, cachopa. Chamado António
Claudino, pois já se deixa vêr.
— Não fallou em Lobo ?
— Pensas tu que eu nasci honte ? ! Logo futurei que elle te-
ria mudado de nome por algum motivo; talvez por causa d'es-
sas questões que dizem que teve com as gentes de Guimarães.
— Mas no fim de contas onde é que elle mora?
— Na rua do Pinheiro, numero 11.
— Ah I «ti» Anna ! vossemecê andou com muita esperteza!
Merece bem a molhadura. Amanhã lh'a darei, e não ha de
tornar ao Porto sem m'o dizer.
— Conta comigo, cachopa, visto que não andas de mau
sentido.
— Já lhe disse que não. Pôde estar socegada.
Depois que a recoveira se despediu, Therezinha ficou a
olhar, pensativa, para a escassa corrente do Sanguinhêdo, que
derivava por entre pedras soltas, lentamente.
A linda cachopa de Villalva não podia dizer a si própria se
devia estar alegre, se triste. Sabia onde António Lobo morava
no Porto, mas sabia também que elle ia repetidas vezes ao Re-
colhimento do Anjo.
— E' namoro que lá tem... pensava ella.
E ficava a scismar n'esta funesta apprehensão. Depois pro-
curava reanimar-se dizendo — Mas, finalmente, tornei a saber
d'elle ! D'ahi a pouco voltava ao desalento que esta idéa amarga
justificava: «D'elle que não quiz saber de mim!...>
148 o LOBO DA MADRAGÔA
Se soubesse escrever, leria dito tudo isto n*uma longa carta,
muito longa, a António Lobo.
Não sabia, nem queria confiar a ninguém todos estes Ínti-
mos segredos, que eram ao mesmo tempo a felicidade e a tor-
tura da sua vida.
O amor das mulheres honestas retrai-se n*um pudor invio-
lável, que é como que a flor da castidade occulta no mysterio
do coração.
Therezinha demorou o olhar indeciso nas boninas que es-
maltavam a verdura pelas encostas floridas do pequeno valle
de Villalva.
— Bem! disse ella. Já sei quem ha de escrever por mim.
D'ahi a dois dias a recoveira voltava ao Porto.
Therezinha entregou-lhe um pacotinho, enleiado com uma
fita verde.
— Veja lá, «ti» Anna, que se não estrague o papel pelo ca-
minho. Vossemecê vai á rua do Pinheiro numero 11 e deixa
ficar isto para ser entregue ao sr. António Claudino. Nao diz
quem é que manda. Tome bem sentido.
— Fica certa, cachopa.
Dentro do pacotinho ia um ramo de «Nao me esqueças,»
atado com um fio de cabello.
XII
Hova sepapaçáo
António Lobo nao podia aguentar-se por muito tempo n'uma
sociedade de freiras e freiraticos, que detestava, e cujos ridicu-
los lhe estavam a cada momento estimulando a lyra.
Elle, que em Villa Real protestara contra as costumeiras
amorosas de Portugal, contra o requebro derretido, contra o
«gargarejo» nocturno e outras apaixonadas pieguices, não po-
dia sujeitar-se, sem mais ou menos próxima revolta, ao namoro
da grade, através de uma barreira de ferro, o galan aqui, a
freira além, trocando-se olhares, phrases e gestos n'um duetto
de cómicos arroubos, que a decência não auctorisava.
Pôde bem imaginar-se a impressão que lhe causaria rece-
ber as flores mandadas pela Therezinha de Villalva, cuja alma
elle divinisava no confronto com o atoleiro em que chafurdavam
as freiras e os freiraticos do Porto.
Foi o próprio António Lobo quem d'essa vez fallou com a
recoveira de Santo Thyrso.
Quando ella lhe entregou os myosótis, commoveu-se pro-
fundamente.
E abriu a sua alma n'uma torrente de perguntas cheias de
affectuoso interesse :
— Então a Therezinha está linda, muito linda?
A recoveira respondia com todo o seu desembaraço mi-
nhoto :
— Benza-a Deus! Não ha nos nossos sitios cachopa mais
perfeita.
150 o LOBO DA MADRAGÔA
— E a respeito de conversados?
— Nenhum.
— Nem o pobre Miguel ?
— Credo! Elle anda sempre n'um derreto, mas ella n?lo lhe
dá attençSo.
— E a tia Rosa ainda vive?
— Sim, senhor. Sempre emprégadinha.
— E o Manuel barqueiro?
— Sao como um pêro.
Depois António Lobo quiz saber como a recoveira tinha po-
dido encontral-o no Porto, descobrir a rua onde elle morava.
Riu-se muito quando ella lhe contou que a atrapalhara o
dizerem-lhe que elle se chamava António Claudino.
Lobo interrompeu-a dizendo :
— Eu nSo fiz crime nenhum, «ti» Anna ; quero apenas que
os meus inimigos, que sao gente poderosa, me deixem em paz.
A recoveira contou tudo, e descreveu, na sua linguagem
rude mas pittoresca, o afan com que Therezinha a incitava a
que lhe levasse noticias e com que costumava interrogal-a sem-
pre que tornava do Porto.
António Lobo deteve-se algum tempo em silencio, como
quem está luctando comsigo mesmo na resolução de um lance
embaraçoso.
De repente, sentou-se a uma banca e escreveu com extrema
rapidez em meia folha de papel :
Se te esqueci ? Esquecer- to 1 Jamais.
Amo-te e fujo ; fujo e amo-te mais.
Foram estes dois versos os únicos de amoroso lyrismo que
António Lobo de Carvalho escreveu em toda a sua vida.
Quero dizer ao leitor o modo como Therezinha conseguiu
lêr o papel que elle lhe mandara.
Fingiu que o tinha encontrado na rua de Santo Thyrso, ê
mostrou-o a um pequeno, que andava aprendendo latim no
mosteiro benedictino.
— Achei ainda agora este papel. Vê lá o que elle diz.
O rapaz leu, e Therezinha sentiu fugir-lhe a vista, zumbi-
rem-lhe os ouvidos, tamanho abalo lhe causou a audição
d'aquellas doces palavras, que lhe pareceram musica tão linda
como o canto do rouxinol.
Ella, procurando recobrar-se da primeira commoção :
— Torna a ler. Como é bonito isso! De quem será?
O rapazote, muito sentencioso :
— Isto quanto a mim devem ser versos traduzidos de Ho-
rácio ou de Ovídio.
o LOBO DA MADRAGÔA 151
— Nao São pessoas de cá ?
— São poetas de Roma.
— Torna a lêr, que é um gosto ouvir.
E, á segunda audição, Therezinha reteve de memoria os
versos : ,
Se te esqueci ? Esquecer-te ! Jamais.
Amo-te e fujo ; fujo e amo-te mais.
Durante mais de um anno não faltaram a António Lobo as
remessas de flores campestres, especialmente myosótis, que a
recoveira lhe levava todas as semanas.
Eram as cartas de Therezinha : boninas.
António Lobo algumas vezes tentou escrever-lhe, mandar-
Ihe palavras de carinhosa correspondência.
— Não posso! dizia elle largando a penna. Aquelles dois
versos foram o único poema casto da minha alma. Tão espon-
taneamente os compuz, que despedacei, no afogo de compol-os,
a lyra do amor.
Estranhou António Lobo que depois de certo tempo a re-
coveira de Santo Thyrso não voltasse mais com as flores de
Therezinha.
Passaram-se quatro ou cinco mezes n'um silencio para elle
inexplicável.
Morreria? perguntava a si mesmo. Mas então porque não
vem dizer-m'o a recoveira?
Um dia, ao entrar no Recolhimento do Anjo, a porteira
disse-lhe que estava na grade uma senhora á espera d'elle.
— E não ha de ser só uma, respondeu António Lobo ma-
liciosamente.
— E' uma, que entrou hontem.
— Hontem ?
António Lobo correu á grade, onde Therezinha o estava es-
perando, já com o habito pardo e a touca branca, da casa.
— Therezinha! aqui? exclamou António Lobo fulminado de
dolorosa surpreza. Aqui ! n'este Recolhimento, santo Deus !
Ella, n'uma grande vibração de sensibilidade delicada, ex-
plicou :
— Tinha morrido primeiro a tia Rosa, pouco tempo depois
o Manuel barqueiro. Estava livre e só. Lembrara-se de procu-
rar uma casa religiosa onde pudesse viver honestamente. E a
terra que ella preferia... era o Porto. Mas não quizera naan-
dar-lhe dizer nada, para lhe preparar uma surpreza. Prohibira
até a recoveira de o procurar.
— E que passos deu para entrar aqui, Therezinha?
— Foi o meu padrinho que tratou dos papeis necessários.
152 o LOBO DA MADRAGÔA
Segundo elle me disse, foi preciso mandar vir de Lisboa certo
documento.
— Um aviso régio?
— Isso mesmo.
— Ah ! Thereziniia ! se me tem dito o que tencionava fazer,
eu oppor-me-ía a que entrasse n'este Recolhimento.
Therezinha, com a voz embargada de lagrimas, disse a
custo :
— Fiz-lhe mal, sr. Lobo?
— Nao, nunca. Mas fez mal a si própria, que é uma vir-
tuosa rapariga, e que nao deve estar aqui, onde a virtude se nSo
dá bem com os hábitos da casa.
Therezinha aventurou, com pudibunda timidez, uma phrase
que aflorou aos lábios emperlada de lagrimas :
— A recoveira disse-me que o sr. Lobo vinha aqui muitas
vezes. . .
— Tenho vindo, sim, mas eu sou um homem que nao tem
que perder. As mulheres d'esta casa nao sao dignas de convi-
ver com a Therezinha :
— Então nao ha aqui pessoas virtuosas, como eu pensava?
— Ha mulheres que a Therezinha não deve conhecer e que
eu... nao posso amar.
Um clarão de alegria illuminou o rosto de Therezinha, que
demorou em António Lobo um olhar de espanto.
Elle comprehendeu-a e insistiu :
— Que eu não amo; que ninguém ama.
Houve um momento de silencio, após o qual António Lobo,
fitando-a com ternura, lhe disse :
— Avalio o sacrifício que fez em deixar Villalva !
Ella sorriu-se com mavioso acanhamento.
— Disse-me uma vez, tornou elle, que lhe custaria ser cons-
trangida a deixar a sua terra, se fosse preciso.
— Pois lembra se?! perguntou Therezinha com involun-
tária precipitação.
— Lembro, sim. E eu não quero que faça esse sacrifício.
A virtude da Therezinha não precisa defender-se n'um convento;
a si mesma se defende em toda a parte. E o Recolhimento do
Anjo não é baluarte de virtudes. Ouve, Therezinha? Desejo que
volte para Villalva.
— Que volte?!
— Sim, que volte. E ha de fazer-me esse sacrifício, já que
está disposta a fazel-os.
— Não me quer vêr!
— Quero vêl-a, e vejo-a sempre na minha alma. Juro-lhe
que nao amei nunca tao puramente mulher nenhuma.
o LOBO DA MADRAGÔA 153
— Mas.. .
— Diga, falle.
— Mas por que vem então aqui, tantas vezes?
— Venho matar o tempo, esquecer-me da felicidade que
não posso ter. . . Vivo aqui, como um animal immundo n'uma
pocilga. Juro-lh'o, juro-lh'o, acredite.
Therezinha olhou- o n'um enternecimento, que era extasi.
Inclinou levemente a cabeça, para esconder um novo cau-
dal de lagrimas, e disse:
— Pois bem, sr. Lobo, farei o que me ordenar.
— Muito lh'o agradeço... por si e por mim. Quem a acom-
panhou ao Porto?
— O Miguel.
— Miguel ? 1
— Sim, leal e dedicado como um cão. Imagine quanto lhe
custaria este meu passo. Pois eu pedi-lhe, e elle annuiu a acom-
panhar-me.
— Já voltaria para a Palmeira?
— Ainda não.
— Muito bem. E' o Miguel quem vae tornar a acompa-
nhal-a. E' preciso partir amanhã de manhã.
- Mas o que hão de dizer cá dentro do Recolhimento !
— Isso é comigo, Therezinha. Eu tratarei d'isso.
N'este momento abriu-se de súbito a porta interior da gra-
de, que Therezinha, inexperiente dos hábitos conventuaes, não
tinha fechado por dentro.
Appareceu um grupo de recolhidas, vindo á frente uma
das apaixonadas de António Lobo, a qual irrompeu em descom-
posta gritaria :
— Ouvimos tudo! Com que então, sr. António Lobo, per-
dão... sr. António Claudino, esta mimosa ovelhinha, que faz
de Vossa Mercê um lobo manso, não pôde ficar entre nós ou-
tras, que somos ovelhas tinhosas ! Forte desaforo o de Vossa
Mercê, e forte sonsice a d'esta... virtuosa minhota, casta flor
de innocencia !. . .
Casquinaram gargalhadas de ironia e de troça n'um retin-
tm arruaceiro de praça publica.
António Lobo, de pé, o olhar desvairado, o gesto iroso, gritava:
— Venha a regente, que me quero entender com ella. Se
não vier, vou eu mesmo arrancal-a lá dentro.
— Olha o lobo assanhado!
— Mais que lobo 1 Parece tigre da Hyrcania !
— Não se enfureça tanto, que a regente não tarda. Já a
Mirandinha foi avisal-a de toda esta fabula em acção : um lobo
e uma cordeira.
154 o LOBO DA MADRAGÔA
— Ah ! ah ! ah ! riam em coro as recolhidas.
Mirandinha era a outra amantetica de António Lobo, a
qual, perante o perigo da concorrência, fizera causa commum
com a sua antiga rival.
A regente não tardou a apparecer, acompanhada pela Mi-
randinha e por mais duas ou trez recolhidas.
Vinha irada e facunda.
— Esta mesquinha morta, dizia ella, indicando Therezinha,
pediu-me licença para vir entregar na grade uma carta do seu
padrinho, o padre cruzio D. Joaquim Mariz, ao sr. António
Claudino. Perdão ! eu já sei que Vossa Mercê também é bicho.
Pois ignorava que tivesse costella de «lobo!» Boa raça! não ha
duvida !
António Lobo, n'uma formidável explosão de cólera, rugiu
temerosamente :
— Cuidado! Não me provoque! se não quer que eu ponha
á luz do sol todos os podres e todas as torpezas d'esta casa.
Sabe que sou capaz de o fazer.
— Capaz d'isso é Vossa Mercê, replicou irónica a re-
gente. Mas esta prenda não pôde ter entrado hontem e sahir
amanhã, depois de haver perturbado a nossa paz interna. Um
tão estranho successo chamaria descrédito sobre o nosso Re-
colhimento.
— Descrédito! sublinhou, gargalhando, António Lobo. Esta
senhora é de maior idade, e livre á sombra da lei. Quiz entrar
hontem, e entrou. Agora quer sahir, e sahirá. Se a maltrata-
rem, ir-me-hei queixar ao bispo, ao corregedor, ao regedor das
justiças, a el-rei em pessoa. Esta noite porei de ronda ao Re-
colhimento um homem de confiança. Ao menor grito pedirá
auxilio, se d'elle carecer, o que eu duvido, porque é homem
para varrer uma feira.
António Lobo referia-se a Miguel.
Therezinha estava mais admirada que medrosa de quanto
ouvia. Mulher do Minho, não conhecia perigos, nem receios.
E, mentalmente, explicava a si própria o procedimento de An-
tónio Lobo em não a querer ali.
— Bem. Esta rica prenda é um «noli me tangere», ironisou
a regente.
Todas as recolhidas glosaram a phrase com uma risada.
António Lobo disse imperiosamente a Therezinha, corus-
cando em redor um olhar terrível :
— Recolha-se á sua cella, que eu amanhã a virei buscar.
Perante a firmeza d'esta ordem, Therezinha sahiu da gra-
de. As recolhidas deixaram-n'a passar em silencio.
— E agora ? perguntou zombeteiramente a regente.
o LOBO DA MADRAGÔA 155
— Agora, respondeu Lobo, a cabeça de Vossa Mercê res-
ponderá pela cabeça d'ella.
Voltou as costas e sahiu altivo.
Momentos depois, era procurado em casa pelo Miguel, que
lhe disse :
— Sr. Lobo, venho pedir-lhe um favor. Therezinha quiz
vir para o Recolhimento, e eu acompanhei-a como se fosse
innao d'ella. Bem sei eu o que a chamou ao Porto, e o sr.
também sabe. Mas agora níio ameaço, peço-lhe encarecida-
mente que Ucio a desencaminhe do Recolhimento.
— Miguel ! Therezinha volta comtigo amanha para Villalva,
que assim o quero eu.
— Voltai exclamou Miguel doido de alegria.
Depois, António Lobo explicou-lhe os motivos d'esta reso-
lução, contou-lhe toda a scena que se tinha passado na grade
e recommendou-lhe que n'essa noite vigiasse o Recolhimento.
— Se eu ouvir Therezinha grilar ou chorar, arrombo a
porta do Recolhimento e vae tudo raso lá dentro. Sou muito
capaz de o fazer.
Passadas algumas horas, o boticário Mêna foi procurar
António Lobo para lhe pedir «que evitasse o escândalo da im-
mediata sabida de D. Thereza», palavras suas.
Era commissão da regente.
Pediu, instou, supplicou.
António Lobo mostrou-se inexorável, e o boticário sahiu
irritado, mas receioso, dizendo do fundo da escada :
— Desde hoje em deante as nossas relações estão quebra-
das.
— «Serviteur. ..» respondeu-lhe António Lobo, mesurando
como um «frança».
Este rompimento de relações explica o soneto com que o
poeta o verberou dizendo :
Pois ali onde o vês, feito herbanario,
Jaz o Mêna, que além da fidalguia
E' um «francez» da Beira extraordinário.
No dia seguinte, Therezinha sabia, livremente, do Reco-
lhimento do Anjo.
E despedia-se de António Lobo n'uma tocante effus5o de
lagrimas.
Elle ieve ainda o impulso de querer beijal-a, como na Pal-
meira, mas nSo ousou íazel-o na presença de Miguel.
Trocaram-se poucas palavras n'essa despedida, tão escura
quanto ao porvir como nuvem negra que ensombrasse aquel-
les dois corações.
156
o LOBO DA MADRAGÔA
Só Miguel parecia feliz, sem comprehender o sacrifício de
ambos.
António Lobo conservou-se apparentemente forte, mas
n'essa noite chorou deante de um amigo que nos últimos dois
mezes tinha encontrado no seu caminho.
Era um fidalgo de Riba-Douro, o morgado da Boa Vista,
janota e dissipador, gentil e bem fallante, que frequentava
no Porto todos os logares mundanos.
Lobo principiou a conhecel-o e a aííeiçoar-se-lhe nas gra-
des dos conventos.
O morgado, ouvindo a confidencia, dissera-lhe:
— Eu comprehendo isso, meu caro Lobo. Todo o homem
ama uma vea na vida; a sua
hora chegou. Eu também a tive.
Quando isso acontece, um ho-
mem procura salvar-se, colhen-
do nas outras mulheres o que
dignamente respeitou n'uma. E'
o que eu faço, e Vossa Mercê
deve fazer. Minha prima, a sr.*
duqueza D. Anna de Lorena,
camareira-mór, costuma dizer
que cada mãe toma tanto vulto
na vida de um filho, que ainda
depois de morta lhe reapparece
na figura d'outra mulher, para
continuar a amal-o. Eu já perdi
esse segundo coração materno,
que a terra da sepultura devo-
rou. Vossa Mercê é mais feliz
do que eu, porque ainda o sente
pulsar. Contente-seeresigne-se.
Vamos d'ahi a Santa Clara con-
versar com as freiras, já que as
portas do Anjo estão interdictas
por amor de outro anjo bem
mais puro.
E, dizendo isto, compôz os
anneis da cabelleira, cantaro-
lando um minuete da época:
Olha o casquilho
Com seu requeijão:
Vae ao Rocio
O «lorgado da Boa Vista Comel-O COm pãO.
o LOBO DA MADRAGÔA 157
Planeou-se no Recolhimento do Anjo uma campanha de
vingança contra António Lobo, á qual promptamente adheri-
ram o boticário Mêna e todos os poetastros que, na enxurrada
de Apollo, vasavam delambidos madrigaes dentro das grades
d'aquelle Recolhimento.
Appareceram pasquins affixados nas ruas do Porto, prin-
cipalmente á porta dos magistrados e mais pessoas gradas da
cidade.
Além de pôr suspeição sobre a mudança de nome, e de
engranzar vários trocadilhos ensôssos com as palavras «lobo»
e «cordeira», cada pasquim apontava António Lobo como pa-
rasita, vadio, ingrato e relapso immoralão.
Frizava-se o caso do boticário Mêna o ter protegido, e de
haver sido desacatado por elle, isto á conta de provar uma in-
gratidão abominável.
Quanto á «immoralidade», nem as recolhidas nem os seus
Adónis passaram de uma vaga accusação, porque lhes não con-
vinha, por interesse próprio, desfiar este caso.
A' maior parte dos conventos do Porto chegou o ecco do
escândalo publico em que António Lobo se via envolvido; me-
nos áquelles em que a disciplina monástica levantava uma bar-
reira invencível entre a clausura e o mundo.
No convento de Santa Clara, a abbadeça recommendou ás
duas freiras visitadas por António Lobo, Clara Ribeiro e Te-
rencia, que dessem de mão a esse desacreditado visitante, de
quem tão ruidosamente se fallava em toda a cidade.
Cada uma das duas freiras, assim avisadas, teve o pensa-
mento de explorar a occasião em proveito próprio. E, sem dize-
rem nada uma á outra, chamaram immediatamente António
Lobo para uma entrevista, que, segundo informaram a abba-
deça, tinha por fim despedil-o definitivamente.
Lobo estranhou algum tanto a pressa, mas foi.
Clara Ribeiro disse-lhe, chorando, amal-o tão desvairada-
mente, que não podia conformar-se com a ordem da abbadeça:
estava prompta a fugir com elle, e offerecia-lhe o dinheiro de que
precisasse para effectuarem a fuga o mais rapidamente possível.
Quando isto ouvia. Lobo ria-se para dentro, sem atinar
ainda com o plano deClara Ribeiro.
Pediu algumas horas para responder, simulando complica-
ções da sua vida que não podiam deixar de ser ponderadas e
resolvidas antes de sahir do Porto.
E, a pensar, sorrindo-se, no que tudo aquillo quereria di-
zer, foi d'ali a outra grade onde a madre Terencia estava em
«pose» deante do pintor Glama, que dias antes tinha sido cha-
mado para retratal-a.
158 o LOBO DA MADRAGÔA
Já agora, duas palavras apenas sobre este artista, que tanto
honrou a pintura portugueza.
JoSo Glama nasceu em Portugal no principio do século xviíi,
mas provinha de familia allema.
Estudou em Roma, e depois veiu estabelecer-se no Porto,
onde pintou muitos quadros para as egrejus e onde, sobretudo,
adquiriu grande clientella e fama como retratista.
Sabe-se que esteve em Lisboa ao tempo do terremoto, por
uma tela que deixou sobre esse trágico assumpto, e regressou
ao Porto mais laureado ainda pelo bom êxito que obteve na ca-
pital.
Terencia, logo que viu entrar António Lobo, pediu ao pin-
tor Glama que suspendesse n'aquelle dia a sessão, porque tinha
que transmittir ao recemchegado uma ordem urgente da madre
abbadeça.
O retratista sahiu, e Terencia disse a António Lobo o mesmo
que lhe tinha dito Clara Ribeiro.
Era, também, uma proposta de fuga.
— Mas o que será isto?! perguntava António Lobo a si
próprio.
Deu resposta idêntica á que tinha dado pouco antes, e, sa-
hindo do convento de Santa Clara, correu a procurar o mor-
gado da Boa-Vista para lhe contar o estranho successo.
O morgado ria-se ouvindo, e commentou dizendo :
— Vossa Mercê, meu caro Lobo, conhece ainda pouco a
astúcia dos conventos. Ambas essas mulheres querem abando-
nar a clausura, e, como Vossa Mercê está em descrédito, pre-
tendem iniputar-lhe a culpa de as haver descaminhado do trilho
da virtude Uma vez cá fora, passavam-lhe o pê. Vossa Mercê
ficava sendo a victima expiatória, e ellas iam viver regalada-
mente com quem quizessem e onde quizessem. Olhe que é isto.
— Será?! Tanto não attingia eu, por falta de pratica no
género.
— Sabe uma coisa? Se eu não tivesse de ir agora a Lisboa,
visitar os primos Lorenas, quem fugia com as freiras era eu.
— Vossa Senhoria?!
— Por que não? Era uma aventura em duplicado, que me
custaria apenas algum dinheiro. Meu caro Lobo ! quer Vossa
Mercê vir comigo até á corte? Oífereço-me para freira, e fuja
comigo.
— A Lisboa?
— Sim, a Lisboa, que sempre ha de divertir a gente um
pouco mais do que o Porto.
— Mas ir. .. como?
— Contando com a minha bolsa. Clara Ribeiro e Terencia
o LOBO DA MADRAGÔA 159
nao lhe offereciam dinheiro para a fuga? Também eu lh'o offe-
reco. Deixa-se seduzir?
— Já estou seduzido, porque estou farto do Porto, onde toda
a matilha dos freiraticos me ladra e morde.
— Pois então está resolvido. Vamos a Lisboa.
António Lobo sentou-se á banca e começou a escrever so-
netos fesceninos ás duas freiras de Santa Clara.
Era a sua resposta ás propostas de ambas.
N'um dos sonetos alludia ao retrato de Terencia pintado
por Glama :
Mandou Terencia chamar Glama um dia
Para que o seu retrato lhe fizesse,
Porém que de tal sorte a descrevesse,
Que Vénus desbancasse em bizarria.
Antes de partir do Porto, Lobo enviou uma palavra de sau-
dade a Therezinha.
Era a única pessoa cuja doce lembrança lhe podia acalmar
lodos os ódios que trazia no coração.
Foram duas linhas apenas :
«Therezinha, vou a Lisboa com um amigo, mas levo a sua
imagem presente na minha alma.»
Quando este bilhetinho chegou a Villalva, e Therezinha o
ouviu lêr, disse comsigo mesma, n'um grande e angustioso
desalento :
— Tão longe! Lisboa! Quem sabe se poderei tornar a
vêl-o?
Algum tempo depois, o Miguel barqueiro enfermava grave-
mente de uma febre infecciosa.
Therezinha foi-lhe desvelada enfermeira, com uma piedosa
dedicação que só podia ser excedida por a de alguma exemplar
irmã de caridade.
Nas crises de lucidez, Miguel perguntava-lhe affectuoso :
— S,e eu não morrer, Therezinha, casarás comigo?
Ella respondia-lhe serenamente :
— O que é preciso é que tu melhores. O futuro a Deus per-
tence.
E muitas vezes, no meio de fervorosas orações ao Altíssi-
mo, de dia ou de noite, insistentemente, lhe passavam no pen-
samento, a confundirem-se com o texto das orações, aquelles
dois versos de António Lobo, que para sempre tinham ficado
gravados na sua alma :
Se te esqueci? Esquecer-te ! Jamais.
Amo-te e fujo ; fujo e amo-te mais.
FIM DA PRIMEIRA PARTE
PARTE II
Delieíoâ da 'selliiee
11
XIII
|ia vida aipada de Iiisboa
Facilmente ganhou António Lobo popularidade na capital.
O morgado da Boa-Vista, primo da camareira-mór, tinha
boas relações na corte, com a melhor nobreza do reino, ligado
a ella por laços de mais ou menos remoto parentesco.
A senhora D. Anna de Lorena, além da subida considera-
ção de que gosava no Paço pelo seu alto cargo de camareira-
mór, agraciada com o titulo de duqueza em 1753, * era supe-
riormente instruída, pois cultivava a musica, o desenho e as
lettras * e estava aparentada com muitas das principaes famí-
lias, por seu pae, marquez de Fontes e Abrantes, por seu ma-
rido e tio, D. Rodrigo de Mello, da casa de Cadaval, e por seus
irmãos, todos elles pessoas da maior representação e respeita-
bilidade.
Na pintura. Vieira Lusitano igualou-a a Serrani e Rosalba,
famosas pintoras italianas.
Fique já dito que a senhora D. Anna de Lorena falleceu no
Lumiar em 3 de setembro de 1761, ^ deixando uma única filha,
mas que, depois do seu fallecimento, o morgado da Boa-Vista
continuou a manter cordeaes relações de parentesco e amizade
com Fontes, Abrantes, Cadavaes, Penaguiões e Lencastres,
^ «Gabinete histórico,» tom. XII, pag. 252.
2 «Hist. Gen.,» tom. X, pag. 388 e «Theat. Heroino», tom. II, pag 494.
3 «Gab. Hist.,» tom. XV, pag. 201.
164 o LOBO DA MADRAGÔA
que genericamente costumava designar pela expressão familiar
de — primos Lorênas.
E genealogicamente nSo havia incorrecção n'este dizer.
O morgado levou António Lobo aos palácios dos seus il-
lustres parentes, no que seguiu o exemplo de outros muitos fi-
dalgos que, por moda e distincção, protegiam versejadores.
Pôde assim dar-se ares de um Mecenas que, vindo á corte,
visitar pessoas altamente collocadas, se fazia acompanhar do
seu poeta mercenário.
O próprio morgado reconheceu o bom effeito d*esta feliz ca-
sualidade, e António Lobo, por sua parte, reconheceu que Lis-
boa era a única terra do paiz onde valia ainda a pena ser poeta
para viver sem trabalhar.
Sob este ponto de vista, a província, confrontada com a ca-
pital, era uma triste miséria, uma reles pelintraria.
Em casa do marquez de Niza encontrou António Lobo um
collega, que logo lhe deu a medida da elasticidade lucrativa a
que podia chegar a prenda de fazer versos.
Esse poeta era João Xavier de Mattos, em volta do qual já
se havia formado uma lenda de celebridade, e que, sendo filho
de um criado do duque de Cadaval, conseguira obter o logar de
ouvidor na Vidigueira, onde apenas ia de longe a longe, por-
que preferia viver alegremente em Lisboa, e aos protegidos dos
grandes fidalgos tudo se consentia e tolerava.
Na primeira noite em que o morgado da Boa-Vista concor-
reu com o seu poeta a um serão de musica em casa do mar-
quez de Niza, a certa hora, depois de gentis damas haverem
entoado graciosas árias e minuetes, ouviu-se, ao fundo da sala,
bater as palmas: e logo irrompeu uma saraivada de oitavas e
decimas em honra dos donos da casa, dos seus convidados, das
suas respectivas famílias e brazões.
António Lobo quiz saber quem era o poeta improvisador.
— Pois ainda não ouviu fallar! E' o Mattos.
— Mattos?
— Sim, João Xavier de Mattos, o auctor da «Écloga de Al-
bano e Damiana,» que anda no pregão dos cegos, e toda a gente
tem lido.
E, depois de haver soado esta como estrondosa salva de
versos, uma dama disse em voz alta um mote, que logo o Mat-
tos glosou, e succederam-se com enthusiasmo outros motes e
outras glosas, vendo António Lobo que as senhoras se presa-
vam de ir premiar o poeta com sequilhos, fatias de pão de ló e
cálices de vinho.
Não obstante a atlitude subalterna do Mattos, que se con-
servava ao fundo da sala, como um actor chamado a divertir
o LOBO DA MADRAGÔA 165
a sociedade sem fazer parte d'ella, este ruidoso triumpho agra-
dou a António Lobo, recemchegado de terras menos cultas, onde
os poetas se viam perseguidos em vez de favoneados.
Postas em scena as Musas, era natural que alguém se
lembrasse ali do poeta do morgado da Boa Vista.
Foi chamado a terreiro António Lobo, que estava muito
acanhado deante de tâo selecta e brilhante sociedade, nova
para elle, e deante do receio de lhe falhar a improvisação 'em
competência com o Mattos.
O marquez de Niza, para fazer honra ao morgado, quiz
dar o primeiro mote a António Lobo.
Deteve-se um momento a procural-o, mas ouvindo n'uma
conversação o conde da Calheta fallar casualmente de um certo
casquilho portuguez, aproveitou a phrase dizendo :
— Não estou hoje em veia para achar motes. Mas dal-o-ha
por mim o conde da Calheta, a quem agora mesmo ouvi dizer
— «de um casquilho portuguez.» Todos ouviram ?
A assistência sorriu applaudindo a coincidência e sobre-
tudo a habilidade com que o marquez de Niza tinha apanhado
no ar um mote, que se lhe negava.
António Lobo fez- se muito branco. Um leve tremor ner-
voso crispava-lhe os dedos. Passou a mao direita pela testa,
concentrou-se um momento e bateu as palmas.
Toda a sala ficou silenciosa e attenta.
António Lobo declamou :
Um chapeo bem recortado,
E tope maior que a cara ;
No seu pescoço uma vara
De panno bem amassado;
Espadim atravessado ;
O vestido todo inglez ;
Quasi descalços os pés ;
Com mau feitio e postura :
E' esta a triste figura
D'um casquilho portuguez.
Os assistentes acolheram com applausos calorosos este
improviso do poeta provinciano, que respirou desopprimido como
se acabasse de passar o Rubicon.
O morgado da Boa Vista ficou contente e ufano.
E João Xavier de Mattos, certamente nSo sem algum custo,
applaudiu também.
— Abracem-se os poetas, que são dignos um do outro
como improvisadores, disse o marquez de Niza.
Lobo avançou para Kavier de Mattos, a abraçal-o, e, como
se n'aquella hora tomasse definitivamente o logar que lhe es-
166 o LOBO DA MADRAGÔA
tava destinado na sociedade portugueza, passou o resto da
noite ao fundo da sala e ao lado do Mattos.
Está bem de ver que ficava de pé, também desde aquella
hora, a natural emulação entre ofificiaes do mesmo ofificio, se
bem que os dois poetas viessem a ser sócios e companheiros
na vida airada, não sem algumas intermittencias de turvação,
aliás ephemera.
Graças ao morgado da Boa-Vista, a celebridade de Antó-
nio Lobo irradiou das salas para as ruas, onde elle se popula-
risou na companhia de Xavier de Mattos, glosando ambos á
porfia nos abbadeçados dos numerosos conventos de Lisboa e
até nos arraiaes nocturnos com que se festejavam os santos de
muitos nichos e oratórios em algumas ruas e prédios.
Lisboa ia resurginrio dns ruinas do terremoto, e com a
reedificaçao renascia a alegria e a mundanidade que tanto ca-
racterisam frivolamente a Índole dos lisboetas.
O rasto de terror, que essa grande calamidade deixara,
apagava-se deante da rapidez com que a cidade estava sendo
reconstruída mais bella e symetrica, graças á prodigiosa acti-
vidade com que Sebastião José de Carvalho presidia a todos os
serviços da reconstrucçSo.
O embaixador de França já confessava ter-se enganado
quando dissera para a sua corte que nao poderia o primeiro
ministro completar a obra que emprehendera.
No fim do anno de 1756 estavam reedificados mais de mil
prédios, e com a tranquilidade e confiança do espirito publico
reanimava-se a vida popular nas ruas e a vida elegante nas
barracas de madeira ou lona, para onde muitas famílias illus-
tres, incluindo a real, tinham ido residir provisoriamente.
O palácio do marquez de Niza fora um dos que ruiram no
bairro de S. Roque, mas continuaram no palácio que este fi-
dalgo tinha em Xabregas os alegres serões de jogo e musica,
como aquelle em que António Lobo conheceu João Xavier de
Mattos.
Outras famílias transferiram pelo mesmo motivo a sua re-
sidência para os palácios de recreio que possuíam nos arredores
de Lisboa.
Muitos conventos, de frades e de freiras, desabaram, mas
os «outeiros» realizavam-se nos improvisados abarracamentos
onde as communidades se abrigavam, esperando a reedificaçao
de suas antigas clausuras.
António Lobo, voltando agora a Lisboa, vinha encontrar
uma cidade nova, desembaraçada, segundo o plano pombalino,
das antigas e sombrias ruellas em que faltava o ar e a luz.
E ao passo que a cidade lhe apparecia transmudada mate-
o LOBO DA MADRAGÔA
167
rialmente, tombem lhe abria novos aspectos sociaes a vida da
alta roda lisbonense, que o primo da camareira-mór lhe pa-
tenteara, e que elle não tinha conhecido, nem sequer suspei-
tado, quando esteve na capital, a primeira vez, acompanhado
pela tancareira Min.
Então apenas tomara pé na estalagem do Reboto, aonde
Reedifioaoão de Lisboa
unicamente aflBuiam as classes inferiores e alguns jarrêtas bur-
guezes. -^^
Agora era a Lisboa aristocrática, a Lisboa dos fidalgos e
dos Mecenas, a Lisboa da bohemia litteraria, dos poetas para-
sitas, das casas de pasto celebres e das lojas de bebidas mais
celebradas, era toda esta cidade imprevista que se lhe revelava
como deslumbrante e estonteadora surpresa.
As horas fugiam-lhe rapidamente, durante o dia, que elle
gastava ao ííaino pelos bairros da cidade, vendo surgir rapida-
mente arruamentos magestosos e reconstituir palácios notáveis.
O Terreiro do Paço e o Chiado, esses dois importantes fo-
cos da antiga vida lisbonense, transformavam-se resaindo
d'entre escombros pavorosos, e António Lobo pasmava de os
vêr ir tomando de semana para semana uma physionomia mo-
derna, muito differente d'aquella com que primeiro os co-
nhecera.
O Terreiro, onde os Paços da Ribeira ficaram arruinados
pelo terremoto e as suas 'ruinas enegrecidas pelo incêndio,
devido á intenção criminosa de um forçado das galés, o Ter-
reiro, cujo arco abatera e onde o theatro e a patriarchal de D.
168 o LOBO DA MADRAGÔA
João V desabaram, enchendo de pedras e caliças todo o vasto
perímetro que vae hoje desde a rua dos Fanqueiros até ao
largo do Pelourinho, o Terreiro, que António Lobo tinha visto
povoado de carruagens brazonadas e de cavalieiros gentis, es-
quadriava-se agora n'um prospecto mais regular, se não mais
amplo, combinando a harmonia das suas linhas geraes com a
uniformidade dos novos arruamentos da «Baixa».
O Chiado, essa artéria elegante, muito procurada pelo tran-
sito que se agitava entre o Bairro do Rocio e o de S. Roque,
ficara tão destroçado pelo terremoto, tão «campo solitário»,
como diz o padre Theodoro de Almeida na aLisboa destruída»,
que nuvens de pardaes, tomando conta do sitio, pareciam que-
rer resistir ao ruido que faziam os operários reconstruindo os
prédios.
O leitor sabe, provavelmente, que o terremoto de 1755 deu
origem a dois poemas, aquelle, do famoso padre Theodoro de
Almeida, muito interessante em pormenores históricos, e a
«Lisboa reedificada», de Miguel Maurício Ramalho, semsabo-
ria assaz mythologica e soporifera.
Pois figure-se, passando hoje da leitura de um para outro
poema, qual seria a serie de impressões que António Lobo re-
cebeu do confronto da Lisboa nova com a Lisboa antiga, cal-
culando o leitor essas impressões pelo aspecto das ruínas que
o padre Theodoro diz parecer terem sido feitas
Por canhões, por bombardas, e pelouros
e pelo aspecto da cidade renascente, sob os auspícios de Júpi-
ter e Vénus, segundo Miguel Ramalho :
Da cidade, que tanto Vénus ama,
Já por Jove excellente plano feito,
Sem demora de Atlante ao netn chama,
Para haver cora vigor de ter efifeilo.
Quanto á tendência de Jove para os alfacinhas, não sei
nada; mas creio firmemente que, por motivos de gratidão, Vé-
nus dispensasse especiaes favores á capital.
Ainda hoje é o mesmo, segundo me parece. • . mytholo-
gicamente.
A vida de Lisboa, jorrando d'entre ruínas, sobre as quaes
uma cidade nova despontava com todo o seu turbilhão de ne-
gócios, de enredos, de prazeres e ócios mundanos, empolgou
capitosamente António Lobo.
A política, eterna Penélope, tecia e destecia os principaes
enredos; ou antes, a nobreza urdia e Sebastião de Carvalho
o LOBO DA MADRAGÔA 169
destramava, com férreo pulso, os meandros da meada em que
a nobreza queria enleiar a acção poderosa do primeiro ministro.
Depois de D. João II, nao se tinha ainda visto em Portu-
gal mais agitada e tormentosa época pelo que respeitava á po-
litica interna do paiz.
Os jesuitas estavam ameaçados e a nobreza esmagada, por
que Sebastião de Carvalho, aproveitando o ensejo de uma cons-
piração nocturna contra a vida d'el-rei, fizera justiçar no cães
de Belém alguns representantes das principaes famílias do reino,
o duque de Aveiro, o marquez e a marqueza de Távora, e o
conde da Athouguia.
Os jesuitas, apesar da má vontade que lhes tinha Sebastião
de Carvalho, puderam escapar das estreitas malhas do processo
da conspiração, mas na sentença do tribunal da inconfidência
ficaram consignadas algumas plirases que serviriam de apoio
ao primeiro ministro para expulsar de Portugal a Companhia
de Jesus.
Era uma questão de adiamento, apenas.
Mas foram desde logo encarcerados alguns jesuitas, que
nunca mais sahiram do forte da Junqueira. Outros, os que sa-
hiram, foram relaxados á Inquisição, que os condemnou a gar-
rote e fogueira.
Na politica interna, Sebastião de Carvalho, agora premiado
por el-rei D. José com o titulo de conde de Oeiras e auxiliado
no poder pela coadjuvação de seus irmãos, como secretários de
Estado, defrontava- se gigantescamente com a influencia das
classes preponderantes, conseguindo contei -as sob a mão her-
cúlea de ministro valido.
António Lobo nada linha com os negócios públicos, mas
elle, como todos os seus collegas em Apollo, apaniguados das
familias nobres, a cuja sombra viviam, tomava o partido da no-
breza.
Isto explica a alluvião de satyras em verso com que fora
alvejado Sebastião de Carvalho durante todo o periodoMa sua
preponderância e ainda depois.
Ao passo que os fidalgos faziam espalhar anecdotas e gra-
ciosidades deshonrosas para o conde de Oeiras, os poetas que
viviam do favor d'elles secundavam-n'os compondo diatribes
metrificadas, que mais ou menos secretamente passavam de
mão em mão, contra o primeiro ministro.
Bastará citar uma d'aquellas phrases envenenadas pela hos-
tilidade rancorosa dos fidalgos.
A casa de Sebastião de Carvalho fora poupada pelo terre-
moto, El-rei D. José quiz vêr n'esse facto um desígnio da Pro-
videncia.
170 o LOBO DA MA DRAGO A
O conde de Óbidos tivera a affouteza de observar a el-rei :
— Certo é, senhor, naas semelhante protecção acharam tam-
bém em Deus as moradoras da rua Suja.
Eram, pois, os fidalgos que davam o alamiré aos seus poe-
tas, açulando-os contra o conde de Oeiras.
Teremos occasião de vêr quanto António Lobo odiava, por
conta alheia, Sebastião de Carvalho.
O que é certo é que, graças ao morgado da Boa-Vista, que
nial se podia despegar de Lisboa, António Lobo estava rela-
cionado com as melhores famílias da nobreza, d'onde sempre
ia colhendo proveito; e que tinha adquirido celebridade como
poeta commentador dos acontecimentos occorrentes.
Quando em 1761 o conde de Oeiras supprimiu o Tribunal
das Contas, substituindo-o pelo Erário Régio, nomeou alguns
mancebos para desempenharem as funcções dos antigos empre-
gados, que aposentou com o ordenado por inteiro.
Dizia Seí)astião de Carvalho que, se conservasse em exer-
cício um só d'estes empregados, nSo seria preciso mais para
que todos os vicios e desleixes do Tribunal supprimido se com-
municassem á nova repartição do Erário.
Assim, pois, aos jarretas-pé de boi que foram despedidos,
succedeu uma chusma de rapazes, sangue novo, que estadea-
yam sua boa sorte em requintes de aperalvilhado trajo por egre-
jas, theatros e funcçanatas.
Logo a opinião publica os alcunhou de «eraristas,» como
querendo designar uma nova classe de casquilhos e franchi-
notes.
António Lobo, fazendo a politica dos fidalgos, acudiu de
prompto com um soneto ridicularisar a nova providencia do
conde de Oeiras :
Vocês não me dirão (valha a verdade)
Que gente é esta, ha pouco apparecida,
Toda authentica, toda presumida,
Que aão os pais e avós da gravidade ?
A casaca maior que a eternidade,
Com forro de setim, feição comprida,
Onde o seu canhão mór leva embebida
Larga veste, calção bera à vontade ?
O chapéu, que fez paz co'a cabelleira,
E em tudo segue o metliodo contrario
D'esta nossa armação da frigideira?
Mas tá, tá, que pergunto? Eu estou vario ;
Já entendo, isto é cousa que me cheira
A mestre era dança, ou aprendiz do Erário !
o LOBO DA MADRAGÔA 171
Os factos da politica internacional, pondo em jogo a acção
do conde do Oeiras, também nao passavam despercebidos aos
poetas queridos dos fidalgos.
Entre esses factos, os que até então podiam ter maior im-
portância, eram a expulsão do núncio apostólico e as hostilida-
des entre Portugal, Hespanha e França, por causa da famosa
questão do «Pacto de familia,» em que Portugal seguira o par-
tido da Inglaterra, cujo predomínio marítimo aquellas duas ul-
timas nações pretendiam abater.
O nosso paiz foi invadido por tropas hespanholas e france-
zas, e o nosso exercito, prodigiosamente organisado pelo conde
de Lippe, marchou para as províncias do norte.
António Lobo nSo deixou emmudecer perante este aconte-
cimento a sua veia cómica; sublinhou-o com um soneto em que
ao mesmo tempo envolve o Porto e Lisboa:
Ide, novos heroes, ide, e Mavorte
Vos reja o coração, vos guie o passo,
Porque seja outra vez pequeno espaço
O mundo inteiro ao vosso alento forte.
Ide com fausto auspicio, e queira a sorte
Dos inimigos no destino escasso
Converter era Irophéos cada ameaço,
Reduzir a triumphos cada corte.
Ide em fim ; mas se acaso o medo abala
Algum pobre cadete, que se encova
Ao zunir d'uma bomba ou d'uma bala,
Desatai-lhe os calções, dai-lhe uma sova,
E que vá para o Porto fazer sala
Ao grande Cabo mór de Villa Nova.
Desde a sua chegada á corte até ao fim do anno de 1769,
António Lobo firmou créditos de poeta popular, que tocava os
extremos da mordacidade, assoprado pelo applauso de amigos
e admiradores, nem sempre sincero; ás vezes suggerido pelo re-
ceio de represálias e intencionado, quanto aos fidalgos, pelo in-
teresse politico e pelo gosto da louvaminha que os desvanecia.
O collaborador da «Revista universal lisbonense» pinta-nos
com exactidão António Lobo quando descreve n'estes termos a
sua vida em Lisboa :
«Frequentando como parasita as casas dos grandes, que o
recebiam e festejavam uns em attenção ao seu talento, outros
por medo da sua mordacidade; quando tinha dinheiro gastan-
do-o prodigamente nas lojas dos pasteleiros com os seus ami-
gos, e perdendo-o nas casas de jogo; não respeitando ninguém
nos seus sonetos satyricos, era António Lobo uma espécie de
172 o LOBO DA MADRAGÔA
Paschino ambulante; festejado por todos os faceiras do tempo,
corria com elles os cafés, as grades de freiras, as jornadas e
funcções de cirios, e de fora da terra, divertindo a todos com
os seus ditos chocarreiros, bem que fosse de seu natural um
homem melancólico e casmurro.»
O biographo não attingiu todo o alcance d'esta sua ultima
phrase, nem procurou justifical-a, pois que apenas estava es-
crevendo um ligeiro artigo.
António Lobo não era, de seu natural, habitualmente me-
lancólico e, menos ainda, casmurro.
Bem sabemos que tinha génio folgasão e facilmente com-
municativo.
Mas havia na sua irrequieta vida de Lisboa algumas horas
de cerrada melancolia e intratável azedume : eram aquellas
em que a lembrança do «paraizo perdido» da Palmeira lhe acu-
dia ao espirito, e a imagem honesta de Therezinha o tantalisava
n'um eterno martyrio de amor e saudade.
— Eu sou, dizia elle a si mesmo, uma creatura condem-
nada á desgraça, porque nasci fora da acçSo normal da exis-
tência, que leva o homem a querer constituir familia para crear
raizes n'um lar e n'uma terra. Nâo trabalho, nSo sou social-
mente um disciplinado, nem um utii. Por isso não posso ter a
minha casa, a minha familia, como toda a gente. E'-me defeso
o casamento, e comtudo encontrei no mundo, para castigo de
mim próprio, uma encantadora mulher, que poderia fazer de
mim o mais ditoso aldeão, se eu lograsse caber n'uma aldêa, e
que seria a mais infeliz das creaturas se viesse perverter-se
n'uma cidade.
A idéa d'este supplicio fatal, imposto pelo destino, revolta-
va-o, sempre que lhe assaltava o espirito.
E então, para aturdir-se, procurava a embriaguez de uma
vida frivola e licenciosa, em que dissipava os dias e as noites,
sorrindo elle próprio, provocando a hilaridade dos outros, e
tendo algumas vezes vontade de chorar.
Dizia-se geralmente, quando o viam exceder-se em morda-
cidade, que a «gloria lhe subia á cabeça» ; não era isso. N'es-
sas occasiões, tão vulgares na sua vida, sentia Therezinha den-
tro do coração opprimido.
E, louco de dôr, revoltado de desespero, feria os outros,
embora fossem amigos seus, para ter companheiros na des-
graça.
O leitor conhece certamente um latim que diz: «solatium
est miseris sócios habere penates.» Ter companheiros na des-
graça consola os desgraçados.
t7 a caracteristica vulgar do egoismo humano.
o LOBO DA MADRAGÔA 173
A expressão «Paschino ambulante,» empregada pelo colla-
borador da «Revista Universal,» pertence originariamente a um
advogado de Lisboa, o dr. Francisco Martins de Sampaio, que
ripostou ás arremetidas de Lobo com. armas iguaes : o soneto.
Ahi vai uma das vivacissimas réplicas do advogado :
Lobo infernal, gallego petulante,
Da vil canalha poeta laureado,
O segundo Valverde encabeçado,
Ou alma d'este cemitério errante ;
Papa-janlares, caloteiro andante,
«Pasquim vivente», cynico malvado,
Que o áureo Pindo tens emporcalhado,
E ao Parnaso roubado o seu brilhante ;
Gato pingado d'esse enterramento,
Adello de sonetos era Lisboa,
Vil calouro com patas de jumento ;
Pega na tumba, satyras entoa
Aos juizes de vil merecimento
Supultados nos autos do Alagôa.
Por que arremetteria António Lobo contra o advogado Sam-
paio?
Bem poderia ser sem motivo algum, como ás vezes acon-
tecia, nSo escolhendo o poeta as pessoas, nem ponderando as
conveniências.
Mas d'esta vez não foi assim.
O morgado do Sobral (Anselmo José da Cruz Sobral), de
cuja algibeira António Lobo comia sempre que precisava, plei-
teava uma demanda importante com o morgado da Alagôa.
Sampaio, advogado d'este ultimo, tinha dito que, se não
vencesse a causa em favor do seu constituinte, havia de quei-
mar a livraria.
Venceu Sobral, e António Lobo quiz fazer engulir com um
soneto a phrase ao advogado, lisonjeando assim o vencedor, a
quem n'outro soneto chama seu «grande Anselmo.»
A expressão «gallego petulante», empregada pelo dr. Sam-
paio, explica-se pelo facto de António Lobo ser natural de Gui-
marães.
Os alfacinhas chamam gallegos aos minhotos, n'um sentido
pejorativo.
Quando António Lobo se enfurecia contra alguém, nem o
seu próprio interesse o continha.
Elie, que tanto precisava como ocioso do favor dos nobres,
não se arreceiou de investir contra um dos mais poderosos, e
174 o LOBO DA MADRAGÔA.
parente do morgado da Boa- Vista, só porque lhe fizera um offe-
recimento que reputou affrontoso.
Passou-se o caso com o duque de Cadaval, D. Miguel, que
tendo ouvido recitar versos de Lobo, e achando-lhes graça,
quiz alistar na sua comitiva mais uma pessoa, que nas horas
de aborrecimento o distraisse.
Mandou por um escudeiro offerecer um quarto no seu pa-
lácio ao jovial poeta.
Lobo previu que o duque pretendia alliciar um truão. Re-
voltou-se. Demorou o criado, sentou-se á banca, e escreveu
este audacioso soneto :
Se eu fora, excelso Duque, homem perito,
Capinha, ferrador, cabelleireiro,
De cães decurião, ou cosinheiro,
Em sopas mestre, em massas erudito;
Se em lettra antiga lesse o que anda escripto
De vosso grande avô João Primeiro,
Que á gothica mostrasse ao meu caseiro
Que o tombo velho nunca está prescripto;
N'e8te caso, senhor, a vossa graça
Mais quizera alcançar, que ter mil burras
Do metal louro, que se ri da traça :
Mas como a sorte me tem dedo surras,
Não vou servir-vos, só por não ter praça
No livro mestre dos santões caturras.
Depois dobrou o papel, e disse ao escudeiro que o entre-
gasse ao duque seu amo.
Era a resposta ao convite.
E, comtudo, António Lobo habitava quartos, cuja renda
não podia pagar, vendo-se na necessidade de pregar calote ou
de pedinchar indulgência aos senhorios, alguns dos quaes eram
também pessoas nobres.
O duque de Cadaval julgou-se offendido, por sua vez. E
António Lobo pagou bem cara a ousadia, porque soffreu prisão
correccional, durante vinte e oito dias, na cadêa do Limoeiro.
Desde que Lobo encontrara Xavier de Mattos no palácio
do marquez de Niza, fizera-se seu amigo, sem embargo da emu-
lação litteraria, do ciúme de celebridade, sempre latente entre
os dois poetas.
Muitas vezes moravam juntos, e até, á mingua de melhor,
dormiam no mesmo leito; juntos frequentavam as casas de
pasto do Isidro, do Almeida e do Talaveira, bem como o arma-
zém de vinhos dos Bragas, ao Rocio.
o LOBO DA MADRAGÔA 175
Pois, não obstante estas constantes ligações de amizade,
Lobo não poupava Xavier de Mattos, satyrisando-o pelo seu
excessivo lyrismo e sensibilissima compleição amorosa.
Vá já uma eloquente amostra :
Assim que vês deixada da costura
De traz da adufa a timida donzella,
Como um raio, João, com os olhos n'ella
Lhe encampas reverente uma mesura.
Safa-se a moça ; e o pai, que por ventura
Vem chamar o aguadeiro da janella,
Repara então que a filha se acautella
D'essa tua scismatica ternura.
Por amante basbaque a bom capricho
Te aponta logo o ginja furibundo,
Se ó que prompta não tem a pá do licho.
O final do soneto é cortante de ironia, pois que aconselha
João Xavier de Mattos a casar-se, dizendo-lhe que mais valia
soífrer as infidelidades conjugaes, embora permanentes,
Do que andar quebra-esquinas vagabundo.
Aqui temos, pois, claramente justificada a expressão «Pas-
quim vivente» com que o advogado Sampaio classificou Antó-
nio Lobo, e também a de «Diógenes poético,» com que o coor-
denador dos seus sonetos o cognominou.
Lobo precedeu Tolentino, ainda aliás seu contemporâneo,
na exhibição do typo de poeta pedinchão e parasita ; e precedeu
chronologicamente Bocage no typo de poeta bohemio, errante,
e mordaz.
Foi no valor litterario inferior a ambos elles, mas, fundindo
n'um só aquelles dois modelos, encarnou em si a physionomia
do poeta mercenário e desvairado do século xviii, em Portugal.
Não teve os arroubos lyricos de Bocage, mas conheceu
como elle o amor puro, raio de sol nas trevas de tresloucados
e frequentes desmandos.
Não cantou mulher nenhuma, porque amou uma só, e o
amor que a Therezinha de Villalva lhe inspirou foi tão casto,
que elle não o pôde divulgar pela mesma lyra onde aconsoan-
tava sonetos malévolos ou libertinamente desgrenhados.
Cortejou fidalgos, para comer d'elles : era o interesse ser-
vil que o inspirava, como aos outros poetas do seu tempo.
Lobo não fez parte da Arcádia, mas até os árcades que re-
presentavam maior cotação litteraria ou social, não deixaram
176 o LOBO DA MADRAGÔA
de ter seu Mecenas a quem interesseiramente louvaminha-
vam.
O padre Domingos Caldas Barbosa, brazileiro mulato, que
chegou a Lisboa ahi por 1762 e que tão perseguido foi, depois,
por Bocage e José Agostinho de Macedo, mal poz o pé em terra
tratou de obter o favor de um fidalgo : o seu Mecenas foi o
conde de Pombeiro.
Está «lançado» na bohemia do seu tempo o poeta António
Lobo, e desenhada a feição com que n'ella conseguiu salien-
ta r-se a breve trecho.
Vamos assistir, no capitulo seguinte, ao desenrolar de um
acontecimento mundano, que lhe deu ainda maior evidencia e
renome.
Razão teve o estalajadeiro Reboto para exclamar, ufano,
quando uma noite viu entrar pela porta dentro António Lobo
de Carvalho, acompanhado de João Xavier de Mattos:
— Ah ! voltou ! Fez muito bem. Eu não lhe dizia que Lis-
boa é o abeijinho de Portugal» e que Vossa Mercê podia fazer
carreira aqui? Diga-me : a respeito de estrangeiras... nunca
mais?
António Lobo estremeceu.
— Nunca, disse elle contrapondo a essa pergunta a lem-
brança de Therezinha. Detesto-as.
— Ainda bem! Eu cá ainda estou na minha. A prata da
casa sabe a gente quanto vale; a outra. . .
Entrou um freguez que reconheceu António Lobo, e disse
ao estalajadeiro, em voz baixa :
— Bravo! seu Reboto. Você tem cá hoje o celebre poeta
Lobo !
Com surpreza. Reboto contestou de rijo :
— Este sr. já foi meu hospede, sabia-o poeta, e tenho, com
eífeito, ouvido fallar muito de um repentista chamado Lobo,
mas nunca pensei que se tratasse da mesma pessoa.
— Então quem? perguntou o freguez.
— Suppunha que era o pintor, que tem o mesmo appel-
lido.
António Lobo de Carvalho exclamou raivoso :
— O que?! Não me confunda com esse reles pintamonos,
que é mau pintor e ainda peior versisía.
João Xavier de Mattos sorria, porque já tinha ouvido a
mais alguém o mesmo equivoco.
Houve, eíTectivamente, um pintor, contemporâneo do poeta,
com igual appellido. Foi artista medíocre e versejador insigni-
ficante. António Lobo tinha razão para protestar; sem embar-
go, a confusão, occasionada pela coincidência dos appellidos,
o LOBO DA MADRAGÔA 177
fez que Wolkmar Machado, na Collecção de memorias, attri-
buisse ao pintor versos que sSo do nosso poeta e teem bem as-
signalado o seu cunho litterario. *
— Com que então, tornou Reboto, é o meu antigo hospede
o Lobo de quem tanto se faila !
— E também nSo conhece o que vem com elle? perguntou
o freguez.
— João Xavier de Mattos? Esse já eu sabia quem era.
E o estalajadeiro correndo, ainda muito vigoroso, para An-
tónio Lopo, apostrophou :
— Dizem que ninguém é propheta na sua terra, mas eu fui.
Com que então já poeta afamado I e de mais a mais sem querer
saber de aventureiras de contrabando! Está completo I está
completo !
* Machado era mais novo 18 annos que António Lobo, cora quem por
esta razão não conviveu decerto, e faltava-lhe senso critico para destrinças
litterarias.
12
XIV
chegada da Zampepini
Em 1770 deu-se em Lisboa um acontecimento que, posto
fosse na apparencia vulgar e insignificante, maiormente em
época de tao graves occorrencias politicas, teve comtudo per-
turbadora influencia nos costumes, na bolsa dos argentarios,
na paz das famílias, no socego das mulheres, e na camaradagem
dos poetas.
Foi a chegada de uma companhia de cómicos italianos, á
testa da qual estava a oprima-donna» Anna Zamperini, natural
de Veneza.
Parece incrível, mas é verdade.
Quem contratou esta companhia foi o notário apostólico da
nunciatura, banqueiro em negócios da cúria romana, de appel-
lido GaUi.
Este pormenor ainda mais deve admirar o leitor, mas tam-
bém é verdadeiro.
Parece que tendo sido violentamente interrompidas as nos-
sas relações com a corte de Roma em junho de 1760, o sr. Galli
aproveitou em outros negócios o largo periodo de dez annos
que decorre entre aquella data e agosto de 1770, que foi quando
novamente se abriu communicação diplomática com a Santa Sé.
Entre os «outros negócios» que entretiveram o imaginação
e a cobiça do notário Galli, sorriu-lhe a idéa de uma empresa
theatral, que se prefigurava tanto mais lucrativa, quanto era
certo que já se não ouviam cantarinas italianas em Lisboa desde
alguns tempos.
o LOBO DA MADRAGÔA
179
A companhia Zamperini veiu trabalhar no theatro da rua
dos Condes.
Este theatro ou pateo, como ainda no principio do século xviii
se dizia, era antigo e n'elle tinham sido dadas funcções de co-
media italiana, de operetta e «ballets», e até de «marionnettes» ou
bonifrates.
O terremoto de 1755 pregou com elle em terra, mas o edi-
fício foi reconstruído, segundo o plano do architecto Petronio
Mazoni, no sitio em que estivera a cadêa do Tronco.
O novo theatro era de apertadas dimensões. Lord Beckford,
O segundo theatro da Bna dos Condes
nas suas «Cartas,» falia d'elle com desdém, dizendo-o baixo e
estreito. Tinha razão. Eu também ainda o vi, o que decerto
aconteceu a muitos dos leitores, pois que o theatro da rua dos
Condes, tal como foi reconstruído, subsistiu até 1882.
Foi então demolido, e substituído pelo actual theatro do
mesmo nome.
Mas vamos a dizer o que era o theatro que Mazoni planeou
e onde a companhia da Zamperini se fez ouvir do publico.
Tinha o aspecto de um barracão com uma só porta na fa-
chada principal, e duas janellinhas esguias no alto, junto aos
cunhaes do prédio. Entre as duas janellas corria o dístico :
«Theatro da Rua dos Condes.» Torneando para a rua d'este
nome, seguia outro corpo do edifício, com portas e janellas aca-
nhadas, de mau aspecto.
Interiormente, além das varandas, havia trez ordens de ca-
marotes, incluindo as frisas, que então se chamavam «forçu-
ras.» Eram nove camarotes de cada lado, e cinco ao fundo. Não
180 o LOBO DA MADRAGÔA
se dizia ordens, mas «andares;» as frisas constituiam o pri-
meiro andar.
Preços dos camarotes : os mais caros, 3$200 réis ; os mais
baratos, 1$600 réis.
Cada logar na platéa superior pagava-se por 480, e, na in-
ferior, por 400 réis.
Cada logar nas varandas custava 200 réis.
Os camarotes eram resguardados com rótulas de madeira,
de traz das quaes muitas pessoas podiam observar o espectá-
culo sem serem vistas. Foi assim que D. João V concorrera
ás recitas da cantora romana Petronilha Trabó.
Também era assim que os frades gosavam as funcções
theatraes; havia um camarote especial para elles, sotoposto aos
que as senhoras da alta roda, «dames de la première qualité,»
diz o cavalheiro de Oliveira, costumavam honrar com a sua
presença. Chama va-se «o camarote dos frades.» Eu suspeito
que seria uma «forçura» ou frisa.
O leitor está decerto sorrindo ao lembrar-se do que pode-
riam ser as facécias dos frades, a coberto das rótulas, e den-
tro d'aquella alegre jaula onde os profanos os não podiam
ouvir.
O theatro da Rua dos Condes, menos espaçoso que o do
Bairro Alto, tinha, comtudo, maior ornamentação.
Os trabalhos de scenographia estavam confiados aos pinto-
res Gaspar Raposo, que por ser aleijado das pernas andava
n'um carrinho, e Manuel da Costa.
Foi decerto um d'estes pintores que desenhou sobre a bocca
do proscénio a inscripção t Nobre ócio,» que António Lobo ri-
dicularisou n'um soneto.
De modo que, segundo esta legenda, os frades que a co-
berto das rótulas iam applaudir a Zamperini, gastavam tão
«nobremente» o seu tempo, como Cicero quando durante a di-
ctadura de César preenchia seus ócios escrevendo as «Tuscu-
lanas,» trabalho que elle próprio qualificava «otium cum digni-
tate.»
Os frades também se divertiam «nobremente» tusculando
com os olhos e os ouvidos, como Cicero o fazia com a penna.
Não ha differença nenhuma.
Mas, como de mais longe eu vinha dizendo, a chegada da
companhia Zamperini causou grande alvoroço em Lisboa.
Os fidalgos e os capitalistas trataram logo de aposentar
commoda e elegantemente as cantarinas, especialmente a «es-
trella» Anna Zamperini, que trazia familia.
Sabe-se que lhe foi posta casa com mobilia estofada de
seda azul, azul e branca, e amarella, mesas e papeleiras de pau
o LOBO DA MADRAGÔA 181
santo, espelhos, placas, e dois cravos, além dos utensílios de
toucador, guarda-roupa e cosinha. *
A mulher de theatro foi o grande aperitivo amoroso do sé-
culo XVIII para os fidalgos e banqueiros portuguezes.
O cavalheiro de Oliveira chama-lhe «morceau friand,» como
quem diz: fina petisqueira.
Pouco importava que a mulher de theatro fosse mais ou
menos bonita, mais ou menos talentosa. Era de theatro, e bas-
tava. Os fidalgos que nSo tivessem uma aventura de camarim
julgavam-se incompletos, sobretudo agora, que D. JoSo V dei-
xara o exemplo da Petronilha.
Os poetas, para agradar aos fidalgos que os sustentavam,
cantavam e decantavam as actrizes e cantoras, alçapremando-as
ao sette-estrello. Quando perpetravam a tolice de o fazer de
conta própria, o mais que podiam obter era um êxito de gar-
galhada, porque as «divas» riam-se d'elles, e os outros poetas
também.
Vamos ter occasião de o verificar.
A familia Zamperini compunha-se do pai, e de trez filhas,
incluindo a «prima-donna »
O pai era um tragamouros de avantajada estatura, com
uma cabelleira tao farta e redonda, que dava idéa de ter perten-
cido a Sansão e de haver sido vendida por Dalila a algum fer-
ro-velho philisteu, depois da memoranda tosquia.
Muita gente suspeitava que o sr. Zamperini não era pai,
nem parente authentico, mas um valentão contratado para com
todo o seu ardiloso arreganho diííicultar o accesso dos «dilet-
tanti» ás boas graças da cantarina.
Vê-se que a industria theatral dos «pais da actriz» vem de
longa data.
As trez «irmãs Zamperini» já não tinham mãe; mas tra-
ziam um zangaralhão que, no tocante a metter medo, valia por
mãe e pai.
Eram mulheres interessantes, e a «prima-donna» não seria
a melhor, mas tinha grandes attractivos em relação ás outras:
ser do theatro, possuir uma voz bem timbrada, e «reclamar» a
própria celebridade com acirrantes excentricidades de «toilette,»
uma das quaes era a maneira de pôr o chapéu.
O que é certo é que Anna Zamperini, Zamparina como lhe
chamava o povo aportuguezando a palavra, causou tanto abalo
1 Consta de um inventario assignado por Ambrósio Pollet, em 4 de ou-
tubro de 1775.
182 o LOBO DA MADRAGÔA
em Lisboa como o terremoto de 1755. Elle atluira os prédios ;
ella alluira os corações.
António Diniz da Cruz e Silva, que foi testemunha presen-
cial, porque ainda então não tinha partido a primeira ^'ez para
o Rio de Janeiro, consagrou a Zamperini alguns versos do seu
«Hyssope», nos quaes nSo só commemora os attractivos da es-
tonteadora «diva,» mas também a perturbação que ella exer-
cera nos costumes da época :
Se tu, ó extremada Zamperini,
Que era Lisboa os casquilhos embaraças,
Seus suaves accentos escutaras,
PassBges, e volatas ; bem que as Graças,
Lisonjeiras te cerquem, e derramem
Em teu peito, e garganta, mil encantos,
Com que as trez filhas de Achelôo vences;
Quantos novos encantos aprenderas !
O erudito Verdier, commentando esta referencia de Antó-
nio Diniz, conta, entre outros pormenores relativos á Zampe-
rini, que nos dias santos, quando ella ia á ultima missa do Lo-
reto, attrahia com a sua presença um «numeroso e luzidissimo»
concurso de admiradores.
Era o theatro a invadir a egreja.
Os templos também teem seus fados. Esta egreja italiana
do Loreto conservou sempre, associado ao culto religioso, um
certo caracter de mundanidade elegante. Ainda hoje a missa da
uma hora, que é a «ultima» do nosso tempo, tem o que quer
que seja de sala de visitas, onde as damas, apeiando-se dos
seus trens, entram pela estreita portinha da sachristia.
No corredor, e na rua, fazem alas os casquilhos da actua-
lidade.
Da «toilette» da Zamperini a excentricidade que mais deu
nas vistas, e logo se propagou por espirito de imitação admi-
rativa, foi o geito que ella dava ao chapéu, trazendo-o derru-
bado sobre a testa e inclinado para a orelha direita.
A moda do chapéu á Zamperini communicou-se não só ás
damas, mas até aos pintalegretes das ultimas décadas do sé-
culo XVIII.
A phrase ficou no calão indumentario e ainda hoje em Lis-
boa se diz — chapéu «á Zamparina» por chapéu á banda. *
* Na provincia de Traz-os-Montes, aonde não chegou a influencia da
Zamperini, diz-se chapéu ó fancaia.
o LOBO DA MADRAGÔA 183
E não foi esta a única innovação que a famosa cantatriz
trouxe ao léxicon da nossa lingua.
Também n'elle ficaram os verbos «Zamparinar» e «Enzam-
parinar,» como synonymos da fascinação amorosa exercida pela
cantora nos seus admiradores.
Zamparinar era applaudil-a ou cortejal-a ; dos que enlou-
queciam de amor por ella dizia-se que estavam «enzampari-
nados.»
O morgado da Boa-Vista foi um dos muitos fidalgos por-
tuguezes que se bandearam na extensa legião dos adoradores
de Anna Zamperini.
António Lobo enfurecia-se quando o via fazer largos dis-
pêndios de dinheiro em galantes presentes á «prima-donna.»
— E' uma aventureira que anda pelo mundo a dar saque
ás algibeiras dos incautos, dizia Lobo ao morgado.
— Deixe ser, respondia-lhe o fidalgo da Boa-Vista. Isto di-
verte-me. Eu, que sou apenas um cidadão, nâo tenho obriga-
ção de mostrar mais juizo que toda a cidade. E Vossa Mercê
bem sabe que a minha divisa é esquecer com varias mulheres
a lembrança d'aquella em que nossa mãe desdobrou a sua exis-
tência affectuosa.
António Lobo, ao ouvir estas palavras, via através da sau-
dade a imagem pura de Therezinha, e irritava-se ainda mais
contra a loucura ruinosa ou ridícula dos sujeitos enzampari-
nados.
— Esta maldita cómica ha de arruinar toda a gente! bara-
fustava elle. Não deixa viver mais ninguém.
— Nem toda a gente, replicava o morgado. Olhe, o homem
do canário douto não tem razão de queixa ; antes pelo con-
trario.
O canário douto exhibia-se na Boa-Vista, defronte do Paço
da Madeira, que era pouco mais ou menos o sitio onde hoje
está o Instituto Industrial;
O seu empresário expôl-o ao publico no segundo andar de
um prédio cujo numero não posso designar, porque o não ti-
nha. A numeração das casas em Lisboa apenas começou a
usar-se entre os annos de 1805 e 1806.
O canário, se lhe perguntavam as horas, ia procurar com
o bico, em dois semi-circulos desenhados sobre pequenos car-
tões, a hora que devia ser indicada.
E acertava.
Para dizer como as pessoas se chamavam, tomava dos car-
tões as lettrds com que se escreviam os seus nomes.
Por idêntico processo indicava o anno que se tinha no pen-
samento.
184 o LOBO DA MADRAGÔA
Até chegar a Zamperini a concorrência sahia admirada,
mas era pouco numerosa.
Depois que ella cliegou, foi moda ir pedir ao canário douto
que escrevesse o nome da cantora.
E elle assim fazia.
Com outros nomes equivocava-se ás vezes, mas o empre-
sário repetia -lh'os, e o canário emendava a mão... quer dizer,
o bico.
Com o nome da Zamperini, á força de ouvil-o repetir, já se
não equivocava nunca.
Parecia até contente da tarefa que lhe incumbiam.
E diziam então os alfacinhas lamechas :
— Até o canário gosta da Zamperini !
Tornou-se moda ir convidar o canário a ajuntar as lettras
de que se compunha aquelle appellido. *
Todos achavam muito galante esta brincadeira, e pagavam
de boa vontade doze vinténs por cabeça.
O empresário abençoava no seu intimo a aprima-donna,»
porque á sombra d'ella ia ganhando um dinheirão.
— Pois bem, tornava António Lobo ao morgado, toda a
gente endoideceu em Lisboa. Só um homem tem juizo; um
charlatão estrangeiro E' o homem do canário. Como elle se ha
de rir dos portuguezes ! Que vergonha I
Quando o poeta assistia aos espectáculos na Rua dos Con-
des, embravecia de ódio contra todo aquelle mundo de zotes
apaixonadiços, que enxameavam entre a platéa e o camarim da
tdiva.»
— Isto, por fim de contas, pensava elle, é a reproducção
em grande do que eu passei com a china: uma loucura abomi-
nável. A Zamperini alvoroçou Lisboa, como a «tancareira» aJ-
voroçou Guimarães. A china fez só uma victima ; fui eu. A ita-
liana faz centenas de victimas, porque toda Lisboa enlouqueceu
por amor d'ella. Até se envergonha a gente de ser portuguez.
Isto é ridículo ! isto é odioso ! A primeira cidade do paiz esta
convertida n'um hospital de doudos !
E audaciosamente, como se fosse um Hercules que pu-
desse fazer rosto a uma cidade inteira, esbravejava com arre-
ganho e insolência deante da turba-multa dos chechisbéos da
Zamperini.
Ora um dos chechisbéos. mais em cómica evidencia era o
padre Manuel de Macedo, e foi sobre elle, principalmente, que
António Lobo despejou o vomito verde da sua bilis iracunda.
* Tkeatro de Manuel de Figueiredo, tomo xiv, pags. 607 e 608, nota.
o LOBO DA MADRAGÔA 185
De mais a mais o padre Macedo era um homem feio, stra-
bico, amulatado, e mal vestido.
Para António Lobo tinha ainda outro defeito : era um rou-
peta.
Manuel de Macedo Pereira de Vasconcellos nascera no
Brazil, na colónia do Sacramento. Veiu para Portugal, onde se
ordenou presbytero e tomou a roupeta de S. Filippe Nery na
Congregação do Oratório. Ahi regeu com distincçao a cadeira
de humanidades. Quando Sebastião de Carvalho começou a per-
seguir alguns padres da Congregação, Macedo abandonou-a e
passou ao estado de presbytero secular. Ganhava a vida como
pregador, tendo fama de notável.
El-rei D. José dizia d'elle :
— O padre Macedo é muito feio, mas no púlpito até parece
bonito !
Versejava, e chegou a fazer parte da Arcádia, com o nome
anagrammatico de Lemano.
Quando a Zamperini chegou a Lisboa, Macedo era um ho-
mem de quarenta e quatro annos.
Estava na pujança da vida, com todos os excessos senti-
mentaes da sua raça e do clima ardente em que nascera.
Macedo, apenas recommendavel pelo seu talento litterario,
enlouqueceu a ponto de julgar que poderia aspirar ás boas gra-
ças da Zamperini em concorrência com pessoas de tanta cate-
goria e dinheiro como Ignacio Pedro Quintella, Anselmo José
da Cruz Sobral e o próprio conde de Oeiras, filho primogénito
do primeiro ministro, além de muitos fidalgos proviuííianos,
opulentos e generosos, entre os quaes se abalisava o morgado
da Boa- Vista.
O segundo conde de Oeiras, Henrique José de Carvalho e
Mello, era entào presidente do senado da camará de Lisboa,
cargo para que tinha sido nomeado em janeiro d'esse anno e
que, diga-se de passagem, desempenhou em dois triennios con-
secutivos, até 1776.
Tinha, quando a Zamperini appareceu, apenas vinte e dois
annos de idade; mas já havia seis que estava casado com D. Ma-
ria Antónia de Menezes, filha de D. José de Menezes, da casa
dos condes de Caparica, e da condessa de Rapasck.
Era uma creança, a quem tinham consorciado quasi na
infância.
Vêr a cantora e enzamparinar-se foi obra de um momento.
Ella, quando lhe apresentaram aquelle rapaz, que reunia
as altas qualidades de ser filho do primeiro ministro, conde e
presidente do senado da camará, fréchou-lhe, por sob a aba do
chapéu, um olhar coruscante de tentações aphrodisiacas.
186 o LOBO DA MADRAGÔA
Era o melhor olhar que ella tinha no seu repertório: o olhar
destinado a ensandecer de voluptuosidade as grandes persona-
gens.
E o repertório nâo falhou ; nem o desempenho.
O joven conde de Oeiras tao rendido ficou com aquelle
olhar que promettia paraísos e saques, tão encantado pela for-
mosa serêa, que também sabia cantar com os olhos quando
era preciso, que o notário Galli e os outros Íntimos da nuncia-
tura, incluindo os padres italianos, frequentadores assíduos da
casa de Anna Zamperini, resolveram, certamente de accordo
com a sua famosa «diva,» explorar a posição social e a paixo-
nêta do conde.
O theatro era pequeno, e rendia pouco. De mais a mais ti-
nha chegado a excesso o costume de pedir «borlas,» além de
haver muitos logares captivos, reservados a funccionarios pú-
blicos, incluindo os da intendência geral da policia, creada por
Sebastião de Carvalho de/, annos antes.
De modo que, aproveitando habilmente a occasiao, o notá-
rio Galli, como agente e de accordo com os demais interessa-
dos na empresa, lembrou-se de recorrer ao conde de Oeiras
para obter maiores recursos pecuniários.
Ideou a constituição de uma sociedade, com o capital de
cem mil cruzados, repartido em cem acções de quatrocentos mil
réis cada uma.
O conde, já enfeitiçado pela «prima-donna,» approvou este
plano, e prometteu auxilial-o.
Um bello dia convocou para uma reunião nos paços do con-
celho os maiores negociantes nacionaes e estrangeiros, sem lhes
declarar, porém, o motivo da reunião.
Todos elles se deram pressa em comparecer, por homena-
gem ao filho do primeiro ministro, e por medo também.
Ouviram então da bocca do conde de Oeiras qual o motivo
por que os reunira, e ficaram admirados.
Perceberam que se tratava apenas de arrancar-lhes di-
nheiro, mas nenhum d'elles ousou resistir á sangria.
O conde mandou-lhes lêr um documento que já estava pre-
parado e que, dirigido a el-rei, começava por dizer:
«Senhor! Os homens de negócios d'esta praça de Lisboa,
abaixo assignados, considerando o grande esplendor e utilidade
que resulta a todas as nações do estabelecimento dos theatros
públicos, por serem estes, quando são bem regulados, a Escola
publica onde os povos aprendem as máximas mais sãs da po-
litica, da moral, do amor da pátria, do valor, zelo, e fidelidade,
com que devem servir os seus soberanos, civilisando-see des-
terrando insensivelmente alguns restos de barbaridade, que
o LOBO DA MADRAGÔA 187
n'elles deixaram os infelizes séculos da ignorância : e reflectindo
quanto V. Magestade se empenha na instrucção dos seus vas-
salos, e em promover todos os meios de os fazer felizes ; con-
duzidos e animados pelo conde de Oeiras, Presidente do Senado
da Gamara d'esta Corte e Cidade de Lisboa, teem determinado
entre si formar uma Sociedade, que se empregue em sustentar
os mesmos theatros com aquella pureza e decoro, que os fazem
permittidos, e necessários.»
Seguiam-se os estatutos da nova «Sociedade estabelecida
para a subsistência dos Theatros Públicos da Corte.»
Os negociantes não se atreveram a dizer palavra, mas olha-
vam uns para os outros, de soslaio, embuchados como se ti-
vessem comido marmello cru.
Custava-lhes a engulir que na Rua dos Condes pudessem
aprender com a Zamperini «as máximas mais sãs da politica
e. . . da moral.»
Mas não tiveram remédio senão assignar, entalados, o re-
querimento a el-rei, e logo depois a folha dos subscriptores.
Imagine- se a cara de parvo com que cada um d'elles entrou
em casa, a contar á familia, muito em segredo, para que as pa-
redes e os criados não pudessem ouvir, o laço que lhe tinha
armado o conde de Oeiras.
Ora os estatutos da Sociedade constituíam um verdadeiro
monopólio, systema económico muito do agrado de Sebastião
de Carvalho.
Ficariam apenas abertos dois theatros, o do Bairro Alto
para declamação portugueza, e o da Rua dos Condes para ope-
ras e comedias italianas.
Todos os mais fechariam, sendo até prohibidas as repre-
sentações em casas particulares, tanto em Lisboa como nos su-
búrbios.
Isto é que talvez fosse um serviço á arte.
Os estatutos restringiam o costume das «borlas,» e decla-
ravam que a responsabilidade dos sócios não ia além das quan-
tias subscriptas, ainda que a sociedade por qualquer motivo se
extinguisse.
Claramente se conhecia ser um expediente de occasião,
para garantir a demora da companhia Zamperini em Lisboa.
Mas certamente o mais curioso trecho d 'esse interessante
diploma era aquelle em que se procurava tapar a bocca ao
mundo, que censurava vêr tanta gente boa, incluindo o conde
de Oeiras, em adoração permanente deante de «uma cómica.»
Procurava-se, pois, lavar a mancha que a legislação ro>
mana tinha deixado sobre a classe dos actores.
«E' Vossa Magestade servido declarar, dizia o diploma,
188
o LOBO DA MADRAGÔA
que a dita Arte (scenica) per si é indifferenle e que nenhuma
infâmia irroga áquellas pessoas que a praticam nos theatros
públicos emquanto aliás por outros principios a não tenham
contrahido.»
Sebastião de Carvalho gostou certamente d'esta catanada
contra o direito romano, que elle aborrecia.
De modo que a Zamperini arranjou em Portugal dinheiro,
gloria, e certidão de folha corrida quanto aos costumes da sua
classe e pessoa.
Na reunião promovida pelo conde de Oeiras foram logo no-
meados quatro administradores-inspectores do theatro da Rua
dos Condes, iogares gratuitos, sendo apenas inherente ao cargo
o privilegio de um camarote commum a todos os quatro.
Por indicação do conde a nomeação recahiu em Ignacio
Pedro Quintella, que era prove-
dor da Companhia do Gran-Pará
e Maranhão, Alberto Mayer,
Joaquim José Estolano de Faria
e Theotonio Gomes de Carva-
lho.
Os estatutos da nova «So-
ciedade» foram approvados por
el-rei a 17 de julho de 1771.
A Zamperini, não obstante
vêr assim garantida a sua per-
manência em Lisboa, parecia
insaciável de recolher dinheiro,
além de louvores e palmas.
Conheceu bem o paiz em
que estava.
Quanto a dinheiro, tinha
a esperteza de ir sugando a
algibeira dos grandes capita-
listas.
E quanto a versos, que aliás
prezava pouco, mas que eram
precisos para estimular o en-
thusiasmo dos banqueiros, che-
gavam a ser uma praga, um
diluvio.
O padre Macedo ia sempre
na vanguarda dos poetas, a
ponto de produzir escândalo uma
ode sua, em que chamava divina
Aim» Zamperini á ZampenUl,
o LOBO DA MADRAGÔA 189
Divina, para um padre, era forte.
O clero austero irritou-se.
O leitor vae lêr essa ode que tanto deu que fallar, e que se
transformou n'um pomo de discórdia entre os poetas da época.
Ode
Formosa Zamperini,
Formosa não ; formosa não te basta ;
O nome de divina
E' só que le compete : pisa, arrasta
As altivas Bellezas
Do teu triumpho ao veloz carro presas.
Um gesto, um movimento
De teus olhos gentis quem não inílamma !
Transporta o pensamento !
Que suave prazer n'alma derrama !
Com doce actividade
Rouba o socego, rouba a liberdade !
Do arco Amor nSo sacode
Setta mais penetrante ! a tua vista
E' um raio, que pôde
De rebeldes vontades na conquista,
Vencer, deixar prostrados
Os corações, ainda que obstinados.
Appareces ! no rosto
De cada um se observa diffundido
Não sei que estranho gosto !
Tu só tens os applausos conseguido
De sempre desejada ;
Retiras-te da Scena, a Scena ó nada!
Oh encanto ! oh ternura f
Oh soberana voz ! nâo ha Serea
Que verta igual doçura I
O insaciável animo recrea.
Excita novo espanto.
Não, da terra não é aquelle Canto !
Quem não fica pendente
Como absorto de tanta melodia !
Suspira impaciente,
Não sabe quando ha de raiar o dia
Que ouvir- te outra vez possa ;
Da saudade a aspereza nada adoça.
190 o LOBO DA MADRAGÔA
Ora humilde, ora altiva,
Vas no semblante affectos alternando I
Que acção tão expressiva 1
Um teu olhar severo, um olhar brando
Consterna, vivifica,
Na nivea fronte os louros te duplica I
França, não te gloreis
Das Actrizes, que cantas, celebradas ;
Para que o orgulho enfreies,
Do Adriático mar nas prateadas
Margens uma apparece,
E' Zamperini a bella ! . . . ouve-a ! . . . emmudece 1
Do caudaloso Sena
Já fez parar as ondas cristalinas.
O ecco da voz amena
Batendo as azas nas azues campinas
Tão vastas como bellas.
Tem gravado teu nome entre as Estrellas 1
E ha quem disputar queira
Do teu merecimento a proeminência !
Tu és sempre a primeira I
A frenética inveja, a competência.
São terrestres vapores
Que não mancham do Sol os resplendores !
António Lobo era um dos «terrestres vapores» a que o
padre Macedo alludia no final da òde.
Podemos desde já calcular que a allusSo não cahiria em
cesto roto.
O suppôsto pai da Zamperini morreu em Lisboa.
Os ares de Portugal, excellentes para a filha, foram-lhe
nocivos a elle.
Mas os ((dileltanti» folgaram, porque ficava sem dragão o
jardim das Hespérides, que sempre foram trez, tanto na my-
tbologia, como em casa do nunca assaz chorado papá Zam-
perini.
A administração do theatro fez um sumptuoso funeral ao
«egrégio cavalheiro italiano» e promoveu, trinta dias depois,
solemnes exéquias no Lorêto, onde elle fora sepultado.
António Lobo, que trazia entre dentes o padre Macedo,
lembrou-se de espalhar que o nuctor da famosa óde seria tam-
bém o pregador da oração fúnebre nas exéquias.
A «galga» correu com rapidez, como todas as. . . galgas.
o LOBO DA MADRAGÔA 191
Chegou ao conhecimento do patriarcha D. Francisco de
Saldanha, que logo mandou chamar á sua presença o padre
Macedo.
O prelado recebeu-o de sobrecenho descido, e severamente
lhe fulminou as seguintes prohibições: de pregar nas exéquias,
de frequentar o theatro, de fazer versos á Zamperini, orde-
nando-lhe também que substituisse por uma cabelleira o pen-
teado que o padre Macedo usava á italiana, com polvilhos,
depois que a «diva» chegara.
O padre, até ahi besuntao, trescalava agora pivetes irri-
tantes.
Ouvindo as fulminações do patriarcha, Macedo nSo perdeu
a coragem nem a eloquência.
Asseverou que nunca fizera tenção de ir pregar nas exé-
quias.
Quanto ao facto de frequentar o theatro, defendeu-se com
o exemplo dos padres da Nunciatura.
E, quanto á cabelleira, também recorreu ao mesmo' exem-
plo, allegando, ainda em reforço, que a cabelleira oífendia os
cânones, pois que até os ecclesiasticos, se d'ella precisavam
usar por virtude de alguma enfermidade, eram obrigados a
impetrar de Roma um breve, que a Nunciatura taxava num
quartinho por cada anno.
O patriarcha não quiz attender aos precedentes nem aos
cânones.
Foi inexorável quanto á cabelleira.
Mas perante as caramunhas do padre Macedo, que chorou,
supplicando, consentiu-lhe que fosse ao theatro, comtanto que se
escondesse ao fundo de um camarote ou forçura, que poderia
ser a do auditor e do secretario da Nunciatura, bem como de
outros padres italianos, amigos de Galli.
António Lobo ganhou a partida quanto á «galga» da
oração fúnebre, mas nao se contentou com essa victoria, e
continuou a perseguir implacavelmente o padre Macedo á conta
da Zamperini.
As exéquias realizaram-se, sem pregador, mas com grande
assistência das pessoas mais gradas de Lisboa, fidalgos, ban-
queiros, negociantes, vereadores, além dos padres da Nun-
ciatura, do padre Macedo e de outros ecclesiasticos igualmente
mundanos.
António Lobo postou-se no largo do Lorêto, entre a mul-
tidão, a vôr entrar toda essa immensa legião de apaixona-
dos, que á luz do sol e no coração da cidade não duvidavam
acorrentar-se como escravos ao carro triumphal da «prima-
donna».
192 o LOBO DA MADRAGÔA
Viu chegar as trez irmSs Zamperini, em duas seges; a
cantora acompanhada pelo agente Galli ; as duas irmãs acom-
panhando-se uma á outra.
Vinham em trage de rigoroso luto, como trez graças en-
carvoadas.
Os zampirinistas diziam que a grande Anna ainda parecia
mais bella assim, e que as plumas do chapéu faziam lembrar
nuvens negras que pairassem sobre dois raios de sol : os olhos
lindos e travessos.
Outros sujeitos, como a raposa da fabula, não podendo
colher os altos sorrisos da Zamperini, contentavain-se com os
dois bagos de uva que estavam mais ao alcance da mão : as
sympathicas manas da «divina» serêa.
António Lobo improvisou ali mesmo um soneto, que poucas
horas depois era espalhado por copia nos soalheiros mais con-
corridos da cidade.
Que funcção será esta no Lorêto,
Para a qual correr vejo tanta gente ?
Dobrando estão os sinos rijamente,
O morto é rico, ou grande «anunalecto».
E' da gran Zamperina o pai dilecto,
Não disse bem, da «divina», excellente,
Como ouvi já chamar-lhe indoutamente,
Em uma óde, em péssimo dialecto.
Para isso se ajuntou toda Lisboa ?. . .
Você ó tolo ? não sabe que hoje em dia
Da Zamperina o nome campa, e sôa ?
Ajuntou-se da filha a confraria :
Fidalgos, deputados, gente boa. . .
E, de provedor, Galli lhe assistia.
Este soneto, dito por António Lobo no grupo de amigos
que o rodeiava, foi ouvido por uma airosa taíula que estava ali
perto dando muito nas vistas pelo alto penteado que se cha-
mava «telonio», e que lhe entufava a cabeça petulantemente.
Acompanhava-a outra sécia, tombem sem manto, nem
.chapéu, com seu ttelonio» grimpante.
O padre Francisco Manuel, se ali estivesse, teria dito de
ambas : que açoutavam os ares com o topete. *
1 «Chamavam «telonios» aos toucados altos, que se inventaram em
Lisboa, depois do terremoto, quando as moças iam descaradamente sem
manto nem touca, açoutar os ares com o topete«. «Obras» de Filinto Eiisio,
«Sonho dedicado ao ill.»*» sr. P. M. de M.»
o LOBO DA MADRAGÔA 193
A tafula mostrou achar muita graça ao soneto, rindo com
a sua companheira, com quem manifestamente fallava a res-
peito de António Lobo.
Elle reparou n'isto, observou-a e, quando ella abalou, des-
pediu-se dos amigos para seguil-a.
— Olha, disse-Ihe um, tu zombas do Mattos, e nao és
menos lamecha que elle.
— Santo Deus! exclamou António Lobo, eu nSo gargarejo
para as janellas, nem faço versos ás «Delias» e aDirceas».
Procuro apenas, onde as encontro,
Delicias feminis, por quem me babo.
E seguiu Chiado abaixo na piugada da tafula.
13
XV
fl guerra dos poetas
A evidencia do padre Macedo, por amor da Zamperini,
veio atiçar no Pindo a sanhuda pugna que já andava accêsa
entre os poetas portuguezes.
O padre era um bom rastilho para nova explosão, e contra
elle desembestaram logo duas hostes aguerridas, que mar-
chavam ao seu encontro por motivos e caminhos diversos.
De uma das hostes era cabecilha António Lobo, que dire-
ctamente aggredia a pessoa de Macedo, atacando-o, a impulsos
de antipathia individual, pelos seus ridículos e fragilidades de
bajojo junto de Anna Zamperini.
A segunda hoste, de que foi porta-bandeira o doutor Domin-
gos Monteiro de Albuquerque e Amaral, que era entSo um rapaz
de 26 annos, transmontano por nascimento, cultor das musas
e espirito tao mordaz quanto desvanecido, atacava os poetas
da Arcádia na pessoa do padre Macedo, e feria pungentemente
a Zamperini para que o padre sahisse á estacada e desse o
flanco.
A hoste de António Lobo era uma espécie de guerrilha
popular, que fazia arruido na rua disparando sonetos, nem
sempre correctos, mas espontâneos e candentes, que logo en-
travam na memoria e no gosto da multidão.
A outra hoste era mais litteraria, metrificava o decasyllabo
com maior cuidado, e escrevia odes e satyras para serem lidas
por pessoas illustradas nos gabinetes, nas salas e nas aca-
demias.
Era uma espécie de contingente emanado do famoso
«Grupo da Ribeira das Naus,» que o padre Francisco Manuel
o LOBO DA MADRAGÔA 195
do Nascimento commandava sob o nome pastoril de «Niceno.»
Este contingente combatia por ódio litterario, pois que o
padre Macedo fora admittido como árcade, e o Grupo da Ribeira
das Naus se compunha de dissidentes da Arcádia.
Vamos seguir por algum tempo a guerrilha de António
Lobo, aquella que se propunha esfolar em vida o padre Macedo
pelo único delicto de se rojar como sabujo deante da Zamperini.
Lobo não era homem que se prestasse a vingar alheios
ódios litterarios. Não se importava para nada com a Arcádia,
nem com os árcades. Não pertencia ás academias ; era um
poeta das ruas. Fallava de conta própria, desabafando apenas
sentimentos pessoaes.
Para recolher alguns sonetos do bravo cabecilha, comece-
mos por aquelle em que, referindo-se á ode do padre, agrupa
allusões á questão da «cabelleira» e á prohibição de frequentar
o theatro.
Sôa no sacro monte um buzina,
Ajuntam-se os antigos escriptores,
Moslra-lhe ApoUo cheio de furores
A ode do Macedo á Zamperina.
Virgílio pasma, Homero não atina,
SufToca-se de maguas e rancores;
Já Sannazaro diz : «Votem, senhores,
Acudamos depressa a esta ruina !
Vários votos se dão ao delinquente;
Que seja pelas ruas apupado. . .
Porém não quer ApoUo, nem consente.
Mandam, emfim, que seja tosquiado,
Que uze de cabelleira ou de crescente,
E da ópera a desterro condetnnado.
O caso da peruca ainda foi ridicularisado por António Lobo
n'outro soneto dialogado entre o padre Macedo e o cabelleireiro
francez, de appellido Sutá, então muito em voga :
Macedo — Monsieur Sutá, eu quero uma peruca,
Cousa da sua mão, ultima moda ;
Que me cinja a cabeça toda em roda,
E que os crespos me caiam sobre a nuca.
José Pedro ^ de falso ás vezes truca,
Faz-rae esperar em casa a manhã toda ;
Depois á pressa os meus cabellos poda,
E com pós e pomada a testa estuca.
* Cabelleireiro portuguez.
196 o LOBO DA MADRAGÔA
Cabelleireiro — Monsieur TAbbéj vós tendes muita pressa ?
Macedo — Se acaso pôde ser, faça-ra'a hoje,
Fort bien, antes que o sol do carro desça.
Preste, monsieur Sutá, que o tempo foge !
Cabelleireiro — Eu vol-a faço mesmo na cabeça,
Que ó irmã das de pau que eslão na loge.
Por duas vezes retratou António Lobo o padre Macedo em
verso, flagellando-o como homem e como padre e fazendo-o
expiar o adjectivo «divina» com que elle tinha classificado, na
ode, a pessoa da «prima -donna».
Reproduzo um dos retratos, desenhado por Lobo ao correr
da sua prompta improvisação :
Quem é este peralta reverendo,
Que em verso torpemente nos atroa.
Querendo inficionar toda Lisboa,
Errada e nesciamente discorrendo ?
Quem é, torno a dizer, que pervertendo
Vai da santa moral a lição boa.
Sem que haja um vil tambor, que pise e môa
Os ossos de um tal monstro assas horrendo ?
Quem é que o puro nome de «divina»
A' Zamperina dá sem custo ou medo
De quem os idiotas mais crimina ?
Se quereis o auctor saber de tanto enredo,
E' um, de honesta côr, talvez da China,
E' o negro doutor, padre Macedo.
O morgado da Boa-Vista quiz interceder em favor do pa-
dre Macedo, mas António Lobo replicou iracundo :
— Eu tenho sido o mais agradável possivel a Vossa Se-
nhoria, pois que ainda não disse da Zamperini cousa que se
parecesse com o que tem escripto. . .
O morgado atalhou formidável de cólera :
— O dr. Monteiro Amaral?
— Esse, e outros.
— O dr. Amaral já hontem pagou bem cara a sua insolente
resposta á ode de Macedo. Fil-o comer terra no Rocio deante
de toda a gente que passava.
— Então Vossa Senhoria deu agora em vingador de canta-
rinas offendidas ! Por que o não fizeram outros, e Vossa Senho-
ria se apressou a fazel-o?
— Porque estávamos em casa da Zamperini uns poucos de
o LOBO DA MADRAGÔA 197
amigos, Anselmo Cruz, o Braamcamp, António Soares de
Mendonça, o Estolano e eu, e ali tirámos á sorte qual de nós
havia de castigar o dr. Monteiro Amaral. Por signal quen'essa
occasião bateu á porta o padre Macedo.
— E elle, perguntou irónico António Lobo, também entrou
no sorteio?
— Não. Dissemos á Zamperini que lhe não abrisse a porta,
visto que pela sua qualidade de ecclesiastico não podia tomar
parte na conjura, que pretendíamos realizar em segredo.
— Ahl ah! riu António Lobo. Essa agora é melhor! O
poeta que a «divinisou9 ter ficado fora da porta como um cão
enxotado! E' boa! é boa! Essa merece perpetua memoria.
E logo começou a improvisar em voz alta um soneto n'uma
torrente de inspiração :
Truz, truz. Quem bate ahi? Abra, senhora,
Sem medo, sem receio, e sem cautela :
E' Macedo, que estava só por vêl-a
Debaixo da janella ha mais d'um'hora.
— Mau ! exclamou iroso o morgado da Boa-Vista, cortan-
do-lhe a inspiração. Vossa Mercê está insupportavel com esse
seu constante teiró contra a Zamperini e Macedo ! Não lhe torno
a contar mais nada.
— O' morgado! Estragou-me o soneto! que já não sei se
o poderei acabar... Mas conclua lá o caso do dr. Monteiro
Amaral.
— Com uma condição. . .
— Qual?
— Que não fará soneto.
— Não faço.
— Coube-me a sorte a mim, no sorteio.
— Não haveria batota por parte dos outros?
— Talvez. Nem reparei.
— E depois?
— Depois, esperei-o no Rocio, á hora a que elle costuma
passar, deitei-lhe a mão ao gasnete, e baldeei-o no chão.
— Juntou-se gente?
— Pouca, porque a manobra foi rápida, e elle não oppoz
resistência.
— Ah ! morgado ! Vossa Senhoria pôde ainda ser incom-
modado pela intendência geral da policia, que não perde occa-
sião de alardear serviços.
— Ora adeus! Defendi uma causa em que o conde de Oei-
ras está tão interessado como eu.
198 o LOBO DA MADRAGÔA
— Mas Sebastião de Carvalho gosta de Monteiro Amaral ;
pté lhe chama «doutor em prosa e verso.»
— Sim! Sempre ha de gostar mais do próprio filho, e o
conde de Oeiras bebe os ares pela Zamperini.
N'este momento chegava João Xavier de Mattos, todo es-
baforido.
— O' homem! gritou-lhe António Lobo. Tu vens perse-
guido por algum pai tyranno, que te apanhou a fazer mesura á
donzella Olaia, sua filha.
Xavier de Mattos sentou-se, tomou fôlego, e disse :
— Não gracejes, que o caso não é para isso.
— Então cousa grave? ! Querem vêr que te mataram !
— Sabe-se que foi preso hontem ao anoutecer o Garção.
— O Garção! conclamaram, surprehendidos, António Lobo
e o morgado da Boa- Vista.
— Sim, o Garção.
— Porquê?
— Não se sabe ao certo. Mas á bocca pequena diz-se que
por causa de amores.
— Querem vêr, alvitrou Lobo, que será historia com a filha
do brigadeiro Elsden ?
— Por que é que diz isso? perguntou o morgado da Boa-
vista.
— Por que era visinha, e o Garção estava muito á janella,
umas vezes só, outras com o Ávila, um peralta que lhe fre-
quenta a casa.
— O que foi não se sabe ao certo.
— Sim, disse reflexivo António Lobo. Pôde ser... deve ser
talvez o amor. Garção já não é creança, mas é poeta, e elle
mesmo antecipou desculpas a qualquer desatino serôdio quando
compoz aquelle lindo soneto que termina :
. . . Amor, nascendo moço, se faz velho,
E um velho ter amor não é tontice.
Houve um momento de silencio, após o qual António Lobo
reatou o dialogo dizendo :
— Foi preso o Garção! Pois morreu a Arcádia.
— E' natural, apoiou Mattos.
— Vossas Mercês, disse do lado o morgado da Boa-Vista,
já ha muito andavam a dizer que ella estava podre.
— Gangrenada, sim, acrescentou Lobo. Mas agora, com
a captura do Garção, sobreveiu-lhe a morte.
E logo, mudando de tom :
— Ora adeus! A intendência geral pôde atulhar com área-
o LOBO DA MADRAGÔA 199
des O Limoeiro, poupando comtudo o padre Macedo, para nos
não tirar o divertimento. E sendo assim, cá estou eu, cá está
o «Grupo da Ribeira das Naus» para ir zurzindo o padre. Isto
é um joguinho em que cada um assenta vasa por sua conta e
risco. Eu, por mim, jogo só... com a canallia. E nao tenho
perdido.
Effectivamente, como já sabemos, António Lobo n3o per-
tencia ao «Grupo da Ribeira das Naus,» composto de dissiden-
tes da Arcádia. Da sua nau independente era elle o piloto.
Acompanhavam-n'o na manobra, é certo, alguns poetas popu-
lares, alguns obscuros moços de talento, que o tomavam por
modelo. Mas a veia fecunda de Lobo chegaria á farta para não
dar um momento de tréguas ao padre Macedo.
O leitor vai ouvir outro soneto, com que Lobo açoitou o
padre ainda á conta do adjectivo «divina:»
Macedo, é tempo de mudar de officio.
Tu, que eras pregador rijo, excellente,
A testa inclina, escuta paciente,
Que eu também de pregar tomo o exercício.
No púlpito explicaste contra o vicio
Doutrina santa em phrase irreverente;
No theatro és a fabula da gente,
Opprobrio á religião, e a nós supplicio.
Com fé quem te ha de ouvir pregar jè agora
(Oh Deus d'Abrahão, oh Nuraen sempiterno)
Se «divina» acclamaste a vil cantora ?
Só podes ir pregar ao escuro Averno,
Que essa profana voz ímpia e traidora,
Não é clarim do céu, é voz do inferno.
Este soneto apenas António Lobo o divulgou quando os
Lorènas, informados pela intendência geral do conflicto que o
seu parente tivera no Rocio com o dr. Amaral, aconselharam
ao morgado que se retirasse de Lisboa immediatamente.
Elle teve que obedecer, mas disse a António Lobo que
voltaria logo que por meio de cartas persuasivas pudesse
abrandar a indignação dos primos Lorênas.
Com o moi'gado em Lisboa não teria tido Lobo a coragem
de chamar «vil» á Zamperini.
O padre Macedo não respondeu nunca a António Lobo,
como quem não queria descer do estrado da Arcádia até ao
nivel de um poeta das ruas, que levava atraz de si a canalha
rota e enlameada.
200
o LOBO DA MADRAGÔA
Mas respondeu a outros adversários mais cotados ; ao dr.
Monteiro Anriaral, por exemplo.
E' agora occasião de passarmos revista á segunda hoste
que perseguiu o padre.
O «Grupo da Ribeira das Naus» constituira-se por emu-
lação com a Arcádia, e celebrava as suas reuniões dentro do
edifício do Arsenal da Ma-
rinha (d'onde lhe vinha o
nome) por que era ahi que
então morava Francisco Ma-
nuel do Nascimento, seu
presidente.
Faziam parte d'esse
«Grupo» Luiz Pinto de Sou-
sa Coutinho, que foi primei-
ro visconde de Balsemão,
Domingos Pires Monteiro
Bandeira, o capitão de in-
fantaria Manuel de Sousa,
o dr. Domingos Monteiro
de Albuquerque e Amarai,
o comediographo António
Xavier Ferreira de Azevedo
e o dr. Jeronymo Estoquette.
Abrir brecha na Arcá-
dia, apeando no conceito pu-
blico os seus sócios, era o
fim que o «Grupo» tinha em
vista.
Uma das suas victimas
foi Garção, que n'um soneto se refere a vários d'aque}les seus
rivaes e adversários em lettras.
Diz o soneto de Garção :
Filinto Elysio
Chefe do grupo da Ribeika das Naus
CONTRA UM RANCHO SATYRICO
Pinto fidalgo (^), embaixador da Mancha,
Tu Monteiro (2) roaz, que na baralha
Vales por espadilha da canalha
Que a fama alheia com ferretes mancha ;
(^) Luiz Pinto de Sousa Coutinho, primeiro visconde de Balsemão, em-
baixador em Londres.
(2) Domingos Pires Monteiro Bandeira.
o LOBO DA MADRAGÔA 201
Padre Niceno, (^) tu, patrão da lancha,
Carregada de drogas da antigualha,
Que o Bandeirinha {^) alvar á tôa espalha,
Potro que n'outro potro se escarrancha ;
Capitão Archimedes, (') tu zarolho,
Manuel de Sousa que pareces Mendes,
Que da recua aproveitas o restolho ;
Ulpiano venal. . . {*) tu bem me entendes. . .
Se para estas cousas tenho dedo e olho,
Em peralvilhos jubilado tendes.
Não ha aqui referencia ao dr. Domingos Monteiro de Albu-
querque e Amaral, que talvez ainda então frequentasse a Uni-
versidade de Coimbra.
Mas é certo que este poeta se filiou no «Grupo da Ribeira
das Naus,)) (^) e que foi elle que, por parte do «Grupo,» res-
pondeu á ode do padre Macedo, custando-lhe essa empresa o
ter que comer terra no Rocio pela mão do morgado da Boa
Vista. (6)
Vamos lêr a resposta que tanto offendeu a Zamperini e os
seus admiradores :
Assas tem Pluto á Espanha fulminado
Maus versos ; e más prosas
Com afumadas mãos tem jaculado.
Vão cantoras famosas,
Itálicas, Espanicas, Francezas
De Zamperini ao torpe carro presas.
Com que saudade os pés assignalados
Deixaste, recta Astrea,
Lá de Atlante nos hombros estrellados !
Com dourada cadêa
A balança a teus pés levaste presa :
Outra ficou em que a Paixão só pesa !
(1) Francisco Manuel do Nascimento.
(2) Este Bandeirinha nada tem de commum, certamente, com Domingos
Bandeira. E' outro individuo, que o diminutivo tem por fim differençar.
(^) O capitão de infantaria Manuel de Sousa.
(*) O dr. Estoquette.
(^) Dil-o Innocencio, «Dicc Bib.» tomo II, pag. 193 ; e Pinheiro^Chagas,
«Dicc. Pop» 1.° vol. pag. 175.
(^) Camillo Castello Branco «(Curso de litt. port., pag. 205)» attribue
a resposta a Domingos Monteiro. Mas o redactor do «Bamalhete, 6." vol.,
pag. 324 e seguintes, que ainda teve relações pessoaes com o dr. Amaral, diz
que elle foi o antesignano da batalha litteraria contra o padre Macedo, e o
auctor da resposta à ode. Isto está de accordo com o caracter expansivo e o
génio folgazão de Amaral, que envelheceu alegremente compondo em 21
oitavas uma arte de alliviar certas oppressões da natureza.
202 o LOBO DA MADRAGÔA
Tem Vénus impudica o pomo de ouro
A Minerva negado.
Não serve á Deusa bella de desdouro
Ter sempre Marte ao lado ;
Do estranho voto ora a rasão concebo :
Foi Juiz o adultero Mancebo.
Tu, que d'Abril nas frescas madrugadas,
Rouxinol sonoroso,
Dás a Tilan as primas alvoradas.
Se em cárcere formoso
Deliciosos ouvidos adormentas,
De corações exhaustos te sustentas.
Não arrancou Quixote desvelado
Entre aerios carinhos
A Durindana mais vãmente ousado
Contra duros Moinhos,
Que tu com o verso em que a alma derreteste
Sem ouro è Zamperini acommetteste.
O volúvel penedo abaixo e acima
Vai Sisypho rolando.
Se os que nos ferem com má prosa, e rima,
Jove assim castigando
A perpetua fadiga os condemnára,
Muita lição penosa nos forrara.
Não viramos gravar entre as Estrellas
Um tão inçaste nome,
Sem attentar que o claro lume d'ellas
A luz baça consome ;
Nem viramos em Paphos profanados
Os vasos de ouro ao Templo consagrados.
Mas a nossa vaidade empavezada
Não consente que os Numes
Salvem d'esta eslulticia descarada
D'alma os nativos lumes;
Ouzamos reprehender nossos maiores.
Vimos por presumpção a ser peiores.
A fallar verdade, se a gente compara esta réplica com as
furibundas verrinas do nosso tempo, chega a parecer que ella
é tao desenxabida e molle como um copo d'agua salobra.
Mas nao o foi para a Zamperini, nem para os seus enthu-
siastas, que logo tiraram á sorte quem havia de desaí!rontar a
«prima-donna,» certamente por causa do «torpe carro» e do
aincasto nome.»
O padre Manuel de Macedo não se contentou com a des-
aífronta da cantora pelo morgado da Boa- Vista; quiz desag-
o LOBO DA MADRAGÔA 203
gravar-se a si mesmo nSo se resignando ao papel de D. Qui-
xote, que o dr. Monteiro Amaral lhe distribuirá.
A vaidade dos poetas é uma cousa mais susceptível do
que a sensitiva.
O padre Macedo recalcitrou, mas a sua tréplica faz lembrar
uma descompostura dada por um gato-pingado em «toilette»
fúnebre.
Começa por lastimar plangentemente a mordacidade e
inveja do aGrupo da Ribeira das Naus:»
D'onde nasce que todos indulgentes
Com os seus vicios são, mas contra os outros
A mordaz lingua aguçam, nem perdoam
Os mais leves defeitos?. . . hão de a aresta
Ver nos olhos alheios ; mas da tranca
Que nos seus olhos tem, caso não fazem.
Quem 8upportal-os pode ?. . . casta infame I . . .
Da Satyra o açoute levantado
Sobre vós hoje está ! vós o argumento
Dos meus versos sereis, comvosco é a briga !
Depois, como é costume dos poetas, e dos outros, faz o
seu elogio para dar vulto ao contraste com os adversários,
deprimindo-os:
E tu I oh bom Lemano, que não temes
Da frenética inveja o voraz dente. . .
Lemano é elle próprio; é o seu anagramma na Arcádia.
E continuando a fallar de si, e comsigo, prepara o salto
aos do «Grupo da Ribeira das Naus:»
Tu que dos cães, que ladram como á lua,
Mofando sempre estás, o sacrifício,
Que te dirijo, acceita ; é a Justiça
Quem o animo me accende, mal faria
Se a teu merecimento não rendesse
Algum publico obsequio. As almas nobres
Conhecem-te, e desculpam teus defeitos,
Se porventura os tens: qual é o que nasce
Sem que tenha defeitos? de corrupto
Tronco brotamos todos, pelos ramos
O veneno se infunde Se a canalha
Vil infamar-te quer, ó sua a injuria.
Que mais desejas tu para vingar-te
Que o serem conhecidos? já na Praça
Seus podres assoalho ; suas manhas
A fazer manifestas já começo.
Mette-se agora, após a locução «vil canalha,» que não é
204 o LOBO DA MADRAGÔA
mau cumprimento para começar, na questão litteraria do tempo,
a lucta das escolas, latina e franceza.
Accusa os da Ribeira das Naus de serem velhos e ba-
fientos, caturras agarrados aos antigos moldes clássicos dos
poetas romanos e dos portuguezes quinhentistas.
Carregando n'esta nota, prosegue :
Quem por extravagante não teria
Aquelle que do hombro a solta capa
Pendente, as fofas calças enfeitando
De frescos topes, com o retorcido
Bigode feito eo ferro, e a larga espada
A' cinta posta sobre o gibão justo,
Passeiasse entre nós, desenterrando
Dos Affonsinhos as passadas modas?
Pois é este o nosso caso. Das palavras,
E dos trages a condição é a mesma.
E' ridículo quem se affasta do uso.
Rem hajas tu, meu Mattos, tu, Basilio,
Bem hajas : que com uma nobre, e séria
Locução, do Parnarso ao bi-partido
Cimo voado tendes, corromper-vos
Não vos deixastes das Mouriscas vozes
Da rançosa antigualha ! vossos versos
Com applauso serão de todos lidos ;
Do Tejo sobre as ondas prateadas
Andarão vossos versos arrancados
Da fria mão da morte 1 vós de eternos
A fama alcançareis nos campos Lusos,
A' fresca sombra dos viçosos louros.
Que a honrada fronte adornam dos Mirandas,
Dos Camões, dos Bernardes, dos Ferreiras.
Para ferir os adversários nSo duvida o padre Macedo
elogiar João Xavier de Mattos, que não passou de ser um
poeta de segunda ordem, e José Basilio da Gama, o auctor do
«Uruguay,» que depois lhe revirou o dente.
Mas o padre queria conquistar prosélytos.
Finalmente, despede-se do cGrupo da Ribeira das Naus,>
mandando cartões de visita ao «valente chefe» Francisco
Manuel do Nascimento, e a alguns outros, que nomea:
Ora 1 eu já não posso
Demorar-me com tanta baboseira !
Charlatães importunos, já vos deixo,
Monteitos, Estoquettes, Bandeirinhas,
Valente Chefe do famoso troço
Da Ribeira dae Naus, a ti primeiro,
Se ao dissabor das Satyras, quizerdes
Forrar-vos, acceitae o meu conselho,
E' santo ! «conhecei- vos, e calae-vos !»
o LOBO DA MADRAGÔA 205
Como era de prever, o dr. Monteiro Amaral nao deixou de
replicar.
Entrando na questão litteraria, cahiu no laço que o padre
Macedo lhe armou habilmente com o fim de afastar para o se-
gundo plano o escândalo Zamperini.
Dou apenas uma rápida amostra, para que o leitor nSo se
aborreça muito :
Mas voltemos agora a essa altiveza,
Com que dás leis na língua Portugueza.
Qual uso é esse, de que Horácio falia,
Que ha de manter a lingua, e governal-a?
Será o que tu fazes de «transportes»,
De «interesses,» «conducta,» e de «ressortes,»
«Fanfarrão,» «calcular,» «terso,» e diversos
Com que salpicas tua prosa, e versos?
E' o uso da Franceza rapazia,
Sem Diccionario, sem Academia 1
Esse de orações curtas, desligadas.
Que mede os teus Sermões por poílegadas ?
Ou é o de finados Escriptores,
Que escreveram nos Séculos melhores,
Lidos com discreção, e só seguidos
Nos vocábulos, que andam mal suppridos,
Nos que são filhos de eruditos tempos.
Que as guerras, a ignorância, os contratempos
Por um pouco affastaram dos ouvidos
Dos que nem são Lettrados, nem são lidos ?
Monteiro Amaral deixou-se desviar da questão Zamperini,
e estragou a satyra, que degenerou n'uma semsaboria acadé-
mica.
O padre Macedo devia esfregar as mãos de contente.
E a pugna teria terminado aqui, se não viesse intromet-
ter-se um terceiro combatente.
Foi José Basilio da Gama, poeta brazileiro que havia che-
gado a Lisboa sete annos antes ; espirito inquieto, que do con-
vívio dos jesuítas passou para o do marquez de Pombal, a quem
mereceu protecção.
José Basilio era n'esse tempo um homem de trinta annos.
A sua satyra, além da levesa graciosa da phrase, tem para
nós o interesse de compendiar a famosa guerra dos poetas a
propósito da Zamperini, que elle não perde de vista, como va-
mos verificar :
Zamperini apparece ; adeus, Talaia !
Zamperini em francez, em prosa, em verso;
Nas salas, nos Theatros, nas Tabernas
Tudo se enzamparina : os Homens digo.
Que as Mulheres maldita graça lhe acham.
206 o LOBO DA MADRAGÔA
Já de mil pretendentes rodeada
Se constitua Penélope ás avessas,
Porque a outra esperava o seu Esposo,
E esta correndo vai climas diversos
Somente para achar alguns Ulysses.
Crê achal-os aqui, que a Fama vôa
De ser Ulysses quem fundou Lisboa.
Até que algum depare, nslula, e destra
Em olhos Basilisco, em voz Serea,
Vai fiando delgado os seus favores;
Por ella soam no estucado tecto
As dobradiças da ferrada burra
D'onde o negociante tira, e conta
As retinintes peças, que encartuxa ;
Em tanto o Guarda-livros diligente
No «ha de haver» da casa escreve, e lança
Em «despezas geraes» aquelle dia :
Ferve a peta, a anecdota, a praça, a Intriga
Chove como na rua aos ÍDirectores :
Nem te livras, asthraatico Theotonio,
Das venenosas lingoas : té Pintores
Por ter de Zamperini exactas copias
Animam os pincéis, dão vida ás cores.
O Demónio de um louco enthusiasmo
Se apodera da plebe dos Orates,
Disse Orates, querendo dizer Vates,
Que imaginando cora saber profundo
Que ainda ha Saphos, e Lesbias pelo Mundo
Estrugem os ouvidos com romances,
Décimas frias, ráncidos Sonetos,
Que mal entende a Actriz Veneziana,
E em os mal entender perde bem pouco.
Agora o leitor está decerto mais interessado, porque vê a
Zamperini a dançar na corda bamba.
Mas deixe-me dizer-lhe duas palavras de rápido commen-
tario.
AdeuSj Talaia, é referencia aos cómicos desastres tauro-
machicos do aficionado dr. João Dias Talaia, que com elies ti-
nha dado que fallar e rir a toda Lisboa antes da Zamperini
chegar.
Quer o poeta dizer que a um assumpto risivel succede ou-
tro: ao Talaia, a Zamperini.
Lembrarei por agora ao leitor que este Talaia é aquelle
mesmo condiscípulo de António Lobo no Collegio das Artes em
Coimbra.
O asthmatico Theotonio é Theotonio Gomes de Carvalho,
um dos administradores-inspectores do theatro da Rua dos
Condes.
O poeta refere-se em seguida á famosa ode do padre Ma-
cedo, que foi no Pindo o pomo da discórdia.
o LOBO DA MADRAGÔA 207
Eis que de Auctor sagrado Ode á divina
Pelo vulgo se espalha — «Assas tem Pluto» ; —
Saem a empatar-lhe as vasas ao caminho;
Esquenta-se-lhe a bilis^ freme de ira,
Que os Poetas teem. ódios do Diabo.
D'aqui Macedo Satyras fulmina,
De seus Sermões pelo teor moldadas,
Em verso solto como o próprio Auctor
De exórdio, narração, invocação
Não se pôde escusar nas suas obras,
Inda que só fizesse um máu quarteto.
D'ali Monteiro, qual outro Lucilo,
Estando sobre um pé, faz n'uma noite
Perdendo seu trabalho, e seu azeite.
Trezentos pares de enfadosas rimas
Em estylo dialetico-forense.
Ambos Poetas são «in victo Domino» :
Este quando o quer ser se nos presente
Carregado da Vara de Megera :
Aquelle traz o açoute de Thesíphone,
Com que o seu corpo castigar devia,
Resfriando a licença, penitente.
Monteiro é o dr. Domingos Monteiro de Albuquerque e
Amaral.
A aliusão do poeta ao estylo dialetico-forense deve tirar to-
das as duvidas aos que suppunham que o antagonista do padre
Macedo, «na guerra dos poetas,» fora Domingos Pires Mon-
teiro Bandeira, o qual não era bacharel em direito, mas escri-
vão da Mesa da Consciência e Ordens.
Dividem-se os juizos; defensores
Occupam do Parnaso ambos os cumes ;
Basilio faz lunático o Macedo,
Mattos fal-o pastel de carne, e massa.
Nem te faltam, Monteiro, mil sequazes
Que offerecem verter era teu serviço
Té a ultima gotta do seu estro.
Toca-se ás armas, temol a travada !
Tempo já houve, em que a Discórdia fera,
Que nos pequenos corações domina,
Derramou o seu livido veneno
Nos peitos dos Bregeiros, e Rapazes :
Viram-se então da Alfama, e da Pampulha
Tremular as bandeiras, e os Exércitos
Marcharem cora furor á civil guerra,
Que os Carapos infestou da Cotovia
Vós igualmente divertis Lisboa
Cuidando acredilar-vos com discórdias.
Sois do Entrudo as Figuras ; sois do Inverno
Os Talaias, e a Fabula do Povo.
Por mais que a gente ria ás gargalhadas,
Moteje á vossa custa de maus versos,
208 o LOBO DA M/VDRAGÔA
VÓS vos credes Homeros, e Virgilios,
Por vèr que quatro estúpidos vos louvam.
E se alguém vos não grita «viva ! bravo !
«Este verso é em phrase Horaciana !»
Sem ter vergonha o applaudis vós mesmos,
As casas atroando com palmadas,
Testas felices, bem-aventuradas !
Por ultimo José Basilio descarrega o golpe de misericórdia
nos dois poetas contendores, dando-lhes de conselho que tra-
tem de outro officio :
Deixa, amigo Monteiro, de seccar-nos
Co'a antiga elocução áspera, e dura.
Voltando-se depois para o padre :
E tu, Macedo, fallo-te sincero,
Dou-te licença de queimar teus versos ;
Não nasceste Poeta, tem paciência.
Finalmente, dirigindo-se aos dois :
Deixai ambos de ser alvo das gentes,
Quichotes, cada qual por seu feitio.
O dr. Monteiro Amaral ainda resfolegou, replicando :
Macedo as suas obras defendia ;
Monteiro, que ás censuras replicava,
Qualquer discórdia evitar devia.
Quem a satyrisar te provocava ?
Tua soltura voluntária accusa
O que a defeza em outros desculpava.
E prosegue sempre com a preoccupação litteraria de apa-
nhar as sincas do adversário :
Tu suppões de Penélope formosa
Seguir tudo em contrario a Zamperina,
Mas vê que trapalhada vergonhosa.
Namorada, e viandante a Cantarina
Porque da Grega o avesso bem seguisses
Finge a tua idéa, e logo desatina.
Se a outra procurava a seu Ulysses,
Esta os Ulysses procurar não deve ;
Segue a idéa, e não finjas parvoices.
Penélope modesta se conteve
Entre os amantes ; tu fingir devias
Que a Zamperina no regaço os teve.
Seguir a antonomásia assim podias
Ora confessa aqui sinceramente
O que era esta figura não sabias.
o LOBO DA MADRAGÔA 209
Basta de versos. Para nSo enfadar mais o leitor dir-lhe-hei
apenas que José Basílio ainda contestou parodiando o final do
canto IV dos «Lusíadas,» e que o dr. Monteiro Amaral lhe re-
torquiu n'uma satyra dialogada.
Os espectáculos no theatro da Rua dos Condes decorriam
turbulentos; por isso muita gente séria os evitava.
A concorrência, alimentada apenas pelos parciaes da can-
tora, diminuía.
Era principalmente a influencia do conde de Oeiras que
obstava a que a intendência geral da policia mandasse fechar o
theatro.
A hostilidade que dividia os poetas facilitava frequentes
conflictos; e uma violência imposta pelos administradores da
sociedade ao tenor Schiattini viera exaltar o animo dos mais
pacatos adversários da veneziana.
Com a falta de concorrência decresceram as receitas do
theatro. A «prima-donna» era, á sua parte, uma insaciável es-
ponja de dinheiro. O fundo social estava quasi exhausto, e a
morte de Ignacio Pedro Quintella viera fechar um cofre subsi-
diário, que era o d'elle.
Andavam já atrazados os pagamentos, até aos artistas, in-
cluindo o tenor Schiattini, que era uma figura indispensável
na companhia da Rua dos Condes, e que declarou que nao tor-
nava a cantar se lhe nao pagassem em dia.
Perante esta difficuldade, muiio embaraçosa, os adminis-
tradores do theatro recorreram a uma violência abominável.
Metteram o tenor no hospital de S. José, dando-o por
doido, e em cada noite de espectáculo mandavam-n'o buscar
por dois quadrilheiros para que viesse cantar de graça.
O tenor era escoltado até ao camarim, e do camarim até
ao palco.
Em scena, onde os quadrilheiros lhe não podiam chegar,
vingava-se dos administradores do theatro acommodando á
musica descomposturas e diatribes contra elles.
O publico dividia-se em partidos: uns riam, outros voci-
feravam.
Uma noite, António Lobo indignou-se a tal ponto, que
trepou a um banco e começou a gritar contra aquelia mons-
truosa prepotência.
Cresceu para elle a onda dos zamperinistas, mas Lobo
mantinha-se n'uma attitude indomável, protegido por muitas
pessoas sensibilisadas pela desgraça do tenor.
Houve scenas de pugilato, e os quadrilheiros invadiram a
platéa.
António Lobo gritava de cima do banco :
14
210 o LOBO DA MADRAGÔA
— Torpíssimo escândalo este, de matar um homem á fome
e de obrigal-o a cantar! Se não teem dinheiro, fechem o theatro.
O panno desceu, o espectáculo foi suspenso, e António
Lobo e outros espectadores que tomaram partido por elle,
sahiram do theatro, sob custodia, para a intendência geral da
policia.
O conde de Oeiras e alguns zamperinistas influentes, que-
rendo evitar que o escândalo tomasse maiores proporções, con-
seguiram que as prisões nâo fossem mantidas.
Comtudo, el-rei D. José teve conhecimento do caso e achou
que o melhor meio de contemporisar com todos era admittir o
tenor Schiattini na sua capella real, retendo-o assim em Lisboa
sem as agonias da fome e pondo termo á violência sem mandar
fechar o theatro.
O escândalo Schiattini, e outros que o precederam, deram
origem, além das satyras em verso, a caricaturas, que circu-
lavam de mão em mão.
Figuravam ordinariamente os argentarios da época, in-
cluindo os administradores do theatro, a esvaziar as algibeiras
no regaço da «prima-donna.»
N'uma d'essas caricaturas também apparece o padre Ma-
cedo em altitude de declamar a famosa ode, acompanhado do
seguinte commentario :
Macedo, nâo te cances,
Pois os gostos sâo diversos ;
Zamperini estima o ouro
E nada entende de versos. '
Ora n'aquella noite em que António Lobo fez interromper
o espectáculo na Rua dos Condes, e quando elle e os outros
sabiam livres da intendência geral da policia, foram rondar a
casa da Zamperini para vér se teria havido concilio magno
depois do escândalo do theatro.
E' que elles lembravam-se do que costumava acontecer
em occasiões solemnes no Olympo dos zamperinistas. Mas era
tarde.
A cantora devia estar já recolhida. Nas janellas não havia
luz; a porta estava fechada.
Encontraram porém, a pequena distancia do prédio, um
embuçado, que aliás reconheceram pelo vulto.
* «Noites de insomnia,» n.° 5, pag. 24.
o LOBO DA MADRAGÔA 211
Depois de terem passado por elle, disse António Lobo para
os outros :
— Pobre Chevalier de Montigny! que na sua qualidade de
poeta apaixonado se contenta em contemplar o templo da
deusa !
Os outros riram.
— Eu sou mais pratico, continuou Lobo, tenho á minha
espera a Maria da Gloria. E é já tarde. Amigos, boa noite.
XVI
fl filha do picheleiro
Quem é Maria da Gloria? pergunta o leitor.
Justa curiosidade.
E' a tafula do penteado em telonio, que vimos no largo do
Lorêto n'aquelle dia em que se realizaram as exéquias pelo
pai da Zamperini.
António Lobo, aproveitando os olhares e sorrisos com que
ella o distinguira, seguiu-a, mais á outra sécia que a acom-
panhava.
Viu-as entrar na loja do confeiteiro Canavêta, e entrou
também.
Não posso jurar que levasse dinheiro na algibeira para
fazer qualquer despeza.
Mas o que sei é que entrou na loja e logo armou parola
com as duas mulheres e com o confeiteiro.
Este Canavêta era um cliente certo das mundanas de
Lisboa, a quem pagava favores com bolos, caricias com rebu-
çados, beijos com empadas.
Parece, á primeira vista, que devia fallir e acabar pobre.
Pois não aconteceu assim. Morreu por causa das mulheres,
é certo, mas ainda abastado em capitães.
Elias foram muito ingratas com elle.
Maria da Gloria e a sua amiga eram gulosas de confeituras
como todas as lisboetas. E por isso, depois de terem estado
plantadas duas boas horas no largo do Lorêto, correram, n'um
o LOBO DA MADRAGÔA 213
passinho miúdo e pulado, á loja do Canavêta, que lhes não
recusaria os costumados bolos.
E não recusou.
O que tem graça é que Maria da Gloria, pegando n'um
pires de «suspiros» de Odivellas, os offereceu a António Lobo.
A confeitaria, em casa do Canavêta, era roupa de francezes
sempre que ali entravam mulheres fáceis.
Lobo dizia facécias a respeito da Zamperini e das pomposas
exéquias do pai.
O confeiteiro ria-se e Maria da Gloria, principalmente,
parecia desengonçar-se dentro do corpôte de seda em convul-
sões de hilaridade.
Lobo segradava comsigo mesmo :
— Estou com a minha gente. Esta mulher já eu não largo.
E os «suspiros» de Odivellas são magníficos.
Quando sahiram da loja, António Lobo perguntou de re-
lance á tafula onde morava.
— Se tem muito empenho em saber, respondeu ella, venha
verificar, que eu vou para casa.
Lobo foi na pingada das duas mulheres, e viu-as entrar
n'uma escada do Salitre.
Ia a entrar também, mas obstou a isso Maria da Gloria,
dizendo-lhe :
— Eu não sou livre. Tenho a quem dar contas. Passe
muito bem, cavalheiro.
Outro homem haveria ficado de cara á banda.
António Lobo, porém, tinha sobeja experiência do mundo
e das mulheres. . . d'aquelle género.
— Bem sei! pensou elle. Queres recuar para avançar. Far-
te-hei a vontade.
E desandou caminho sem se mostrar contrariado.
N'essa mesma noite, depois de ter estado a beberricar com
Xavier de Mattos no armazém dos Bragas ao Rocio, e a fazer
as delicias dos circumstantes a propósito das exéquias, disse
que desejava recolher-se mais cedo.
Lobo morava n'esse tempo ao Castello, n'uma casa do
conde da Calheta.
A renda pagava-a ordinariamente em sonetos choramigas,
tão certo é que elle, como todos os bohemios do século XVIII,
lisonjeou os fidalgos de quem dependia.
Ahi vai um exemplo succedido com o próprio conde da
Calheta.
Endoideceu, por causa de certo namoro, o boticário d'esle
titular, e António Lobo, explorando o acontecimento, mandou
ao conde, em vez de renda do semestre, este soneto :
214 o LOBO DA MADRAGÔA
Eu apostei, senhor, a qual primeiro
(Foi aposta entre mim e o boticário)
Qual seria de nós ou preso ou vario,
Se elle por ter mulher, se eu por dinheiro.
Nem eu, nem elle achar melhor parceiro
Fôramos, indo ao espaço imaginário;
Que elle perdeu a sciencia de herbanario,
E eu a fé em que estou de ser caseiro.
Andou comnosco o tempo fementido :
Tirou-lhe a moça a elle um bello moço,
E a mim deu-rae um semestre já vencido.
Com que, meu conde, para vós appello :
Que elle está no hospital a bom partido.
Mas eu quasi entre os pobres do Castello.
Despedindo-se de Xavier de Mattos, António Lobo, em
vez de seguir para casa, atravessou o Rocio e ladeou os en-
tulhos do começado Passeio Publico em direcção ao Salitre.
Viu luz na janella de Maria da Gloria. Era dos autos. EUa
devia contar com um acto de audácia de tao destemido bohemio,
e ageitava-lhe a occasiao.
Lobo comprehendeu tudo. Puxou o cordSo da tranquêta,
e subiu a escada.
Sentiu um forte cheiro a alecrim queimado, e disse com-
sigo mesmo:
— Tão certo é que a moça me esperava, que até, para
disfarçar o mau cheiro da escada, a mandou defumar.
O leitor, se não é de Lisboa, não entende bem este por-
menor.
Nos prédios antigos da capital, e ainda em muitos do
nosso tempo, a escada nao é outra cousa mais que a conti-
nuação da rua. A porta pode qualquer pessoa, seja inquilino
ou nao, abril-a por fora. De modo que o aceio da escada está
á disposição do primeiro individuo, que para satisfação própria
o queira violar. Assim se justifica a conveniência dos defuma-
doiros. A escada é de toda a gente, e nao é de ninguém.
António Lobo bateu no segundo patamar.
Uma voz de mulher perguntou :
— Quemé?
Lobo, fazendo voz grossa, respondeu enconchando as mãos
sobre a bocca :
— Da parte do sr. intendente, abra.
— Valha-me Deus! exclamou a voz de mulher. Da parte
do sr. intendente! Eu abro já.
o LOBO DA MADRAGÔA 215
A porta abriu-se, um golpe de claridade irrompeu sobre o
patamar, e Lobo entrou fechando logo a porta sobre si.
Maria da Gloria, com um candieiro de latão levantado á
altura do rosto, desatou a rir :
— Quem elle é! Da parte do sr. intendente! Ai que graça!
Lobo, simulando muita gravidade:
— Sim, da parte do sr. intendente o Amor que faz a po-
licia dos corações; filho de Vénus e... não se sabe de quem,
nem ella mesma o sabia. Do marido é que não foi. Eu ainda
conheci o pobre Vulcano, que me contava todos os seus des-
gostos conjugaes.
Maria da Gloria, através de toda esta mixorofada mytho-
logica, um tanto escura para ella, percebeu muito bem uma
coisa : e era que se tratava de uma pessoa da sua classe, a
qual pessoa era Vénus.
Riu a ponto de ter que poisar o candieiro, cuja luz oscil-
lava na tremura da mão.
E, encostando-se a uma banca, dizia :
— Eu ouvia contar que o poeta Lobo era muito engraçado.
Mas tanto não pensei que fosse !
Assim principiou a intimidade de António Lobo de Carva-
lho com Maria da Gloria Morato.
Esta mulher teria n'esse tempo trinta e seis annos de idade.
Era alta, elegante, possuia uma plástica bem delineada, um co-
lorido sadio e uns olhos cheios de luz. Mas as feições eram
grosseiras, tinham o excessivo relevo das raças inferiores: bei-
ços grossos; nariz que resaltava n'um contorno duro.
A experiência, a sciencia precoce da vida, suppria n'ella
uma intelligencia clara.
Tudo quanto pensava havia-o aprendido, decorado, como
se se tratasse de uma lição de grammatica : essa universal
grammatica de todos os tempos, que ensina a saber viver.
Maria da Gloria era um producto vulgar da sociedade das
capitães, onde a mulher constantemente se vê rodeada de peri-
gos e tentações.
O pai foi um honrado picheleiro, que vivera trabalhando
para sustentar com decência a sua familia.
Adorava a filha e f|uereria, por seu gosto, tel-a educado
para ser uma creatura impeccavel, uma alma para o céu, uma
santa para o altar.
A mãe era uma creatura ladina, sem escrúpulos, que não
conhecia outra felicidade senão a do dinheiro.
Julgava-se sempre infeliz unicamente por ser pobre.
— Pudesse eu fazer rica a minha filha, dizia ella, e o mais
pouco importava.
216 o LOBO DA MADHAGÔA
O marido limitava-se a dizer-lhe benignamente :
— Credo, mulher! A verdadeira felicidade vem da alegria
da alma. Não vês tu que eu sou alegre?
E ella replicava-lhe desdenhosamente:
— Tu nSo és alegre, nem triste : tu és um pobre diabo !
Esta phrase nunca o picheleiro João Morato, bondoso como
era, chegou a traduzil-a na sua verdadeira significação.
Elle sempre tinha sido, effectivamente, um pobre diabo ;
pobre no sentido de nunca se ter revoltado como Lúcifer.
A' sua casa ia apenas gente que lhe inspirava confiança r
uns velhos, uns jarretas, que pareciam inoffensivos e discretos.
Entre elles havia um antigo procurador de feitos, o Penedo,
que tinha, como já tivera seu pai, provisão do chanceller-mór
para exercer o cargo, e que, além da habilitação legal, tinha a
fama, hereditária na familia, de ser um rábula habilissimo em
enredos judiciaes. Muito velhaco, usava óculos verdes, não
tanto por necessidade como por disfarce. Os óculos occultavam-
Ihe a verdadeira expressão do olhar. Era um livro sempre fe-
chado, que não deixava vér senão a encadernação. Celibatário,
tinha dinheiro herdado do pai e também já adquirido por elle.
mesmo, muitas vezes em aííronta das «Ordenações.» Toda a
gente o sabia rico e avarento, incapaz de fazer bem e de acudir
a um indigente. Era um unhas de fome. Mas para satisfazer
qualquer capricho não duvidava ir ao pé de meia, tirar de lá
alguns cruzados novos, algumas peças, até alguns dobrões.
Satisfeito o capricho, ficava-se a rir do mundo e a dizer muito
cynico :
— O dinheiro é tudo. Depois do dinheiro, não ha nada.
Foi o seu dinheiro e a conformidade de opiniões a respeito
do dinheiro que lhe conquistaram a alta consideração que a mu-
lher do picheleiro tinha por elle, a ponto de o julgar a única
pessoa respeitável que frequentava a sua casa.
Aos outros fallava ella ás vezes com tanto azedume como
costumava fallar ao marido.
Mas para o rico procurador tinha sempre boas maneiras,
subserviencias servis.
Quando Maria da Gloria andava nos quinze annos, e o de-
senho da sua esbelta plástica principiava a definir se em linhas
ondulantes e graciosas, o procurador levava-lhe presentes, fitas,
rendas, cortes de vestidos, — coisa que affligia o picheleiro.
— Vossa Mercê estraga a minha filha com mimos e louça-
nias. Isso é para as damas da corte e para as sécias, nanja para
as mulheres do povo.
A mulher contrapunha com azedume :
— Irra ! todos os homens são feitos do mesmo barro, e to-
o LOBO DA MADRAGÔA 217
das as mulheres da mesma costella do pai Adão. Tu até chegas
a ser ingrato e bruto.
— Nem tanto ! interrompia hypocritamente o procurador.
— Sim, senhor! accentuava ella. Chega a ser ingrato e
bruto com as pessoas que lhe obsequeiam a familia. Pois olhem
que nao sSo muitas.
E relanceava um olhar de lisonja ao procurador, que artei-
ramente observava, por detraz dos seus óculos verdes, estes
frequentes episódios da vida domestica do picheleiro.
A mae de Maria da Gloria deixava a filha na sala com o
procurador, e ia para a cosinha ou para o esconso dos engom-
mados dar as voltas da casa.
O pai estava na loja, trabalhando, sempre confiante na se-
riedade da mulher.
O pobre diabo, como ella lhe chamava, acabou por não es-
tranhar as louçanias da filha, que se habituara a vèr cada dia
mais garrida.
Era o costume. E não deitava malicia a liberalidade do pro-
curador Penedo, porque a attribuia unicamente a um senti-
mento honesto de amizade desinteressada.
— Deixa -o gastar, dizia-lhe a mulher. Elle não tem filhos,
e é muito rico. Podemos até ser os seus herdeiros, se o não
afugentarmos com algum disparate.
— Mas se elle tem amizade á nossa filha, que case com ella.
— Fallar-lhe n'isso, ou darmos-lh'o a entender, era o mesmo
que descobrir o jogo. Tu não tens mesmo juizo nenhum, nem
vês um palmo adeante do nariz.
A mulher do picheleiro precipitou assim a queda da filha,
empurrando- a todos os dias para um abysmo, d'onde o procu-
rador Penedo lhe acenava astuciosamente com novas garridices
e tafularias.
As mães, na sua obra de educação, são como os moços de
cego : conduzem a bom ou mau caminho.
Uma só vez na sua vida assume a mulher casada a má-
xima responsabilidade do casamento: é quando educa os filhos,
principalmente as filhas.
Se ella falha nos seus deveres de fidelidade conjugal, pôde
envenenar toda a vida do marido, despedaçar-lhe a honra e o
coração ; mas se delinquiu nos seus deveres de educação ma-
ternal, o seu delicto é ainda talvez maior, e mais repugnante,
porque pôde perturbar irremediavelmente todo o futuro da sua
geração.
Crear uma filha sem a noção da dignidade feminina, é en-
sinal-a a ser esposa e mãe impudica, que por sua vez irá per-
petuando na familia esse odioso exemplo de degradação moral.
218 o LOBO DA MADRAGÔA.
Foi a mSe de Maria da Gloria quem perverteu a filha, não
a rodeando das cautelas e cuidados que constituem uma verda-
deira muralha de terna vigilância materna em torno da inge-
nuidade de uma creança, para defendel-a.
A filha do picheleiro João Morato entrou na realidade da
vida por essa porta travessa, cheia de sombras, que só dá pas-
sagem aos que, tendo delinquido, se reconhecem criminosos.
Começou pelo fim. Conheceu a torpeza, antes de conhecer
o amor. E o amor é como todos os estofos delicados e bellos : uma
vez manchados, nSo readquirem jamais a sua primitiva pureza.
Maria da Gloria nem amou, nem se sentiu amada. Não
chegou a conhecer esse prazer espiritual e sublime, que se des-
embaraça de todos os interesses materiaes, para se librar n'um
mundo deSuz onde a castidade do sentimento é como o clarão
branco de uma alvorada cahindo sobre o coração humano para
illuminal-o.
As louçanias, a que tomou gosto, serviram-lhe como o
mostruário serve ao mercador : eram um annuncio ambulante,
um chamariz portátil.
E dentro do seu corpo elegante desfolhou-se uma alma,
que envelheceu precocemente, como flor maltratada.
O procurador Penedo morreu de repente, sem testamento.
A Providencia escreve direito por linhas tortas. A mulher
do picheleiro expiou as suas culpas n'um grande desespero,
que lhe apressou as rugas da velhice, os cabellos brancos, a
rabugem, os frenesis, os explosivos ódios peculiares a todos os
desilludidos, e que exerceu mais uma perniciosa suggestão no
espirito de Maria da Gloria.
Por sua parte, o picheleiro acabou serenamente, ignorando
os erros da filha, a quem não recusou nunca os aífectos pater-
naes, por continuar a suppol-a digna d'elles.
Esta doce illusão predispol-o para morrer tão resignada-
mente como sempre tinha vivido.
E, comtudo, a má sina de alguns infelizes persegue-os
ainda depois da morte.
O picheleiro, que sempre tinha sido um bom e um dócil,
um homem honesto, que ignorava completamente os desman-
dos da sua casa, a perda da sua filha, arrastava, ainda depois
de morto, uma como grilheta de injusta infâmia, pois que os
velhos do seu tempo diziam quando Maria da Gloria passava
na rua :
— Ali vai a «filha do picheleiro.»
Deus do céu ! a leviana justiço dos homens faz ambicionar
aos desgraçados a hora em que a vossa incorruptível justiça
comece.
o LOBO DA MADRAGÔA 219
Só OS maus a podem temer.
Mas estou certo de que o adormecer na morte, depois de
uma existência trabalhosa, deve ser uma suave consolação, al-
guma coisa parecida com o respirar de inebriantes aromas e
com a audição deliciosa de ineffaveis harmonias.
Mais ainda. Para as consciências tranquillas deve haver
na morte uma casta voluptuosidade, o que quer que seja de so-
nho divino, de esforço musical de uma harpa que vai fazer ou-
vir a sua ultima vibração, para estalar depois.
Maria da Gloria, após a morte dos pais, achou-se despe-
nhada n'uma sociedade de mulheres suspeitas, que tinham de
ser as suas amigas e companheiras.
Uma d'ellas, a mais intima, era a Ricarda, cuja biographia
se identificava tanto com a da filha do picheleiro, que pareciam
decalcadas sobre um «cliché» commum.
Quando António Lobo encontrou Maria da Gloria no largo
do Lorêto, estava ausente de Lisboa o homem a quem ella
agora pertencia.
Pertencer, deve entender-se apenas n'um sentido orçamen-
tal, financeiro ; estas mulheres nunca pertencem de outro
modo.
Foi amor o sentimento que António Lobo lhe inspirou?
Nao. Já sabemos que Maria da Gloria nao sentiu nunca o amor,
nem em si, nem á roda de si. Todos os seus actos determina-
va-os apenas o interesse. Lobo era pobre, um parasita, um bo-
hemio, que apenas trazia na algibeira, quando trazia, as espór-
tulas que os fidalgos lhe davam ou as mealhas que elle ás vezes
ganhava compondo algum folheto popular, em prosa ou verso,
que os cegos apregoavam e vendiam, sem nome de auctor.
Maria da Gloria tinha ouvido falar vagamente de um poeta
errante e alegre, de appellido Lobo, que mais se havia assigna-
lado, ultimamente, na ruidosa campanha contra a Zamperini.
Ouviu-lhe recitar o soneto «das exéquias», rir os circum-
stantes e applaudirem-n'o. Fez reparo n'elle, identificou-o com o
poeta de escandalosa fama, e lembrou-se de que tinha ali um
sócio para as noitadas de folia, um companheiro para os pra-
zeres extravagantes da vida airada.
Lançou-lhe, pois, a rede, primeiro com sorrisos e olhares,
depois com suspiros. . . de Odivellas.
Por sua parte, António Lobo, em cujo coração a imagem
de Therezinha de Villalva era ainda uma recordação absorvente,
que o impedia de amar do mesmo modo outra mulher, viu na
filha do picheleiro as facilidades de uma aventura que se encon-
tra na rua, vinda do acaso, e que se não promette o céu, tam-
bém não promette o inferno.
220 o LOBO DA MA DRAGO A
Mas a prova de que António Lobo continuava a lembrar-se
saudosamente de todos os factos relacionados com Therezinha,
está n'um soneto que por esse tempo- compoz contra a regente
do Recolhimento do Anjo, quando um portuense, que viera a
Lisboa e o conhecia, lhe dissera que ella continuava a aboca-
nhai-o com inextinguível rancor.
Esse soneto é violento contra a regente: o poeta convida- a
a vir reger as súbditas da «Estopa», designação vulgar de uma
casa de correcção que o ministro Francisco Xavier de Men-
donça, irmão do marquez de Pombal, tinha fundado na Ribeira
das Naus, para recolher ahi mulheres de costumes reprehen-
siveis.
Lobo deixou-se inflammar em labaredas de redivivo ódio
quando viu, na imaginação, Therezinha dentro da grade do Re-
colhimento do Anjo, e elle próprio, fulminado de surpreza, co-
gitando no modo de restituir aquella delicada alma de mulher
á vida honesta do seu lar e dos seus campos da aldeia de Vil-
lalva.
Maria da Gloria era agora um incidente banal na vida de
António Lobo ; nunca poderia ser uma recordação, e menos
ainda uma saudade.
Todas as preoccupações e tendências do espirito do poeta
subsistiam inalteráveis, sem que Maria da Gloria as pertur-
basse.
Elle continuava a interessar-se do mesmo modo pelos acon-
tecimentos do theatro da Rua dos Condes, a suciar com os seus
antigos companheiros de estroinice, a frequentar as casas dos
fidalgos, as lojas de bebidas e as festas publicas.
Podia Maria da Gloria acompanhal-o em excursões no-
cturnas, o que algumas vezes acontecia, mas nem por isso a
alma do poeta estava mais radiante e completa n essas occa-
siões.
Uma noite, no theatro da Rua dos Condes, conheceu Antó-
nio Lobo um rapaz de vinte annos, natural de Setúbal, aleijado
de ambos os pés, e na apparencia débil, comquanto de agradá-
vel physionomia.
Tinha o rosto largo, a testa alta e escampada, as sobran-
celhas desenhadas n'um recorte perfeito, o nariz rectilíneo, a
bocca desfranzida n'um leve sorriso cheio de bondade e espe-
rança.
Lobo soube- o poeta, e sentiu-se attraído para elle por essa
saliente disparidade que se notava entre um espirito elevado e
um corpo defeituoso, disparidade que, aliás, não tem sido rara
nos poetas de todas as épocas.
Conversaram durante longo tempo.
o LOBO DA MADRAGOA
221
O mancebo setubalense, com aquella fácil confiança que a
camaradagem litteraria inspira, disse-lhe que se chamava Tho-
maz António dos Santos e Silva, que era pobre e andava estu-
dando humanidades, na sua
terra, a expensas do padrinho,
um desembargador.
Queria ir formar-se na fa-
culdade de medicina em Coim-
bra.
Viera a Lisboa para ouvir
a Zamperini, de quem tanto se
fallava áquem e além Tejo, e
porque, sabendo a lingua ita-
liana, nao lhe seria desagradá-
vel poder conversar com artis-
tas italianos.
Fez uma confidencia, já
muito intima, a António Lobo :
amava em Setúbal uma menina,
que desejava desposar, e a
quem chamava a sua «Lésbia».
Era, segundo a moda do
tempo, o anagramma de Isabel.
Lobo, sympathisando cada
vez mais com o moço setuba-
lense, deu-lhe conselhos auctorisados na differença de idade e
na experiência do mundo.
— Ama Vossa Mercê uma menina a quem pretende despo-
sar, e quer aproximar-se da Zamperini, e dos outros que ella
traz, para conversar com elles em italiano?! Contente-se com
ouvil-os cantar, e fuja depressa. Vá esconder-se no seu ninho
de Setúbal, onde o amor ideal lhe enche de flores a vida e de
sonhos a alma. Ha quantos dias está em Lisboa?
— Ha dois.
— Fuja. Não queira descer ao inferno ao aterceiro dia».
Isto, aqui dentro do theatro, é tudo uma choldra : e lá fora
ainda é peior, por ser maior theatro ainda. A vida de Lisboa
apenas serve para os que teem muito ou para os que não teem
nada. Eu cahi de cabeça n'este «maré magnum» de iniquidades
e estou cá, porque me afundei no lodo, como todos os que são
pobres. Vossa Mercê...
— Também sou pobre; pobríssimo.
— Qual ! Vossa Mercê tem uma menina a quem ama e que
o ama, tem uma alma capaz de comprehender todas as subli-
midades do amor, e tem um bom padrinho que o estima e pro-
E.etrato|.'de Thomaz António dos Santos
e Silva, mais de vinte annos depois
222 o LOBO DA MADRAGÔA
tege. Fuja ; vá-se embora. Se ficasse mais tempo, desatava a
fazer versos á Zamperini, para divertir os outros, como acon-
tece ao toleirão do padre Macedo. Poupe-se a essa ultima de-
gradação e fuja. Encha a sua vida com a felicidade de um amor
puro, e creia que não pôde encontrar outra maior felicidade
n'este mundo.
— Como os homens são mal julgados! exclamou Santos e
Silva n'um movimento de enthusiasmo. Quem me havia de
dizer. . .
E acobardou-se de completar a phrase.
— Bem entendo. Quem lhe havia de dizer que o terrível
Lobo, lingua viperina, como essa gente me chama, poderia dar-
Ihe tao prudentes conselhos?
— Isso mesmo. . .
— A' cautela, ainda ninguém lhe fallou assim desde que
está em Lisboa, certamente.
— Ninguém.
— E' que eu sou como os mestres cirurgiões, que concer-
tam as pernas dos outros, e que algumas vezes partem as suas.
Olha p'r'o que eu digo... Attenda-me o conselho, e não me siga
o exemplo.
— Ah ! sr. Lobo ! disse Santos e Silva, Vossa Mercê deve
ter amado muito !. . .
— Muito, não. Uma só vez... já não sei quando, nem onde.
N'este comenos iam ambos sahindo para o estreito corre-
dor do theatro.
Ahi se aproximou d'elles um poetastro popular, que disse
ao Lobo :
^ — Olha lá ! Queres ouvir um soneto que eu fiz hoje ao pa-
dre* Macedo?
— Pois dize.
O outro recitou :
O' Santa Birba, ó bera aventurada
Vida, de quem não reza, nem salmea !
Quantos a levam de trabalhos cheia?
Pobres tolos que não entendem nada.
Tem Macedo peruca penteada.
Bom calção, bom sapato, boa meia ;
Ali acha jantar, acolá a ceia :
O' Santa Birba, ó vida regalada !
Não ha modo de vida mais jucundo:
Armar para viver o seu enredo,
E aonde acha tolão ahi dar fundo.
o LOBO DA MADRAGÔA 223
Do mundo, nem de Deus vives sem medo.
Era que hora e em que mez vieste ao mundo,
Em que constellação ? Dize, Macedo I ^
— Que tal te parece o soneto, ó Lobo ?
— Queres que te diga com franqueza?
— Quero.
— Ainda é peior que os meus.
O poetastro teve um sorriso amarello, para cobrir a reti-
rada, e safou-se.
Lobo voltou-se com seriedade para Santos e Silva, apertou-
Ihe nervosamente a mSo, e despediu-se, dizendo :
— Faça Vossa Mercê o que lhe eu digo. Fuja de tudo isto,
e ame a sua Lésbia. O Tejo é uma barreira de purificadora
agua; evite transpol-a.
— Vou-me embora amanhã, respondeu Santos e Silva,
muito enternecido de gratidão.
E no dia seguinte atravessou o Tejo n'uma falua.
A' hora em que elle embarcou, os cegos andantes apre-
goavam nas ruas :
— «Trágico fim de Isabel Clesse, que vai amanhã morrer
enforcada».
Santos e Silva ouviu o pregão dos cegos, e disse comsigo
mesmo :
— O Lobo tem razão; isto é um mar de lodo.
1 Copiado do manuscripto n.° 7:008 da Bibliotheca Nacional de Lisboa»
XVII
]VIézinha eriminosa
o dia seguinte, que era o ultimo do mez de março de 1772,
amanheceu claro e lindo, se bem que o sol parecesse de pouca
dura, como é próprio da inconstância atmospherica d'aquelle
mez, que o nosso povo caracterisa, dizendo:
Março, marcegão,
P'la manhã dia bonito,
A' tarde cara de cão ;
ou mudando as guardas á fechadura :
Março marcegão,
Manhã de inverno.
Tarde de verão.
Pouco depois do amanhecer, notava-se na cidade um alvo-
roço anormal, sobretudo para os lados da Cotovia.
Esperava-se de certo algum acontecimento de sensação,
que parecia impressionar principalmente as mulheres, porque
nos pateos, nas janellas e nas ruas ellas discutiam com viva-
cidade o assumpto que as preoccupava.
Ora, diga-se a verdade, alguma razão tinham para conver-
sar e discutir, porque n'aquella manhã ia a enforcar, na Praça
da Alegria, Isabel Xavier Clesse, casada com o piloto Thomaz
Luiz Goilão, da carreira da índia.
o LOBO DA MADRAGÔA 225
O leitor também nao deixará de estranhar este aconteci-
mento, comquanto então fosse vulgar vêr acabar na forca uma
delinquente.
Nao tardou muito que, n'um mesmo dia, soffressem idên-
tica pena duas mulheres, ambas pretas, depois de lhes lerem
sido cortadas as mãos.
E até ha de estranhar que a execução se realizasse na
Praça da Alegria, porque não se lembrará, á primeira vista,
de que esta Praça era então um logar quasi despovoado, uma
sequencia de hortas solitárias.
A descer do alto da Cotovia, logar a que a lenda alfacinha
associa galhofeiramente a memoria de Ulysses, as terras, des-
habitadas, prestavam-se a ser theatro de batalha dos garotos
que jogavam ali a pedrada, hasteando, impunemente, cada le-
gião, a bandeira do seu bairro e cruzando os seus duros pro-
jecteis guerreiramente.
Estas liberdades tinham sido algum tanto cohibidas depois
da creação da intendência geral da policia, mas não haviam
cessado ainda completamente ; e em todo o caso, um trecho da
satyra de José Basilio da Gama ao padre Macedo, serve para
mostrar quão desertos eram n'aquella época os sitios da Coto-
via, de alto a baixo :
Tempo jà houve, em que a Discórdia fora,
Que nos pequenos corações domina,
Derramou o seu livido veneno
Nos peitos dos Bregeiros, e Rapazes.
Viram-se então de Alfama e da Pampulha
Tremular as bandeiras, e os Exércitos
Marcharem com furor á civil guerra,
Que os campos infestou da Cotovia.
No alto ficavam as ruinas da Patriarchal queimada *, a casa
e terras do Noviciado, alguns casaes e prédios habitados por
famílias decentes, mas desde as Taipas, correndo sobre o de-
clivio da Cotovia, agrupavam-se os cardenhos de mulheres de
má nota, como também acontecia, mais ao occidente, no bairro
da Madragôa.
Por este motivo lhe chamou Tolentino a «suja Cotovia».
Depois, descendo a vertente, alastravam-se as hortas soli-
* O incendiário foi Alexandre Franco Vicente, que commetteu o delicto
n'uma das noites antecedentes á véspera do Espirito Santo, em 1769.
Frei Cláudio da Conceição, no «Gabinete Histórico», (vol. xvu, pag. 95),
diz que elle puzera fogo «á Real Egreja Parochial, quando existia no sitio da
Cotovia».
15
226 o LOBO DA MADRAGÔA
tarias, que se estendiam antigamente por todo esse «valle ver-
de», que é hoje a Avenida. A egreja de S. José fora no sé-
culo XVI conhecida por «S. José d'entre as hortas» e a rua do
Príncipe chamou-se primeiro rua Nova das Hortas. Tudo cam-
po, por aU fora : hortas e quintas.
A forca principiou a funccionar, depois do terremoto, na
falda da Cotovia e, ao occidente, em Buenos Aires, por serem
logares affastados e ermos.
Agora, em 1772, já as antigas hortas tinham começado a
ser retalhadas pelos fundamentos do Passeio Publico, cujas
obras começaram em 1764* e duraram muitos annos; mas
ainda todo aquelle rincão era sitio quasi despovoado, meio so-
lidão, meio subúrbio.
Os entulhos das obras do Passeio, e das ruinas do terre-
moto, que ali eram despejados, tornavam escabroso o terreno
do que fora o antigo Valverde, dificultando o transito.
Dado este esclarecimento, que justifica a escolha do logar
para uma execução, resta dizer ao leitor o nome da criminosa
e qual a natureza do seu crime.
Isabel Xavier Clesse era accusada de haver attentado con-
tra a vida do marido por modo tão extraordinário, que deno-
tava uma Índole e phantasia perversas.
Sobre os precedentes da criminosa e a historia do crime
poderá o leitor informar-se devidamente se, reportando-se
áquella manhã de março, quizer ouvir os commentarios de al-
gumas senhoras visinhas.
Maria da Gloria Morato logo pela manhã veiu para a ja-
nella, ainda em chambre caseiro, e sem telonio na cabeça, dis-
posta a ouvir a fallácia da visinhança, e a tomar parte n'ella.
No Salitre, talvez pela visinhança das hortas e por ser lo-
cal mal povoado ainda, havia alguns páteos e soalheiros habi-
tados por gente pobre, com quem a filha do picheleiro costu-
mava repartir os sobejos da sua cosinha.
E' curioso o facto, mas verdadeiro, das mulheres honestas
do povo confraternisarem, por necessidade, com as mulheres
de maus costumes, que, soccorrendo-as, gostam de ser respei-
tadas por ellas.
Isto poderá explicar-se, talvez, pela sede de consideração
e respeito que punge o espirito de quem perdeu o direito ás ho-
menagens da opinião publica.
^ «Foi também n'e8le enno (1764) que se estabeleceu um Passeio publico
sobre umas hortas da cera, aonde se deitavam os entulhos das ruinas da ci-
dade. «Gabinete Histórico», vol. xvi, pag. 133.»
o LOBO DA MADRAGÔA 227
Maria da Gloria gostava de ouvir dizer ás mulheres pobres
da visinhança, quando entrava ou sahia de casa:
— Adeus, menina.
«Menina» era um doce tratamento que só tinha ouvido
em casa de seu pae, e que para ella ficara perdido, como agu-
lha em palheiro, entre os montões de fitas e rendas com que a
havia seduzido o procurador Penedo.
Fácil foi, portanto, a Maria da Gloria intrometter-se no
fallatorio das visinhas sobre o grande assumpto do dia : a exe-
cução de Isabel Clesse.
— Nao fosse ella tola — dizia a mulher de um calafate da
Ribeira das Naus — que estava bem tratada na sua casa, e o
marido era um mSos rotas para ella.
— O que a perdeu, acrescentou outra mulher, foi o palmi-
nho da cara e a casquilhice.
— Não que a casquilhice, ponderava uma terceira interlo-
cutora, tem deitado a perder muita mulher.
— Isso é verdade, visinhas, disse da sua janella Maria da
Gloria. Quantas raparigas viviam honestas em casa de seus
pais, até que se deixaram perder pelo engodo das louçaniasl
Fallava de si mesma, dizendo isto.
— Pois está bem de vêr que sim; é uma perdição.
— Mas o marido também teve culpa: não lhe desse tanto.
— Que ella, diga-se a verdade, aguentou-se muito tempo
sem deixar escorregar o pé. Mas por fim. . .
— Por fim era já um escândalo n'aquella calçada da Es-
trella. O tal peralvilho porta-bandeira não lhe deixava a rua,
ora para cima, ora para baixo, elle todo sorrisos, elle todo olha-
res. O diabo que o carregue !
— E o marido não via nada?
— O marido andava no mar.
— E quando veiu?
— Coitado I E' o costume. Depositava confiança na mulher,
e os visinhos tinham medo de lhe dizer alguma coisa. O marido
parece mesmo um banazola ! A menina conhece-o?
A «menina» era Maria da Gloria, que respondeu :
— Não conheço. Agora o Januário Rebello, porta-bandeira
do regimento do conde do Prado, é que eu vi algumas vezes.
— Pois é preciso que o marido seja um grande tanso para
ter acreditado que padecia de uma doença de que se não quei-
xava.
— A doença era. . . um quê, menina?
— Não sei ao certo; uma doença das entranhas.
— Um polvo... não é?
Riram-se todas as mulheres :
228 o LOBO DA MADRAGÔA
— Um polvo nas tripas! Sô se o comeu inteiro I Ah!
ah I ah !
— Agora! agora! apostrophou Maria da Gloria. Um volvo
é que é.
— Isso.
— Tal e qual !
— Um volvo.
— Mas acreditar tamanha asneira !
— Nao, que a mulher tinha preparado bem a roupa da
cama ; elle viu e acreditou.
Nova risada das mulheres.
— Credo ! que porcaria ! exclamou Maria da Gloria, que es-
tava habituada a perfumar as suas roupas com a melhor «Agua
de Colónia» então conhecida, a de Paulo Fenismi, italiano de
nação.
— Tem razão, menina !
— E vai o tanso do marido e soffre que ella lhe dê a me-
zinha de agua forte !
— Não que elle não sabia que era agua-forte.
— Como ella pôde conseguir que lh'a vendessem na botica,,
é que eu não sei !
— Foi em duas boticas differentes, pequenas porções em
cada. O criado que as foi comprar disse que era para curar os
callos.
— E tinha criado! Vivia toda liró !
— Pois não vos lembrais, gentes 1 Os folhetos dos cegos
contaram tudo o anno passado, quando foi o crime.
— Sim... sim. Tenho agora idéa.
— E também ella mandou comprar uma untura venenosa,
com que esfregou a pelle do marido.
— Ainda por cima! Atirou-lhe toda â metralha!
— Como elle escapou é que parece milagre!
— E' um brutamontes muito rijo dos cascos.
— A Providencia não dorme... Vejam lá como tudo se
descobriu !
— isso sim! Se ella não tivesse fugido e levado comsigo
todo o oiro e toda a prata, talvez o marido não tivesse descon-
fiado de nada.
— Era capaz d'Jsso, o grande pataul
— Segue-se que a Isabelinha cahiu nas mãos da justiça.
Ninguém as faça que as não pague.
— Querer tirar a vida ao nosso semelhante é um peccado
que brada aos céus !
— Mas os ruins fígados não poupam ninguém. Olhem esse
atrevido saloio que o anno passado atirou com duas pedras ao
o LOBO DA MADRAGÔA 229
sr. marquez de Pombal na hora do meio dial Se lhe acerta com
alguma, matava-o !
— Isso era um doido! Fazer mal a um senhor d'aquelles,
que tem feito tanto bem á cidade e aos pobres ! Desde que elle
governa a nação, não tem faltado trabalho aos nossos homens.
— Quem governa a nação é el-rei, disse uma serigaita, do
lado.
— Pois é. . . meu brinco. Mas el-rei dá-lhe todos os pode-
res, e faz muito bem. Se os fidalgos se queixam, nós é que não.
Pois não é assim?
— Está bem de vêr que é.
Como a conversação ia afrouxando, Maria da Gloria des-
pediu-se das visinhas :
— São horas. Vou-me pentear para ir vôr a execução.
— Ah ! a menina vai? Também nós,
— Eu não, que não tenho animo, observou a serigaita per-
lequitete.
— Pois olha que se ha de fazer sem ti ; sem a Isabel Clesse
é que não.
— Queres vêr que é uma carta de convite para não falta-
res ! disse ironicamente uma das mulheres á pequenota espe-
vitada.
E indicava um rapaz, que parecia mariola da Ribeira, o
qual trazia uma carta na mão.
— Sabem dizer-me, perguntou elle, onde mora aqui Maria
da Gloria Morato?
— E' acolá, responderam duas ou trez vozes.
O portador entrou na escada de Maria da Gloria, e pouco
se demorou.
Mas, emquanto isto acontecia, dizia entre si um grupo de
mulheres :
— E' carta que vem (dá de cima».
— Parece. O rapaz que a trouxe tem ar de ser ganhão da
Ribeira.
— E' que chegou algum hiate da carreira.
António Lobo tinha acordado de mau humor por causa do
fallatorio das mulheres e, deitando os olhos para o sobrescri-
pto, disse a Maria da Gloria que desejava vêr aquella carta.
Ella respondeu-lhe frenética :
— Lobo ! Lobo ! Não me faças uma scena de ciúme. Tu bem
sabes a minha vida.
— E' que eu já vi algures essa lettra.
Maria da Gloria, tomando animo, replicou :
— Isso é que não pôde ser. Aííianço-te que não.
— Hum. . .
230 o LOBO DA MADRAGÔA
— Peço-te que nao tenhas ciúmes, Lobo.
— Eu o que tenho é curiosidade.
— Já vejo que me nao tens amor nenhum!
— Agora és tu que queres fazer scena. Deixa-te d'isso, que
perdes o tempo. Sabes o que eu te peço?. . .
— Queé?
— Que nunca penses em dar-me uma mezinha de agua-
forte.
— Credo f
— Porque eu não consentia, podes crer.
E, ironicamente, principiou a cantarolar, emquanto Maria
da Gloria lia a carta :
Quem tem pinheiros tem pinhas,
Quem tem pinhas tem pinhões;
Quem tem amores tem zelos,
Quem tem zelos tem paixões.
E, lembrando- se de que tinha ouvido esta quadra a There-
zinha na Palmeira, íicou mais azedo e aborrecido.
Tratou de se apressar para sahir.
Tendo lido a carta, Maria da Gloria perguntou-lhe algum
tanto preoccupada :
— Já vaes sair, sem almoçar?
— NSo preciso. Almoço no Talaveira, que estou hoje endi-
nheirado. Fiz versos para os cegos. Os homens tiram sempre
algum proveito da infidelidade das mulheres.
E, morto por se vêr na rua, desceu cantando :
Quem tem pinheiros tem pinhas,
Quem tem pinhas tem pinhões.
Maria da Gloria ainda veiu ao patamar para dizer :
— Eu sempre vou vêr a execução.
E Lobo respondeu da porta da rua :
— Que te faça bom proveito.
Horas depois todo o sitio da Cotovia estava em festa, como
se se tratasse de algum acontecimento alegre.
Em roda da forca, e por detraz do circulo dos soldados e
quadrilheiros, agglomerava-se uma grande multidão, ávida de
sensações empolgantes.
As mulheres constituíam a maioria dos espectadores.
Uma confusa resonancia parecia zumbir no ar como um
trovão secco e longínquo da primavera.
Era o conjuncto formidável dos pregões, dos gritos, das
pragas, das apostrophes.
o LOBO DA MADRAGOA
281
Ouvi&m-se guinchos de raparigas, que se sentiam belisca-
das na polpa do braço ; choros de creanças entaladas no aper-
A execução de Isabel Clesso
tao ; lastimas de mulheres que davam pela falta de algum ob-
jecto de ouro, porque os gatunos costumavam exercitar a sua
arte de rapinancia durante as execuções.
Resoavam os pregões das pretas marisqueiras, dos vende-
dores de agua-ardente e de agua fresca, de ameixas seccas, de
cambos de pinhões, de cúscus, de amêndoas doces e outras gu-
loseimas populares; mas sobrelevava a todos os clamores a
232 o LOBO DA MADRAGÔA.
gritaria dos cegos andantes, que circulavam por entre a muiti-
dSo apregoando muitos folhetos allusivos ao crime e execugao
de Isabel Clesse.
Em geral os poetas anonymos, que cultivavam a litteratura
das ruas, exploravam o sentimento publico falando ao coração
do povo; por isso Isabel Clesse foi por elles pranteada a ponto
de parecer que se tratava do injusto holocausto de uma victima
innocente.
Um dos vates que tinham por lucrativa tuba a voz dos ce-
gos, lastimou que a radiante formosura de Isabel Clesse fosse
estrangular-se no laço de cânhamo sobre o estrado da forca :
O' mísera Isabel ! Quem te dissera
Que na flor dos teus annos haveria,
Quem tirasse da verde primavera
A graça que alegrava o mesmo dia !
Quem pensara que a luz que reverbera,
Tão breve, tão sem tempo acabaria 1
Que as flores tu verias fenecidas,
E as estrellas do rosto escurecidas !
Esses louros cabellos que de raios
Poderiam servir ao sol brilhante
Descompostos os vejo com ensaios
De servirem de crepe ao teu semblante !
Essa côr purpurina com desmaios
Bem mostra que a belleza é inconstante.
Pois aqui de manhã com lumes arde,
Em cinzas se resolve pela tarde.
Outro poeta faz insipidamente um jogo de palavras com a
profissão do marido e o appellido do amante :
Se buscavas a terra desejada,
Para que com fatal temeridade
Desprezas do «Piloto» a sociedade,
Para dares á costa destroçada ?
Arvoraste «Bandeira» sem cautela,
Soccorros esperando ; mas foi erro
Pois sem leme te vês, desfeita a vela.
Este poeta impa de moralidade : segundo elle, no que Isa-
bel Clesse fez mal, foi em arvorar Bandeira «sem cautela».
Nenhuma lyra tem pena do marido.
Pelo contrario, um poeta, não contente com a mezinha cor-
rosiva, ainda por cima o affronta imaginando Isabel a despe-
dir-se de Thomaz Goilão enternecida :
Adeus, «querido esposo !» adeus, consorte,
Vou a cumprir meu fado e teu desejo.
Vou coberta de horror, cheia de pejo ;
Caminho com o algoz já para a morte.
o LOBO DA MADRAGÔA 233
Outro poeta nao só affronta o marido ; vae mais longe ou
mais alto, affronta também Deus :
Já soluça^ suspira, geme e chora ;
Mas emquanto o verdugo o laço tece
Para o esposo perdão ao céu implora.
Eis seus olhos se fecham . . . emmudece ;
Sua alma sobe a vêr o Deus que adora,
Seu corpo a sepullar-se á terra desce.
Por um triz que os poetas, para o effeito de soffrer a pena
ultima, não substituíam Isabel Clesse pelo marido.
E o caso é que conseguiram impressionar o coração das
mulheres, ainda as que horas antes se mostravam julgadoras
severas : lendo ou ouvindo lêr os versos, todas ellas choravam
como cascatas, no que, segundo a versão de outro vate, imita-
vam n'essa hora Vénus e Cupido :
Chora Vénus, lamenta-se Cupido
De assim vêr ultrajada a formosura
Com tão fúnebre horror, fim desluzido.
Só António Lobo é que, na maior parte dos sonetos que
então produziu, foi menos sentimental.
O seu génio folgazão não se compadecia com taes piegui-
ces lyricas, e o caso é que logrou arrancar alguns sorrisos ás
lúgubres visagens das mulheres sensibilisadas.
N'um dos sonetos, escriptos na linguagem solta que era o
seu bordão habitual, diz elle, referindo-se a Isabel Clesse e á
mezinha:
Se a mulher por seu gosto fosse frade,
E de S. João de Deus parca enfermeira,
Com esta vocação de cristeleira,
Mataria os irmãos por caridade !
— Isto com certeza é do Lobo, dizia um dos espectadores
mais entendido em conhecer poetas pelo estylo.
— D'elle ou do Tolentino, replicava outro, que também se
prezava de familiar com os poetas em voga.
— Sim; eu creio que será do Lobo. Mas de um d'elles ha
de ser por força.
Nicolau Tolentino de Almeida regia a esse tempo uma ca-
deira de rhetorica, profissão que elle deixou assignalada, com
grandes lamurias, nos seus escriptos.
Nascido em Lisboa, fora a Coimbra para seguir o curso
de leis.
234 o LOBO DA MADRAGÔA
Elle mesmo perpetuou a memoria da sua chegada a Coim-
bra e dos sete annos que por lá esbanjou alegremente :
Mas já vejo a branca fonte
Da alta Coimbra, fundada
Nos hombros de erguido monte ;
Já sobre a areia dourada
Vejo ao longe a antiga Ponte.
E, depois de descrever as «troças» que soífreu como no-
vato, conta-nos as torturas que também passou, decerto maio-
res ainda, pela falta de recursos pecuniários :
Sete annos de verde idade,
Fui mettendo a destra mão
Em multas d'esta entidade :
Chamou-se boa feição,
Mas era necessidade.
Achava- me sempre o dia
No tecto os olhos pregados ;
A sagaz Economia,
Revoando nos telhados,
Ao conselho presidia.
Gemer em segredo pude ;
Que o bom Pai, falto de meios,
Quanto cheio de virtude,
Só mandava nos correios
Novas da sua saúde.
Ahi por 1765 voltou definitivamente a Lisboa, sem haver
tomado outro «grau» além d'aquelle que, parece, os «veteranos»
lhe deram em Coimbra por mais de uma vez.
Tendo a bossa de pretendente adulador, solicitou, como elle
sabia fazel-o, uma cadeira de rhetorica, e o caso é que a ob-
teve.
Tao certo é o provérbio : «Quem porfia mata caça».
Mas, admittido ao magistério, tanto deplorava a sorte de
aturar rapazes e de viver jungido á férula de pedagogo, que não
havia fidalgo illustre e poderoso em cujas mãos não deposi-
tasse memoriaes para obter melhor coUocação em alguma Se-
cretaria d'Estado.
N'esta pedinchiche metrificada andava Nicolau Tolentino,
aos trinta e dois annos de idade, na época em que Isabel Clesse
foi executada na Praça da Alegria.
Os outros poetas não gostavam d'elle, porque os excedia
na graça, na correcção, na espontaneidade e até nas lastimas e
lisonjas que espalhava pelos salões das casas nobres.
o LOBO DA MADRAGÔA 235
Achavam que Tolentino rebaixava a dignidade das musas,
aviltando a classe, e ao mesmo passo se arrogava presumpções
de melhor convivência.
Mas no fundo d'estas frequentes accusações havia rivali-
dade litteraria.
Os outros julgavam- se moralmente superiores a elle, por
que pedinchavam menos, e porque não guindavam tão alto as
suas ambições. Intellectualmente, nao o poupavam, porque a
consciência lhes dizia que lhe eram subalternos.
António Lobo teve para com Tolentino a mesma incons-
tância de humor que para outros poetas, incluindo, como sabe-
mos, o seu amigo João Xavier de Mattos.
Algumas vezes tratou mal Tolentino, como quando lhe
disse n'um soneto :
Se velhas phrases de vidrilhos tocas,
Não honras os heroes, que tu desfructas ;
A quem offereces, por canções argutas,
De pobres riraas chochas massarocas.
Depois, parece que as relações entre Lobo e Tolentino me-
lhoraram algum tanto, talvez por intervenção de Mattos.
Temos d'isso uma prova.
Mattos dissera n'uma das suas canções :
A saúde me falta, e não me altero ;
Soffro a murmuração, soffro a violência,
Somente o gosto de morrer espero,
Abraçado co'a minha paciência.
Lobo, sempre galhofeiro e mordaz, prolongou a triste phan-
tasia de Mattos, suppondo-o já morto e embrulhado n*uma «es-
teira de tábua», sem caldeira e sem cruz.
Apollo, ouvindo o pranto dos brejeiros, que lastimam a
perda do consócio, pergunta quem é o misero defunto.
Quem será (diz Apollo) ? Oh dur'i ausência I
— E' João Xavier que morreu hoje,
«Abraçado co'a sua paciência».
Tolentino, fallando da miséria em que morreu Camões, re-
fere-se á canção de Mattos e ao soneto de Lobo, dizendo :
Só as musas o choraram
E o enterro devia ser
Como hoje nos pinta o Lobo
O de João Xavier.
236 o LOBO DA MADRAGÔA
Esta referencia a António Lobo denota amigável trato, se é
que não foi uma indulgente superioridade de Tolentino.
Mas a execução de Isabel Cresse deve ter terminado.
A multidão, que assistiu a esse fúnebre espectáculo, es-
praia-se agora frivolamente pelas hortas e pelas quintas mais
próximas, taes como a do Cordoeiro, a de Lazaro Verde e as
Terras do Guarda-Mór.
O lisboeta aproveita assim o epilogo de um crime celebre
para gosar um dia alegre.
Ranchos de patuscos, sentados sobre a relva, estendem a
toalha no chão e preparam-se para comer a merenda, que man-
daram vir de casa ou da taberna.
Ha uma promiscuidade suspeita de homens e mulheres,
por entre as arvores, nos recantos sombrios das quintas.
Os cegos andantes offerecem ainda os folhetos que lasti-
mam a morte de Isabel Glesse, mas quem se lembra já d'ella?
Trata-se apenas de comer e foliar.
Ninguém compra agora os folhetos, e os cegos o mais que
podem conseguir é que lhes dêem os sobejos das merendas por
esmola.
O Thomaz dos Pós, um pobre donato muito popular, de
habito franciscano e barbas compridas, vai arrastando por en-
tre as quintas e as hortas a sua monomania de missionário.
— Irmãos, gritava elle deante de cada grupo, lembrai-vos
de que haveis de ser pó como aquella que ha pouco vistes es-
trebuxar na forca. Porque tudo é pó, somente pó, nada mais
que pó.
E os patuscos enxotavam-n'o berrando :
— Vai-te d'aqui, Thomaz, com a pregação dos teus pós.
Deixa-nos em paz, donato maluco.
Os grupos repelliam assim o pobre maniaco, e a justiça
ainda foi depois mais severa com elle, porque o mandou para
as galés pelo crime de pregar.
A isto allude Tolentino quando diz:
Thomaz dos Pós fez missões ;
Ajuntou gente infinita :
Mas inda em negros vergões
Traz nos artelhos escripta
A paga dos seus sermões.
Vê-se que a psychiatria estava muito atrazada no sé-
culo XVIII.
De Maria da Gloria sei que assistiu á execução, parecendo
mais preoccupada com algum pensamento que lhe dava cuidado,
do que com a forca, Isabel Clesse e a multidão.
o LOBO DA MADRAGÔA 237
Nao a vejo em nenhum dos grupos que merendam alegre-
mente.
Suspeito que, sempre preoccupada, correu para casa e que
logo que entrou começou a querer escrever um bilhete. Rasgou
nervosamente uma folha de papel; depois inulilisou outra;
ainda despedaçou uma terceira, até que pareceu encontrar uma
formula que procurava. E então escreveu mais tranquilla o bi-
lhete. Veiu depois para a janella, á espera de alguma das visi-
nhas que chegasse primeiro.
Mal chegou uma, chamou-a á escada, e disse-lhe :
— Eu queria que me fizesse o favor de ir procurar o sr. Lobo
e de lhe entregar este bilhete.
— Sim, menina.
— Sabe onde pôde encontral-o? Ali pelo Rocio; ha de an-
dar por ali. Mas não deixe de lhe entregar isto.
— Sim, menina. Eu sei pouco mais ou menos onde elle
costuma parar. Ai meu Deus ! que pena me fez a pobre Isabel 1
— Também a mim. Mas veja se o encontra.
— Vou já, n'um pulo. A pobre rapariga, tao bonita, que até
lhe ficava bem a alva I
— E' verdade. Ha de encontral-o ali pelo Rocio.
— Sim, menina, vou n'um pé e venho no outro.
Agora, os poucos que ainda pensavam em Isabel Clesse, já
tinham pena d'ella, como os poetas; incluindo as próprias mu-
lheres dos páteos do Salitre, que antes da execução a julgavam
com severidade.
António Lobo recebeu no Rocio o bilhete, leu-o e sorriu-se.
— Tem resposta? perguntou a portadora.
— Não, respondeu Lobo. Diga lá que já o esperava.
Um bohemio com quem Lobo estava n'essa occasiâo, per-
guntou-lhe :
— E' uma conquista, seu maroto?
— Não, disse elle tranquillamente. E' uma desconquista.
O bilhete que Lobo recebeu e guardou na algibeira, dizia:
«Lobo, conheci hoje que me não tinhas amor nenhum. Não
posso, nem devo continuar a amar um ingrato. Tudo está aca-
bado entre nós. Não voltes mais aqui, e adeus.»
António Lobo já, como dissera, esperava este bilhete, desde
que Maria da Gloria recebeu pela manhã a carta e ficou per-
turbada.
Elle conhecia bem a táctica de todas as mulheres d'aquella
espécie.
Uma só coisa parecia inspirar-lhe algum interesse :
— Mas que diabo! eu ia jurar que conheço a lettra do so-
brescripto.
238 o LOBO DA MADRAGÔA
E, por mais que quizesse lembrar-se, não atinava quem
fosse.
Um amigo disse- lhe á noite:
— Vi hoje na Praça da Alegria a Maria da Gloria.
— Ah! viste? respondeu Lobo. Ella também foi a enforcar?
— Só se tu foste o algoz.
— Nao. Ella é que me estrangulou esta manhã.
— Como V
— Despedindo-me.
— Depois de alguma scena?
— Não. Antes da scena, logo que o tyranno da peça appa-
receu nos bastidores.
— Mas quem é o tyranno?
— Não sei, nem me dá isso grande cuidado, apesar de me
parecer que lhe conheço a lettra.
— Eu não sei quem seja.
— Sabe ella, e é o que basta.
— Estás contrariado?
— Eu! até foi bom. Depois de amanhã é o sarau nas Pi-
coas e eu preciso todo o tempo até lá para dar crena aos sapa-
tos e arranjar umas fivellas maltezas. Tens tu algumas?
— Não.
— Nem eu. Onde diabo as hei de ir arranjar? Bem vês que
não tenho tempo para pensar em mais nada.
XVIII
o sarau das Pieôas
Decerto que o leitor conhece um interessante opúsculo do
marquez de Rezende, intitulado '«Pintura de um outeiro no-
cturno e um sarau musical ás portas de Lisboa no fim do sé-
culo passado».
Este opúsculo é um feixe de «recordações e imagens», pit-
torescamente agrupadas, sem embargo de algumas inexacti-
dões flagrantes.
O auctor remonta-o aos primeiros annos do reinado de
D. Maria I, que foi acclamada em 1777, e comtudo faz concor-
rer ao sarau a prima-donna Zamperini, que já então não es-
tava em Portugal.
Mas, apesar do anachronismo, este facto mostra quão viva
era ainda, alguns annos depois, a ruidosa tradição que a Zam-
perini deixou em Lisboa, tradição que o marquez de Rezende
recebeu e aproveitou, preferindo sacrificar a chronologia a ter
de renunciar á presença da prima-donna n'uma festa que elle
suppõe realisada em 1777.
Ora o que é certo é que, no solar das Picoas, a familia
Freire de Andrade, hoje Camarido, recebia semanalmente, desde
muitos annos, toda a nobreza, todos os escriptores e todos os
artistas, nacionaes ou estrangeiros, que brilhavam em Lisboa
n'aquella época.
Era um «salão litterario», como sempre tem havido algum
em Lisboa, a partir do reinado de D. Manuel, especialmente da
240 o LOBO DA MADRAGÔA
pequena corte de sua filha a infanta D. Maria, até ao salSo
Kruz, da rua Formosa, em nossos dias.
Os estrangeiros que chegavam a Lisboa com recommenda-
ção ou aqui se faziam recommendar por algum titulo, facil-
mente podiam frequentar salões distinctos, entre elles o dos
Freires de Andrade nas Picoas.
O famoso aventureiro José Bálsamo, quando esteve em Lis-
boa, foi apresentado na grande roda, graças á belleza, que nao
á virtude, de sua mulher Lourença Fedisiani.
Anna Zamperini também se fez ouvir nos saraus das Pi-
coas, porque muitas mãos, em cujos dedos brilhavam anneis
brazonados, lhe abriram as portas d'aquelle palácio illustre.
Já sabe o leitor que António Lobo de Carvalho, no dia da
execução de Isabel Clesse, estava convidado para um sarau nas
Picoas, e eu dir-lhe-hei agora que esse sarau era de maior
vulto que os ordinários, por festejar o anniversario natalício de
um dos filhos do venerando ancião Fernando Martins Freire de
Andrade.
O marquez de Rezende não se esqueceu de mencionar,
como frequentador d'aquelle palácio, «o mordaz Lobo», pala-
vras suas.
A Zamperini ia encontrar, no palácio das Picoas, mais uma
vez, o seu intransigente adversário António Lobo, mas era
aquelle um terreno neutro onde ella não tinha que temer-lhe as
arremetidas.
A esse tempo Zamperini começava a descer do zenith, por
que as algibeiras dos seus mais abastados admiradores come-
çavam também a estar cansadas de frequentes e profundas san-
grias.
Os poetas aproveitavam o momento, esperançados em que
tivesse soado a hora do seu triumpho, porque Anna Zamperini
era sufficientemente perspicaz para não prescindir de uma
guarda pretoriana, que lhe defendesse a gloria e a fama.
Vendo rarear os argentados, voltava-se com melhor som-
bra para os poetas, a fim de que lhe não faltasse em louvores o
que já lhe ia faltando em dinheiro.
E se alguns poetas, como António Lobo, se mostravam in-
transigentes em recusar-lhe culto, outros, habilmente attrahi-
dos por ella, iam engrossando as fileiras dos zamperinistas
versejadores.
Quando a prima-donna entrou, essa noite, no solar das Pi-
coas, levava a pungir-lhe a memoria um soneto de António
Lobo, em que elle exagerava, é certo, a decadência da artista,
mas em que havia, aliás, um certo fundo de verdade, e era isso
o que mais incommodava a famosa cantora.
o LOBO DA MADRAGÔA 241
Dizia o poeta que ella ia resvalando á pobreza.
Isto era manifestamente uma exageração com o fim de ma-
guar; mas Zamperini ioem sabia que as maiores fontes de re-
ceita estavam exiiaustas.
Assim a Zamperini hoje se estreita
A comer pão de rala. . .
Nem tão longe. Ella comia ainda o pão fino de Melecas * e
até o pão de ló dos conventos, ensopado em velho Porto ou
Madeira. Mas o áureo Pactolo já corria para a sua algibeira
menos caudaloso e torrencial ; era agora um regato escasso,
escasso, sobretudo, para alimentar o fausto e brilho com que
ella e as irmãs se acostumaram a viver.
Os bens da gente de theatro são como os bens do sa-
christão :
Cantando vera,
Cantando vão.
António Lobo concluia o soneto dizendo que a Zamperini,
de queda em queda, ainda havia de chegar a ir morar para a
rua d'elle.
Ora o poeta residia já então á Madragôa, sitio incompatí-
vel, desde velha data, com a decência dos costumes.
Isto era um pesado aggravo, que devia maguar a Zampe-
rini, mas já outros poetas lhe haviam dito cousas igualmente
cruéis.
Comtudo, ao que ella dava maior peso, no intimo da sua
consciência, era «á diminuição das receitas», como diria hoje
um ministro da fazenda nos debates de S. Bento.
Começava a boquejar-se que era sobre o presidente do se-
nado da camará que recahia agora a maior responsabilidade do
torçamento da despeza» e que, logo que o marquez de Pombal
tivesse conhecimento d'este facto, mal iria á Zamperini e, por-
tanto, ás suas duas galantes manas.
Mas o primeiro ministro andava muito preoccupado com a
reforma da Universidade, e havia partido para Coimbra em se-
tembro, não tendo por isso tempo para inquirir do que se pas-
sava no theatro da Rua dos Condes e em casa da Zamperini.
De mais a mais não seria missão fácil, nem isenta de pe-
* São dois logares do concelho de Cintra, nas freguezias de Bellas e Rio
de Mouro, onde n'aquelle tempo, principalmente, se fabricava o melhor pão
de tricô que vinha ao mercado de Lisboa.
^ ^ 16
242 o LOBO DA MADRAGÔA
rigos, a de lhe dar noticias desagradáveis sobre acontecimentos
em que estava envolvido o nome do seu filho primogénito.
A formosa «estrella» da Rua dos Condes e António Lobo
não eram os únicos adversários que, n'essa noite, se encontra-
vam reunidos sob o tecto do solar das Picoas.
Ali estava também o padre Manuel de Macedo, que não ti-
nha menores aggravos de Lobo que a Zamperini ; e que, nas
mesmas salas, fazia cara alegre ao passar hombro a hombro
pelo dr. Domingos Monteiro de Albuquerque e Amaral, por
José Basilio da Gama, e por vários outros que o haviam fiagel-
lado 8 conta da celebre ode.
Ali os sócios da Arcádia se baralhavam, perpassando de
sala em sala, com os seus implacáveis emulos, do Grupo da
Ribeira das Naus.
Ali o conde de Oeiras tinha de roçar o braço por muitos
dos mais figadaes inimigos de seu pae e da sua familia.
Ali, finalmente, no campo neutral das Picoas, sob o paci-
fico influxo das Musas, reinava a mais apparente harmonia en-
tre pessoas que intimamente se detestavam.
Nicolau Tolentino de Almeida abeirou-se, logo ao começo
do sarau, da mesa em que o marquez de Angeja estava jogando
o isque com o marquez de Lavradio, o conde de S. Lourenço
e o conde de Ville Verde.
— Excellentissimos senhores, disse o poeta, tenho a honra
de saudar todos os illustres parceiros de tao preclara partida.
— Olá, sr. Tolentino! responderam os quatro fidalgos cor-
respondendo familiarmente ao cumprimento.
— Então não joga? perguntou o marquez de Angeja.
— Eu ! meu sr. ! Não jogo por duas razões, e comtudo bas-
taria uma só.
— Comece pela principal.
— A principal é vossas excellencias não quererem que eu
jogue.
— Nós?!
— Ora essa? !
— Porquê ? !
— Diga lá.
E Tolentino, aproveitando a occasião de metter memorial,
respondeu :
— Porque ainda se não dignaram despenar o pobre mestre
de meninos e fazel-o subir ao sétimo céu de uma secretaria de
estado.
Riram-se os quatro fidalgos, e todos elles disseram uma
palavra amável ao poeta.
— Vamos a vêr agora a outra razão.
o LOBO DA MADRAGÔA 243
— A outra é que eu não gosto nada d'esta moda do isque,
com perdão de vossas excellencias, que o estão jogando.
— Mas por quê?
— Por quebrar a cabeça, e exigir silencio e concentração
de espirito para tomar sentido nas cartas. Bem se vê que é jogo
de inglezes, cabeças frias e meditativas.
Aquiilo a que os portuguezes do século xviii chamavam
«isque» não era outra coisa senão o «whist», que principiava a
ter voga entre nós.
Tolentino, que foi sempre adversário d'este jogo, orthogra-
phava «isque», como quasi toda a outra gente: mas Garção es-
creveu — Wiske.
— Vamos indo com as modas, respondeu o conde de S. Lou-
renço.
— Eu, meus senhores, contestou Tolentino, direi, sempre
com o respeito devido a vossas excellencias, que prefiro a bisca
c o truque, em que fui criado.
— Mas ha ainda outro que lhe não desagrada decerto...
sublinhou com affavel ironia o marquez de Angeja.
— Ah I bem entendo, meu senhor. A Banca é o rei dos jo-
gos. Fazer um vistoso parolim é ganhar uma batalha terrível.
Mas... não chega a tanto um pobre mestre de meninos, por
que os banqueiros lhe não consentem que aponte a palmatória,
sua única riqueza.
— Ah! parceiro! apostrophou o marquez de Angeja ao
conde de Lavradio. Essa carta agora ! . . .
— Perdão! perdão! disse Tolentino. A culpa foi minha; o
tal isquesinho não é jogo que permitta desvios de attenção.
Desculpem vossas excellencias.
E affastou-se da mesa dos quatro fidalgos.
O padre Francisco Manuel do Nascimento dizia ao ouvido
do dr. Monteiro Amaral, n'outra sala :
— Não posso vêr aquelle homem que acolá está. Conten-
de-me com o systema nervoso.
O dr. Monteiro Amaral olhou disfarçadamente, e viu José
Manuel Pinheiro, secretario da Junta do Gran-Pará e Mara-
nhão.
— E' um assassino, proseguiu Francisco Manuel. Assas-
sino da lingua portugueza, que vae retalhando a golpes de fran-
cezia. E' o francelho-mór d'este reino, uma peste de homem,
que estraga tudo em que põe a mão.
Mas de repente fez-se grande silencio nas salas.
Ia começar o outeiro, rompendo os poetas o sarau com os
costumados louvores e felicitações ao dono da casa por motivo
do fausto anniversario natalício de um dos seus filhos.
244 o LOBO DA MADRAGÔA
Depois seguiram-se os motes e as glosas, os jogos floraes
dos repentistas, e ainda a longa recitação de poesias com que
vinham munidos os poetas que nSo eram improvisadores.
Durante todo este tempo Anna Zamperini esteve sendo as-
sediada pelo «Chevallien) de Montigny», encarregado dos negó-
cios de França, o que dava alguns engulhos ao conde de Oei-
ras, sempre preoccupado em vigial-os de longe com mal dis-
farçado interesse.
Montigny era um poeta, que se propunha conquistar as
mulheres pelo amor, mediante a suggestao estonteadora do
verso. O «vil metal» cheirava-lhe a repugnante trafico de cha-
tins. Tinha uma paixão ardente pela Zamperini, mas para con-
quistal-a seguia pelo caminho mais longo : a poesia. Ella en-
tendia pouco d'isso, e muito de dinheiro. D'aqui o não poderem
identiíicar-se, e o perder elle tempo a rondar -lhe a casa, a vi-
sitar-lhe o camarim, a seguil-a por toda a parte.
N'aquella noite das Picoas intentou o cavalheiro de Monti-
gny vibrar o golpe de misericórdia ao resistente coraçSo da
Zamperini.
O poeta illudia-se mais uma vez, porque ella só tinha gar-
ganta e algibeira.
Mas, ainda assim, Montigny tomou n'essa noite as suas
precauções.
Além de uma epistola em verso, levou-lhe uma carta em
prosa, de leitura mais rápida, na qual resumia em poucas linhas
o que dizia na epistola metrificada.
Era a ultima palavra do seu amor, o ultimo cartuxo quei-
mado, a confissão decisiva de que a amava loucamente: «la fo-
lie de vous aimer»
Julgava elle que as circumstancias o favoreciam, visto sa-
ber-se que os argentados começavam a desertar.
Possuo uma copia manuscripta d'esse duplo documento
amoroso.
A epistola, composta em alexandrinos pareados, é muito
extensa, e eu, para não fatigar o leitor, limito-me a traduzir os
quatro primeiros versos :
Zamperini, é tamanha a lua formosura,
Que o meu amor por ti vai até á loucura.
Teu encanto allucina e faz loucos diversos.
Mas o maior sou eu, que te dedico versos.
Pobre sr. de Montigny ! está-se vendo, logo n'este inflam-
mado intróito, a alma ingénua de um rapaz francez, sincero
o LOBO DA MADRAGÔA 245
como todos os rapazes, galanteador como todos os francezes,
com mais cora<jão do que «porte-monnaie», simples encarre-
gado de negócios na carreira diplomática.
Isto de confessar-se o maior louco de todos, no amor, aos
pés de uma cantatriz, é o mesmo que dizer-lhe : «vá pensando
primeiro nos outros todos e deixe-me para o fim, que eu estou
certo, porque nao posso fugir-lhe».
Ah ! se a mocidade soubesse ! . . .
Mas que o cavalheiro de Montigny estava loucamente apai-
xonado bem o mostrou elle, se ainda fosse precisa mais uma
prova, no sarau das Picoas, sentado junto da Zamperini a di-
zer-lhe finezas, a requebrar-lhe olhares, a dar-se em espectá-
culo á curiosidade e maledicência de todos os convidados.
O padre Manuel de Macedo, nada contente, desforrava-se
dizendo aos seus Íntimos :
— Vejam aquillo! Eu chamei-lhe divina no papel. Mas o
Chevallier de Montigny vae mais longe : divinisa-a no salão.
A carta em prosa, transumpto da epistola em verso, é,
como já disse, um recurso de que o poeta lançou mão para ter
algumas probabilidades de se fazer lêr pela «prima-donna».
A epistola decerto a nao leu ella; mas a carta, por ser
curta, e em prosa, talvez a lesse. . . se é que leu.
O padre Manuel de Macedo e outros muitos vates pode-
riam testemunhar, por experiência própria, que os versos não
eram instrumento efficaz para render a Zamperini.
Dizia a carta do sr. de Montigny :
«Eu junto esta breve carta a uma Epistola assaz longa, a
fim de que possaes lêr em prosa, como em verso, que tenho o
bom gosto de vos admirar e a loucura de vos amar. Tendes
um banqueiro, um joalheiro, um mordomo, um pintor e um
postilhão; não vos falta senão um poeta. Se o meu estylo vos
agrada, dar-me-hei por muito feliz em entrar ao vosso serviço
n'essa qualidade. Não esqueçaes que as personagens mais ce-
lebres na historia do mundo, os generaes victoriosos, e as bel-
las que subjugam todos os corações, só adquirem uma reputa-
ção immortal pelas obras dos poetas ; e se é doce na velhice
contemplar em uma tela sempre fresca a figura encantadora
que aos dezoito annos contemplávamos no espelho, não é me-
nos doce folhear com mão tremula uma collecção de ternos bi-
lhetes e assestar a luneta para reler apaixonados versos. Já vos
fizestes retratar a óleo ; fazei-vos celebrar em verso. Querereis
acceitar a minha dedicação e dar-me uma resposta? Permittir-
me-heis ir estudar a vossa casa a matéria dos meus poemas?
Só essa idéa me envaidece. Mas consenti ao menos que, espe-
246 o LOBO DA MA DRAGO A
rando as vossas ordens, eu tenha o prazer de me assignar com
o mais profundo amor,
o mais humilde e o mais apaixonado entre aquelles
que ambicionariam ser vossos escravos
Assignado: Metrophobyr»,
Era o pseudonymo do sr. de Montigny, mantida a inicial
do seu appellido de familia.
Havemos de confessar que a phrase — para ir estudar a
vossa casa a matéria dos meus poemas — é o mais subtil eufe-
mismo de que lia noticia.
Esta phrase vale bem toda a outra prosa, e até todos os
poemas, do joven diplomata francez.
Pobre sr. de Montigny ! mal diria elle, n'aquella noite das
Picoas, tão cheio de vida, de mocidade e amor, que a morte o
estava ameaçando de perto e que dentro de pouco o empolgaria
na fiôr dos annos, cortando impiedosamente todos os seus
anhelos e sonhos.
Montigny falleceu d'ahi a um anno, no palácio que então
habitava o marquez de Macedónio, enviado extraordinário e mi-
nistro plenipotenciário de Nápoles, residente em Lisboa desde
1767.
Frei Cláudio da Conceição diz no aGabinete Histórico»: *
«No dia 8 de agosto (de 1773) morreu em Lisboa o caval-
leiro Montigny, encarregado dos negócios de França n'esta
corte: sepultou -se na egreja de S. Luiz, que a nação franceza
tem em Lisboa, ás Portas de Santo Antão. Os ministros es-
trangeiros, o corpo da nação franceza, e muitas outras pessoas
de distincção, assistiram tanto ao seu enterro, como ás &uas
exéquias feitas na mesma igreja no dia seguinte».
Não diz que a «prima-donna» Zamperini assistisse aos actos
fúnebres, e comtudo ella devia essa homenagem de respeito á
memoria do homem que tanto a amou e cantou.
O cavalheiro de Montigny não pôde ser ainda hoje um nome
indiííerente a Portugal, pois que seguiu com interesse em Lis-
boa a evolução do theatro portuguez, independentemente da in-
fluencia que no seu coração exercia a paixão pela Zamperini.
N'um oflficio, datado de 12 de agosto de 1771, dizia elle ao
duque de Bouillon que todos os esforços do marquez de Pombal
tendiam a promover o adeantamento e progresso das artes e
^ Vol. XVII, pag- 104.
o LOBO DA MADRAGÔA 247
das manufacturas, e até o dos theatros, e concluía noticiando
que o theatro nacional estava sendo construído por meio de
subscripçao; que se tinham mandado buscar actores á Itália;
e que se traduziam as peças francezas. *
Ora, a esse tempo, não só já havia opera nos theatros do
Bairro Alto e da Rua dos Condes, mas até já havia começado
o ruidoso periodo da Zamperini.
O theatro em construcçao devia ser o do Salitre.
O cavalheiro de Montigny foi substituído em Lisboa pelo
marquez de Clermont d'Amboise, na qualidade de embaixador
de França, o qual habitou, no palácio do marquez de Macedó-
nio, os mesmos aposentos em que Montigny falleceu.
No festival das Picoas, succedeu-se ao outeiro dos poetas
um primoroso serviço de bufete, a que o marquez de Rezende
chama «lauta merenda», e depois começou o sarau musical em
que Anna Zamperini cantou com o tenor Caporalini o dueito
fAh cari palpiti» da burletta de Gimarosa ali matrimonio se-
creto», sendo acompanhados ao piano, um dos primeiros pia-
nos de Pleyel que chegaram a Lisboa, pelo professor João Cor-
deiro da Silva.
Este musico, sempre muito scismatico com doenças, não
se sentava ao piano sem ter a seu lado pessoa de confiança que
lhe voltasse a solta com toda a cautela para... se não cons-
tipar.
N'essa noite solicitou esse obsequio de Nicolau Tolentino
de Almeida, seu amigo, que ficou de pé junto ao piano, immo-
vel, com os olhos pregados na Zamperini.
A cantora perturbou-se com o olhar insistente de um ho-
mem, que ella sabia ser poeta satyrico e que não andava con-
tado no numero dos zamperinistas.
Muito nervosa, no meio de uma tempestade de applausos,
quando acabou de cantar não teve mão em si que não dissesse
ironicamente ao poeta :
— Parece que o sr. Tolentino nunca me viu !
Elle replicou de prompto, gravemente :
— De graça é a primeira vez.
Cantaram ainda outros artistas da companhia da Rua dos
Condes, Trebbi, Schettini, Felicaldi, etc, mas o grande «ciou»
do sarau musical foi Anna Zamperini, a qual despertou tama-
nha ovação de palmas e bravos, que mais uma vez irritou os
nervos do padre Francisco Manuel do Nascimento.
^ «Quadro elementar das relações diplomáticas» pelo visconde de San-
tarém, vol. xviii, pag. 14.
248
o LOBO DA MADRAGÔA
Dizia elle n'um grupo de amigos :
— Vejam Vossas Mercês o que é ser estrangeiro em Por-
tugal ! A nossa grande Luiza de Aguiar, com a sua linda voz
de meio-soprano, encantadora no registo grave, se quiz ganhar
a vida, desde que chegou esta maluca da Zamperini, teve de
ir para o Porto, e por lá está ! E' bonita, canta bem, mas ca-
0 sarau nas Picoas
sou com o rabequista Todi, e é honesta. O' diabo! má recom-
mendação! Nasceu aliem Setúbal ; se tivesse nascido em Itália,
outro gallo lhe cantaria ! Ao Galli, quando metteu hombros á
empresa da Rua dos Condes, só porque era italiano, todos lhe
quizeram levar dinheiro. O pobre JoSo Gomes Varella tem-se
amolado na empresa do Bairro Alto pela culpa de ser portu-
guez. Até lhe fazem satyras! Melhor lhe teria ido se continuasse
o LOBO DA MADRAGÔA 249
a ser boticário. Pois tem lá a irmã da Todi, a Cecilia Rosa, que
é uma primeira-dama de se lhe tirar o chapéu.
— Metteu n'um chinelo a Maria Joaquina, disse o dr. Je-
ronymo Estoquette.
— E' verdade que metteu ! proseguiu o padre Francisco
Manuel. Até me lembro do final de um soneto que dizia :
Mas apenas Cecilia fez ensaios,
Uma Rosa venceu tantos candores,
Um sol fez encobrir tão puros raios !
— Sim... sim, disse o capitão Manuel de Sousa. Isso eram
lamentações postas na bocca de Maria Joaquina. E comtudo
ella tem valor na comedia; quasi tanto como Cecilia Rosa na
tragedia.
— Tanto não! ponderou Francisco Manuel. Mas a emula-
ção faz prodígios. Maria Joaquina foi-se atrevendo, menos mal,
com alguns papeis trágicos. No canto, porém, Cecilia Rosa era-
Ihe muito superior.
N'este momento soaram duas palmadas fortes.
— O que é agora ?
O padre Apolinário da Silva enfiou o olhar ao longo das
salas e disse :
— E' a sr.* D. Caetana Cardoso que vai cantar.
— Bem! bem! exclamou o padre Francisco Manuel. Isso
ha de ser modinha portugueza. Estou com a minha gente.
Pouco depois ouvia-se uma voz bem timbrada e suave can-
tar uma das mais estimadas canções da época: «De saudades
morrerei».
Este numero do sarau foi applaudido com o sincero en-
thusiasmo de portuguezes que acabavam de ouvir a sua bella
lingua glosada sobre um melodioso estribilho musical.
Nào havia n'aquelles applausos nenhum fim reservado,
como quando cantou a Zamperini ou qualquer das outras da-
mas italianas, que mais ou menos tinham arregimentado parti-
daristas interesseiros ou fanáticos.
Premiava-se o mérito da cantora na pessoa de uma senhora
distincta, e festejava-se esse como protesto da alma nacional
contra a inundação da musica italiana, que tinha invadido os
theatros, os palácios e até as ruas.
António Lobo de Carvalho, percorrendo as salas, teve von-
tade de se benzer trez vezes quando viu encostado a uma porta,
em attitude contemplativa, o morgado da Boa Vista.
— Vossa Senhoria aqui! exclamou elle admirado.
250 o LOBO DA MADRAGÔA
— E' verdade, respondeu o fidalgo. Eslava observando a
galanteria com que a condessa de Assumar sabe menear o
leque.
— Quando chegou?
— Ha dois dias.
— Por mar ou por terra?
— Por mar.
— Foi-lhe então levantado o interdicto?
— Consegui que os primos Lorênas consentissem na mi-
nha vinda a Lisboa, sob condição de que nâo frequentaria o
theatro da Rua dos Condes, nem me intrometteria mais em
questões da Zamperini.
— Já lhe fallou?
— Não; nem quero fallar. Ouvi-a cantar ha pouco. Estou
no propósito de respeitar fielmente a prohibição. Então o que
tem feito, Lobo?
— O mesmo que fazia antes de Vossa Senhoria se ausen-
tar: perder o tempo e gastar a vida.
— E amores?
— Amores ! repetiu com uma ligeira sombra de tristeza
António Lobo.
— Nunca mais teve noticias de Villalva?
— Nunca mais. Tenho sido um ingrato. Mas para que se
ha de atiçar um fogo, que uma vez atiçado não teria remédio?
— Ao menos ha de ter tido algum passa-tempo. .. Conte lá
isso, homem.
— Ah ! essas coisas são fogos de vista, que estalam agora
e logo se apagam.
— Mas então?
— Agora acabou justamente de queimar-se uma d'essas
ephemeras bagatellas.
— Diga lá,
— Não era nenhuma vestal, nem nenhuma conquista de
envaidecer ninguém. Conheci por acaso uma rapariga que mora
ao Salitre. . .
— Ao Salitre?
— Sim.
— E como se chama?
— Maria da Gloria.
— Maria da. . . disse o morgado e deteve-se.
— Vossa Senhoria conhece-a?
— Eu!. .. Não. Que idéa !
— Pois o certo é que passei algum tempo com essa rapa-
riga, mas agora fui posto no olho da rua, como se despede um
criado.
o LOBO DA MADRAGÔA 251
De repente, António Lobo sentiu-se assaltado por um pen-
samento que o incommodou.
— Vossa Senhoria chegou ha dois dias?
— Ha dois dias.
— E não escreveu uma carta iogo que chegou?
— Que me lembre não.
— Ah! morgado! nao diga isso. Eu vi o sobrescripto. Pa-
receu-me conhecer a lettra, e não me acudia de quem fosse.
Agora vejo que era a sua. Dê-me palavra de honra que não era.
O morgado da Boa Vista respondeu serenamente :
— Era.
— Ah ! morgado! Eu estou innocente d'esta culpa : ignorei
sempre quem fosse a pessoa da província, em quem Maria da
Gloria me fallava mysteriosamente.
— Acredito.
— Mas como o diabo as tece !
— Bom foi que acontecesse assim, porque de outro modo
eu não viria a saber com tanta certeza o que Maria da Gloria
fizera na minha ausência. Mas deixe-me dizer-lhe uma coisa :
calculava.
— Eu é que fui imprudente em fallar de mais. Este meu
génio !
— Nunca se é imprudente em fallar francamente a um amigo.
Imagine que eu, vindo a sabel-o por alguém, exigiria que me
dissesse a verdade. Dizia ou não?
— Dizia.
— Pois ahi tem.
— Mas a prova de que eu ignorava a verdade está na fran-
queza com que fallei a Vossa Senhoria.
— E' claro. Não vale a pena justificar-se mais, meu caro
Lobo.
O morgado da Boa Vista poz amigavelmente a mão sobre
o hombro de António Lobo e foi-o guiando para a sala do bi-
lhar, como para cortar um incidente em que o poeta parecia
ainda mais constrangido do que o morgado.
Estava jogando uma partida, n'essa occasião, o padre Fran-
cisco do Campo Grande, homem corpulento, com as faces cri-
vadas de variola, e que tinha a paixão do bilhar.
Em roda havia um grande numero de espectadores, que
riam muito com o padre.
Quando o morgado e António Lobo entravam na sala do
bilhar, dizia um dos circumstantes ao acérrimo bilharista :
— O' padre! diga lá uma coisa.
E o padre apontando o taco á bola :
— Direi se souber.
252 o LOBO DA MADRAGÔA
— E' certo que Vossa Mercê uma vez, celebrando missa,
em vez de dizer «Orate fratres», se enganou, e disse «Caram-
bolou o parceiro» ?
Estrondosa gargalhada de todo o auditório.
O padre Francisco, tendo-lhe falhado a tacada, começou a
pôr giz no taco e disse mansamente :
— Ahi ha mais e menos. Eu enganei-me eííecti vãmente.
Mas o que disse foi: «Perdoai, irmãos, á rapaziada, que se ri
de mim nas Picoas, porque elles do jogo do bilhar não perce-
bem patavina».
XIX
fl chanfana
Oito dias depois do sarau das Picoas, António Lobo de
Carvalho tinha ido, com alguns amigos, passar o dia a Saca-
vém em casa do seu antigo condiscípulo João Dias Talaia
Souto-Maior.
O pretexto d'esta excursão era, como sempre, mais uma
tourada, das muitas que o Talaia, «aficionado» tão enthusiasta
quanto desastroso, promovia frequentes vezes.
Este Talaia, que o leitor conhece vagamente desde que An-
tónio Lobo fez uma rápida paragem em Coimbra, comquanto
não fosse tolo e tivesse recebido o grau de bacharel em câno-
nes, tornava-se ridículo por duas manias infelicíssimas : a de
tourear e a de fazer versos.
Ora a verdade é que toureava tão mal como poetava, não
distinguindo entre o toureio das Musas e o das rezes para o
effeito de maltratar umas e outras.
António Lobo, posto que sempre conservasse com elle re-
lações de amizade, não o poupava a cada novo desastre, espe-
cialmente tauromachico. Talaia nem se offendia, nem descoro-
çoava : era de boa feição. Não lhe faltasse publico para o vêr
tourear, dissessem os cartazes que tomava parte na corrida o
dr. Talaia, e estava contente. Pouco lhe importava que os es-
pectadores se rissem, e entre elles, principalmente, o seu amigo
António Lobo, que lhe levava sempre uma «troupe» de bohe-
mios, e cujo génio galhofeiro desde Coimbra o divertia.
254 o LOBO DA MADRAGÔA
N'esse dia o dr. Talaia fizera coisas do arco da velha, como
aliás era costume seu.
Estando já morto um touro, que certo escravo mulato do
conde de Óbidos derrubara valentemente, o dr. Talaia descar-
regou duas tremendas cutiladas. . . no touro.
Toda a praça riu estrepitosamente d'esta fúria tauroma-
chica do desastrado doutor. E António Lobo improvisou, a pro-
pósito, um soneto jovial :
Não dês Talaia, não, contra o preceito
N'esse bruto, que em fira te não resiste :
Não se estrague o valor n'uma acção triste,
Onde illeso ficou o teu respeito.
Corra embora a cachões sangue no peito
Cada vez que o aggressor no campo existe;
Mas o boi já morreu, como tu viste,
A's mãos do teu collega, em postas feito.
Este collega era o escravo mulato do conde de Óbidos, tão
«aficionado» como o doutor, se bem que muito mais valente e
perito do que elle.
Cedo já, diz Talaia; já não provo
N'este curro estas armas reluzentes,
Que á historia hão de servir de assumpto novo:
Só as fevras, que eu sinto mais valentes,
E' ser isto co'um boi, não ser co'um «Lobo«,
Que lhe abrira a cabeça até os dentes.
Lobo recitou este soneto, de pé, na trincheira, e o publico,
logo que o viu em attitude de recitar, suspendeu a gritaria, para
ouvil-o.
Os espectadores applaudiram ruidosamente o poeta, obri-
gando-o a repetir o soneto.
— Tem coisas este Lobo! dizia um.
— E' levado do diabo! affirmava outro.
— Não as poupa a ninguém! E mais elle e o Talaia são
amigos de tu.
— Muito. Ouvi dizer que andaram juntos na escola.
De repente armou-se uma baralha no logar em que Antó-
nio Lobo recitara. Muitas pessoas acorreram áquelle ponto,
saltando degraus, empurrando, acotovellando, querendo saber
o que era. Outras, de pé, gesticulavam, barafustavam, discu-
tiam porque tinham visto o que se passara ou porque... não ti-
nham visto nada.
o LOBO DA MADRAGÔA 255
— O que foi?
— O que é?
— O Lobo bateu em alguém?
— Alguém bateu no Lobo?
— A coisa é com elle.
— Eu vi um homem bater-lhe.
— Porquê?
— Não sei. O Lobo ainda quiz defender-se, mas cahiu, e o
outro foi sobre elle.
— Alguém que tomou as dores pelo Talaia.
— Qual! o Talaia não se importa com chalaças.
— Então por que seria?
— Ha de saber-se. Vamos vôr o que foi.
Pouco depois Lobo era retirado em braços, com a cabeça
aberta, a cara ensanguentada, e os quadrilheiros levavam preso
um rapaz, que teria pouco mais de vinte e cinco annos, e pare-
cia muito exaltado.
Alguns dos espectadores que estavam mais próximos de
António Lobo, contavam do seguinte modo a historia do con-
flicto.
Logo que elle acabou de recitar o soneto, aquelle rapaz
poz-se a pé, bateu-lhe no hombro e disse :
— Eu é que sou capaz de abrir-lhe a cabeça.
Lobo, estupefacto, replicou-lhe :
— Não o conheço ; não sei quem é !
O rapaz, cada vez mais pallido, retrucou :
— Conheço-o eu; sei que é um grande canalha.
A esta palavra, Lobo volta-se de repente e avança para o
desconhecido ; mas escapa-lhe um pé, cáe, e então o aggressor
descarrega-lhe uma forte mocada na cabeça.
Tudo isto se passou rapidamente.
Alguns espectadores ainda agarraram o rapaz e o aggredi-
ram, mas elle, se bem que subjugado, disse serenamente :
— Eu fiz o que elle pedia ao Talaia : abri -lhe a cabeça, não
sei se até aos dentes.
Depois acudiram os quadrilheiros, e levaram-n'o preso.
Aventou-se a hypothese de que o rapaz era amigo do Ta-
laia, e o quizera desaffrontar.
Veiu o doutor, e declarou que nem sequer conhecia de
vista aquelle mancebo ; quanto ao soneto, declarou também que
elle nunca tomava á má parte as facécias do seu antigo condis-
cípulo e amigo António Lobo de Carvalho.
A' noite dizia-se em Lisboa que o Lobo tinha sido morto
na corrida em Sacavém.
— Pois elle toureou !
256 o LOBO DA MADRAGÔA
— O dr. Talaia pegou-lhe a mania!?
— Não foi um touro que o matou, foi um homem.
— Porquê?
— Nao se sabe !
— Vingança de alguma versalhada, talvez.
— Seria o alferes Constantino que se quizesse vingar do
soneto que ahi corre contra a mulher d'elle, e que dizem com-
posto pelo Lobo?
— Não, não era o alferes Constantino.
— Então quem diabo seria?
Ora, como já dissemos, nem o próprio Lobo sabia respon-
der a esta pergunta.
A' noite, quando elle voltou de Sacavém e appareceu no
Rocio, saudaram-n'o como a um resuscitado, pois que a ima-
ginação popular o tinha dado por morto.
— Coisa ruim não tem perigo, dizia alegremente António
Lobo.
— Mas por que foi isso?
— Eu sei lá! Sabe-se a rasão do diluvio universal : foi a
maldade dos homens. Sabe-se a origem da guerra de Troya :
foi a formosura de Helena. Só não se sabe a causa por que
certo muchacho, que eu não conheço, me quiz pôr hoje os mio-
los ao sol.
— Mas é esquisito!
— Também acho, concordava jovialmente António Lobo;
muito mais esquisito para mim do que para Vossas Mercês.
Toda a gente, ouvindo esta e outras chistosas respostas de
Lobo, desatava a rir da excentricidade de um homem, que não
parecia preoccupar-se de haver sido espancado sem saber por
quem e por quê?
— Mas quem será o brutal sujeito? perguntavam-lhe al-
guns amigos no intuito de provocar novas facécias.
— Ora quem será?! E' qualquer representante d'esta vil
humanidade, que eu tantas vezes tenho atanazado com gana.
Acreditem que por tão módico juro vale a pena ir amontoando
um grosso capital de maledicência. Não cahisse eu, e o homem-
sinho apanharia a sua conta, que eu n'outro tempo experimen-
tei o braço n'estas lides, e sahia-me melhor do que o Talaia
nas touradas. Ora quem será elle?! E' um inimigo retardatá-
rio, um ódio feito pessoa, que esteve a abeberar uma vingança
durante mezes, talvez annos. Isto foi mocada d'escabeche, que
esteve de vinha d'alhos á espera de ter consumo. Teve, e aca-
bou-se. Vira a gente a folha, e pensa n'outra coisa.
— Não andaria mulher no caso?
— Qual mulher ! Eu não offendo Dulcineas, que reclamem
o LOBO DA MADRAGÔA 257
um D, Quichote vingador. Só um homem teria a este respeito
motivo para se julgar aggravado por mim, ainda que incons-
cientemente o aggravei ; mas esse não era capaz de pensar em
semeliiante tolice. Finalmente, meus amigos, vamos a vêr se
nos podemos divertir esta noite para apagar da memoria das
gentes a lembrança tétrica do caso estupendo de Sacavém.
— Vamos a isso I disseram muitas vozes.
— O que ha de ser?
— Proponham um alvitre.
— Querem ir ceiar ao Isidro?
— Vá feito!
— EUe hoje ha de ter chanfana fresca.
— A' chanfana! á chanfana!
E largaram por ali fora, em grupo, para a casa de pasto
do Isidro.
O leitor quer decerto saber o que era a chanfana.
Nao admira, porque um joven príncipe, que teria então 11
annos de idade, e fora baptisado com o mesmo nome de seu
augusto avô el-rei D. José, também por aquelle tempo pergun-
tou o que era essa famosa chanfana, de que tanto ouvia fallar.
Creança intelligente, parecendo fadada para altos destinos,
tinha a aguda curiosidade que é própria de todas as creanças
intelligentes.
A pergunta do príncipe constou na cidade, e não só deu
assumpto a varias composições poéticas, mas também poz em
maior voga a chanfana, que desde essa hora passou das choças
da Ribeira para as casas de pasto mais notáveis.
E' que também constou que o joven príncipe D. José não
se contentara apenas com a resposta que lhe deram, e quiz
avalial-a praticamente, dignando-se comer chanfana no Paço.
António Lobo foi um dos poetas que promptamente acudi-
ram á curiosidade do neto de el-rei.
Compoz um soneto, que transcrevo textualmente com a ru-
brica que o antecede :
Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana?
D'aUo barrete, á laia de turbante,
Os braços nus, a faca na cintura,
Co'um panno por timão á dependura,
Trabalha o Isidro, a turco semelhante.
Do elástico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal qual fritura,
Que aos toneis cheios toca a só vacantel
17
258 o LOBO DA MADRAGÔA
Esta, príncipe augusto, é que eu approvo,
Chanfana santa, assaz famigerada,
Com que o turco amofina o nosso povo.
O peor é que lambe d'e8tocada
Aos peraltas o seu cruzado novo,
Menos a mim, que nunca paguei nada.
Isto era já no período de aristocratisação da chanfana, em
seguida á pergunta do príncipe, quando tanto o Isidro como o
Almeida e o Talaveira levavam aos peraltas um cruzado novo
por essa indigesta petisqueira.
Mas António Lobo, aproveitando o assumpto e a opportu-
nidade, também descreveu a chanfana na sua primitiva feição
popular, entrançando uma reste de sonetos, de que vamos ar-
rancar alguns :
Lá onde d'antes era situada
Essa antiga Ribeira, ^ em negras choças
Estão vendendo enlabuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada.
Socos nos pés, as pernas sem ter nada,
Roupinhas de baeta, argolas grossas,
Aos tostões do gallego fazem mossas
Co feijão, com a isca, co'a canada.
Ali de humilde boi já esfolado
O molle bofe se lhe vae frigindo,
E em prato o põem, que nunca foi lavado.
Toda a plebe á chanfana vae surgindo.
Mas depois saem d'este coe damnado
Ora dando encontrão, ora cahindo.
Lobo não se contentou com descrever o aspecto sujo das
choças da Ribeira Velha, e das moças que preparavam a chan-
fana.
Accentuou a pintura do interior das tascas n'outro soneto,
que é um bello quadro da vida plebêa de Lisboa no seu tempo :
Em casa térrea cora dois bancos sujos,
Mesa de pinho a quem um dos pós falha,
De estopa em cima sórdida toalha,
E de roda fumando alguns marujos;
1 Antiga Ribeira, porque monsenhor Paulo de Carvalho Mendonça, ir-
mão do marquez de Pombal e fallecido em 1770, tinha, sendo presidente do
senado da camará, mandado construir o cães da Ribeira Nova.
o LOBO DA MADRAGÔA 259
A porta sempre cheia de sabujos,
E defronte, sentada sobre a palha,
De Guiné e d'Angola essa canalha.
Vendendo mexilhões e caramujos ;
De louro á porta um grande molho atado,
Cortina rota, e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado :
Pois quem vir isto assim fuja do cheiro,
Que se entrar, por querer d'este guisado,
Sairá sem comer, e sem dinheiro.
Nicolau Tolentino também interveio no assumpto, e por
um triz se não accendeu outra guerra entre os poetas como ti-
nha acontecido a respeito da Zamperini e do padre Macedo.
Fallar da chanfana entrara em moda, e o que é certo é que
o pubHco, dando maior attenção aos poetas do que hoje, se
mostrava interessado pelo assumpto... apesar de indigesto.
O soneto de Tolentino vae servir-nos para um duplo fim :
como contribuição para a historia da chanfana e como parallelo
de caracter entre o seu auctor e António Lobo.
Diz Tolentino :
Comprada em asqueroso matadouro
Sanguinosa fressura, quente e inteira,
E cortada por gorda taberneira,
Cujo cachaço adorna um cordão d'ouro;
Cabeças d'alhos com vinagre e louro,
E alguns carvões que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira
Cos indigestos fígados do touro ;
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor que nem o demo o atura :
Isto é chanfana ; e sei quanto ella custa ;
Deu-me o berço, dar-me-ia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.
No final d'este soneto, Nicolau Tolentino não pôde, a pro-
pósito da chanfana, reprimir a sua bossa de adulador de pes-
soas gradas.
Mette memorial, como sempre.
Dá a entender que foi creado com a chanfana e que terá de
morrer n'esse mesmo regimen culinário se lhe não acudir a
mão generosa do príncipe D. José.
260 o LOBO DA MADRAGÔA
Para conseguir o effeito da sua habitual pedinchice, não
duvida dizer que na infância se alimentou a chanfana, o que
nao deve ter sido inteiramente verdade, porque o pae de Tolen-
tino era advogado de causas forenses, e vivia decerto menos
mal, a ponto de poder mandar o filho para Coimbra.
Por sua parte, António Lobo, no final de um dos sonetos,
revela-se o bohemio que sempre fora, declarando que o Isidro
nunca lhe apanhou dinheiro pela chanfana.
Quando elle a comia, eram sempre os outros que pa-
gavam.
Tolentino só quer dinheiro ; Lobo até se gaba de o não ter.
Vejamos, porém, como foi que esteve para rebentar nova
guerra entre os poetas.
O soneto de Tolentino não passou sem contestação ; sahiu
a contradictal-o um sujeito chamado Caetano Pinto de Moraes
Sarmento.
O leitor não ouviu nunca fallar d'este poeta, certamente.
E o que eu mesmo sei da sua vida é apenas o que António
Lobo nos deixou escripto acerca d'elle.
Era filho de um barbeiro, e parece que vaidoso, aperalvi-
Ihado, velhaco, com fumos de poeta e de fidalguia.
Lobo chama-lhe uôdre de vento».
Da farailia dos Pintos o morgado,
Primeiro tolo sem contrariedade.
Está bem de ver que eram inimigos, e que Pinto temia o
Lobo, o que zoologicamente parece natural-
Mettendo-se na questão da chanfana, não é com o Lobo
que o Pinto investe; mas com Tolentino, sem respeito algum,
porque lhe chama desdenhosamente — o tal Tolentino.
Não é esta, senhor, a de que falia,
A chanfana do fígado do touro,
Nem se aduba cora alhos, nem com louro,
Como o tal Tolentino quiz pintal-a.
Uma carne, que deixam de sangral-a,
Mais asquerosa que a do matadouro,
Com toucinho, que o ranço fez côr de ouro,
E pedregoso arroz, que o dente estala;
Carneiro resequido, e não assado,
Gallinha, que mais conta que anno e dia,
Com os sêccos pasteis sem ter picado :
Eis aqui de que falia a fídalguia :
Isto ó chanfana, insípido bocac^o
Que forjam os cyclópes da ucbaria»
o LOBO DA MADRAGÔA 261
Vem mais um poeta, também obscuro, Luiz Joaquim da
Frota, e envolve-se na contenda, passando em revista o que os
outros disseram sobre a chanfana :
Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho e sal,
Muito mal o guizado temperou.
Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou.
Pinto toma os pincéis da phantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Fqí colorir as fezes da ucharia.
Seu quadro é bom; seria consumado.
Se a sua tão creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado I
Esta ultima estocada ao Caetano Pinto de Moraes Sar-
mento confirma as prosapias de fidalguia, que Lobo lhe attri-
bue. Frota também lhe ferra a unha, dando a entender que,
sendo o pai barbeiro, a nobreza da família, começando no filho,
era apenas recemnascida.
Felizmente, este rompimento de hostilidades não se azedou
mais, nem continuou.
Mas veja-se o mau sestro que teem os poetas de estar sem-
pre em divergência uns com outros.
Pelo que elles disseram, o príncipe D. José ficaria sem per-
ceber o que era chanfana, se os criados da real ucharia lh*o
nao tivessem dito a preceito.
O leitor, á falta de leccionista profissional, também de certo
ficou sem uma nitida idéa do assumpto, mas isso nâo é coisa
que lhe deva causar grande desgosto.
O que convém saber é que António Lobo e os outros su-
cios foram, effectivamente, ceiar chanfana ao Isidro e que o
poeta, sem vintém na algibeira, acceitára contente a ceia como
solemne desaggravo da mocada de Sacavém.
Lobo estava magnifico de pilhéria n'essa noite, como quem
nada se importava com a resolução d'este desagradável pro-
blema: quem foi que lhe abriu a cabeça, e porquê?
João Xavier de Mattos, apesar de ter feito protesto de não
comer chanfana, por andar arrazado de saúde á conta de noi-
tadas e ceiatas, quebrou o protesto, comeu e bebeu bem, mos-
262
o LOBO DA MADRAGÔA
trando-se tão alegre como nas suas melhores noites de chalaça
e apetite.
O banquete, como elle dizia, ia rwoseguindo animado,
quando de repente entrou na loja do Isidro o beneficiado Do-
mingos Caldas Barbosa.
Trazia cara de caso.
— O padre por aqui ! Grande novidade ha de ser !
A ceia da chanfana
Lobo e Caldas davam-se bem. Lobo poupara-o sempre;
estimava-o, e era retribuido. Até, lastimando n'um soneto a
sorte de ambos, sobretudo a falta de dinheiro, lhe disse um dia :
Outra vida sigamos, que eu approvo :
Faze-te cego, eu moço malhadiço.
Se has de levar um cão, levas ura Lobo,
o LOBO DA MADRAGÔA 263
Caldas, por sua parte, tinha um caracter leal e dedicado.
Innocencio diz a respeito d'elle: «Consta que fora homem pres-
tavel e estudioso, de trato ameno, disposto sempre a interes-
sar-se por seus amigos, e a obsequial-os no que podia, ainda
que alguns se houvessem para com elle ingratamente».
Pois a sua entrada na loja do Isidro, n'aquella noite, e os
passos que já tinha dado antes, são a confirmação plena da in-
formação que nos deixou Innocencio.
— Grande novidade ha de ser! insistiu António Lobo.
O padre calou-se. Uma voz disse :
— Quem cala, consente.
Apertaram com elle : que desembuchasse ; que despejasse
o sacco; que puzesse as cartas na mesa.
Finalmente, Domingos Caldas Barbosa resolveu-se a dizer :
— O motivo da minha vinda aqui interessa principalmente
ao Lobo. Se elle quizer conversar comigo á puridade, dir-lhe-
hei o que me trouxe cá.
Lobo olhou para elle e perguntou :
— E' o caso de Sacavém?
— E'
— Então, meu Caldas, podes fallar em voz alta, e pôr tudo
em pratos limpos.
Isidro, que estava cabeceando com somno, debruçado no
balcão, accordou a disse :
— Já lá vao. O' rapaz! vai mudar os pratos áquelles. se-
nhores.
Riram-se do «qui-pro-quo» os commensaes.
Novamente instado por Lobo, o padre Caldas contou :
— Já se sabe quem é o homem de Sacavém.
— Já ! ? exclamaram muitas vozes.
— Então quem é o meu... assassino? perguntou Lobo sor-
rindo.
— Lá vamos. Apenas me constou o que tinha acontecido,
fui á intendência geral para saber noticias, pois constava que o
Lobo ficara malferido, e até se dizia que era já morto.
— Ah! maroto! interrompeu António Lobo. Cheirava-te a
enterro rico !
Xavier de Mattos reprehendeu-o :
— Deixa contar o caso, sem interrupções.
— Soube então, proseguiu Barbosa, que o aggressor...
Lobo cortando a narrativa :
— Linda e macia palavra. . . para me não oífender.
— Chiu! Cala-te lá!
— Que o aggressor era filho de um fanqueiro da rua Nova
da Princeza.
264 o LOBO DA MA DRAGO A
Lobo, muito admirado :
— Filho de um fanqueiro! Mas não conheço!
— Conhece-te elle, e tanto basta, disse João Xavier. Va-
mos ao fim.
— E', continuou Barbosa, um estouradinho que não faz se-
não gastar o dinheiro, que o pai honradamente ganha vendendo
pannos e lençarias na sua loge.
— Como se chama? perguntou Lobo.
— Lourenço Ramos.
— O pai ou o filho?
— O filho.
— Ah! sim, disse JoãO Xavier. Tenho idéa de haver um
fanqueiro chamado Ramos, ahi por pé do largo dos Torneiros.
— Já lhe namoraste alguma filha por força I acudiu Antó-
nio Lobo.
— Homem! tu és peor que um algarvio! Deixa fallar o
Caldas.
— Pois o tal Lourenço estouradinho, continuou o benefi-
ciado, está com uma mulher que diz ter grandes aggravos do
Lobo.
— De mim!?
— Sim, de ti.
António Lobo ficou suspenso, perturbado.
Mulher que pudesse ter aggravos seus, havia só uma, que
elle julgava incapaz de planear uma vingança. Era There-
zinha.
— E como se chama essa mulher?
— E' uma sécia de contrabando.
— Ah ! é uma sécia f exclamou António Lobo, tão desoppri-
mido, como se lhe houvessem tirado de cima do peito um peso
enorme.
— Uma mulher, disse o Caldas, a quem tu, segundo ella
declara, tolheste interesses e commodos.
António Lobo perguntou de repente:
— Maria da Gloria?
— Isso mesmo.
— Ah! já sei. Mas querer vingal-a o tal estouradinho!?
Ainda se fosse outra pessoa. . .
— O morgado da Boa-Vista? perguntou Barbosa.
— Sim, o morgado.
— Ella contou tudo na intendência, aonde também foi cha-
mada.
— Então o que disse?
— Que o morgado, a quem tu foste dizer que ella te rece-
bia na sua ausência. . .
o LOBO DA MADRAGÔA 265
— Fui, sim, porque ignorava que o morgado fosse o dono
da casa. Cahi n'uma ratoeira imprevista.
— Que o morgado, proseguiu Barbosa, a deixou logo que
o soube, e foi adejando para os braços da Ricarda, que ella con-
siderava a sua primeira amiga.
— Isso é a vulgar perfídia do official do mesmo officio,
disse Lobo. Mas que falta pôde fazer á Maria da Gloria o mor-
gado, se ella já tem o estouradinho?
— E' sol de pouca dura. Ella julga-se desgraçada, e a ti o
auctor da sua desgraça. Diz que nao te ha de dar mais uma
hora de descanso na vida.
— Ora essa ! Tem graça !
— Foi ella que induziu o peralvilho a ir provocar-te em Sa-
cavém, sabendo que tu não faltarias a uma tourada do Talaia.
Pois o que é certo é que lá estão ambos presos na intendên-
cia, ella e o tal Lourencinho da rua Nova da Princeza.
— O que nSo é de todo mal feito, observou Lobo.
— Sim... se a coisa ficar por aqui.
— Pois ainda haverá segundo acto da tragedia?
— Maria da Gloria teve o despejo de dizer que ha de dar
comtigo doido.
— Querem Vossês vêr, disse Lobo rindo, que ainda me
acontece como ao Schiattini : el-rei tem pena de mim, e no-
mea-me cantor da sua real capella!
E simulou querer afinar a voz, como se fosse cantar, o que
despertou geral hilaridade.
— Pois senhores, disse elle d'ahi a momentos, faltava na
minha historia amorosa este baptismo de sangue. Estou um ga-
lan completo. Tenho agora a marca do sacrificio na cachimo-
nia : sou uma victima do amor. Querem Vossês saber uma
coisa? Vou jogar. Infeliz nos amores, feliz no jogo.
— Deixa-te d'isso, aconselhou paternalmente Domingos
Caldas Barbosa.
— Não. Vou tentar um parolim. Devo estar em sorte, ou
não ha verdade nos provérbios.
Levantaram-se da mesa alegremente, e sahiram.
O grupo dispersou-se. Uns, como Domingos Caldas Bar-
bosa, recolheram-se a casa. Outros acompanharam Lobo á rua
dos Correeiros, onde, como já sabemos, o Mendes estucador
dava tavolagem a pontos conhecidos.
Lá encontraram Nicolau Tolentino, muito embuçado no seu
josésinho de camelão.
João Xavier de Mattos dirigiu-se logo a elle, dizendo :
— Então, apesar de todos os protestos!.. .
— Ora, meu caro João Xavier, protestos são palavras vans,
266 o LOBO DA MADRAGÔA
que se repetem e desfazem como bolas de sabão. Agora mesmo
sahiu d'aqui um taful depennado, a jurar e a trejurar que não
jogará mais. Ha de voltar amanhã, se Deus quizer.
E, a propósito, recitou os quatro primeiros versos de um
soneto seu:
Que tornas a apontar, prometto, e attesto;
Que eu, pássaro bisnau, fino garoto,
Depois de já ter feito o mesmo voto.
Jogo o que trago, e jogarei de resto.
Depois, fallando ao ouvido de João Xavier, disse-lhe To-
lentino :
— Aquillo do Lobo foi coisa de pouca monta? Elle já está boml
— Não valeu nada.
— Antes assim.
E logo, dando attenção ao jogo, vozeou Tolentino ao ban-
queiro :
— Jogo doze vinténs á sota de copas. E' a minha dama.
O Mendes estucador começou a tirar as cartas, espremen-
do-as entre os dedos queimados de cigarro. Tolentino perdeu.
António Lobo levantou o parolim que fizera e exclamou contente :
— Está salva a verdade dos provérbios !
E, muito animado, continuou a jogar com audácia, sendo-
Ihe a sorte favorável.
Banqueiro e pontos ficaram subitamente assustados, quando
d'ali a pouco ouviram bater á porta por modo que não era o
combinado com os frequentadores da casa.
•— Serão os quadrilheiros ? tal foi a anciosa interrogação de
todos os olhares.
Rapidamente trataram de acautelar o dinheiro e os bara-
lhos, e o Mendes mandou á porta a mulher, a illustre bastarda
do duque de Cadaval, como ella dizia vaidosamente, que estava
sempre á mão para acudir a estas occorrencias, em que o medo
aconselhava todos os disfarces e prevenções possíveis.
Houve momentos de silencio e terror.
Por fim, a solicita esposa do banqueiro voltou, sorrindo,
com uma carta na mão, e disse :
— Não é nada de cuidado : uma carta para o sr. António
Lobo. Trouxe-a um almocreve a quem primeiro disseram, se-
gundo contou, que Vossa Mercê tinha hoje sido morto em Sa-
cavém; depois que estava na loge do Isidro; e por ultimo o
próprio Isidro lhe disse que Vossa Mercê devia estar aqui. O
homem larga de manhã e queria entregar hoje a carta por força.
António Lobo olhou para a carta, olhou para os circum-
stantes e exclamou furioso :
— Que mais teremos ainda ? ! Estragaram-me o jogo!
XX
Pobreza e independência
Felizmente, a carta não trouxe más noticias.
Pelo contrario, era um convite do padre capellão da Con-
ceição de Beja, antigo amigo de António Lobo, instando com
elle para que fosse tomar parte, com alguns amigos, no outeiro
do abbadeçado, que devia realizar-se dentro de oito dias.
Dizia o padre na carta :
«Traze quem quizeres, comtanto que tenha prenda de poeta
ou instrumentista. Poesia e musica é que as minhas freiras
querem. Despezas todas, incluindo as da jornada, pagas pelo
convento. Vai ser festa de arromba. Se precisares de algum di-
nheiro adeantado, falia com o almocreve, que vai prevenido.
Rogo-te que não faltes, porque está a meu cargo a organização
do outeiro, e eu não quero ficar com cara de tolo».
Lobo leu a carta, e disse para João Xavier:
— Olha que tem sido uma noite de sorte ! Vê isto.
João Xavier, inteirado do texto da missiva, mostrou-se
muito satisfeito.
— Boa occasião, alvitrou elle, para eu reapparecer por al-
guns dias na Vidigueira, á ida ou á volta.
— O que não será preciso como demonstração de que tu és
um funccionario pontualissimo, replicou ironicamente António
Lobo.
— Não que eu também quero, de passagem, abraçar o meu
268 o LOBO DA MADRAGÔA
amigo dr. Alho Mattoso, na sua herdade de Villa de Frades.
Ha que tempos pensava em ir fazer-lhe uma visita ! mas falta-
va-me o melhor. . .
— E' verdade! apostrophou António Lobo. Agora por di-
nheiro! Onde está o almocreve?
E correu á porta, mas a mulher do Mendes, sahindo ao
corredor, disse-lhe que o almocreve entregara a carta e descera
logo.
— Estávamos bem arranjados, contestou Lobo, se eu hoje
n5o tivesse a algibeira quente!
João Xavier, a quem, por aquelles motivos, sorria a idéa
de ir ao Alemtejo, tratou immediatamente de arrancar o Lobo
á tavolagem, e de combinar com elle a partida para o dia se-
guinte, receioso de que o dinheiro ardesse com a costumada ra-
pidez.
Effectivamente, graças aos esforços de João Xavier, recru-
taram alguns repentistas e atravessaram ao outro dia para Se-
túbal, onde Lobo quiz avistar-se com o joven Santos e Silva
para o tentar a acompanhal-os.
— Que nao, que não podia, disse- lhe o moço poeta, porque
nem o padrinho desembargador, nem a sua querida Lésbia, lhe
permittiriam uma nova ausência tão próxima da que fizera
quando veiu a Lisboa ouvir a Zamperini.
Conversando de assumptos litterarios, disse Santos e Silva
haver em Setúbal um menino que promettia vir a ser um grande
poeta pela facilidade com que improvisava em convivência com
outras creanças da sua idade.
— Como se chama? perguntou Lobo.
— Manuel Maria Barbosa du Bocage.
— Francez ?
— A mãe é de origem franceza, mas o pai é portuguez e
advogado n'esta villa.
— Que idade tem o pequeno?
— Pouco mais de sete annos.
— E' assombroso! Deus queira que elle não degenere, como
eu degenerei.
Santos e Silva sorriu d'esta phrase do Lobo e acompanhou
o sorriso com um gesto negativo de cabeça.
De Setúbal seguiu a caravana dos poetas para o Torrão,
onde um dos do rancho tinha parentes, e do Torrão jornadea-
ram para Beja, através da charneca, nas tradicionaes carretas
puxadas a muares, que então constituíam o melhor systema de
viação adoptado n'aquella província.
Era a primeira vez que António Lobo, bem como alguns
dos companheiros, entrava em terras do Alemtejo.
o LOBO DA MADRAGÔA
269
O minhoto é quasi sempre soberbo dos bellos panoramas
da sua província, e a dizer a verdade tem razão para o ser.
Comtudo o Álemtejo, posto que proporcionalmente menos
povoado e muito mais despido de vegetação que o Minho, offe-
rece pela vastidão do território, pela amplidão das herdades ou
das charnecas, e pelos aspectos tanto da cultura como da vida
agrícola, um interesse novo e picante, que prende a attenção do
homem do norte.
Lobo ia observando, com viva curiosidade, a physionomia
Um «monte» no Alem^tejo
da província transtagana, o interior dos «montes» onde pernoi-
tavamre comiam, sendo sempre recebidos com bizarra hospita-
lidade ; os usos e costumes domésticos, os processo de lavoira,
o typo das mulheres e dos homens, dos ciganos, dos ganhões,
dos maltezes, dos pastores, dos mendigos e das creanças.
— Que diabo! dizia elle. Aquillo em Lisboa é uma Cápua,
que enerva todas as actividades da vida humana. Cai a gente
ali, e não quer vêr mais nada senão o que todos os dias vê. E'
um captiveiro voluntário, onde se estraga pela estagnação o
gosto de viver. Pois, n'este nosso pequeno paiz, ha mais, ha
muito que vêr e admirar; ha uma variedade cambiante, que de-
leita o espirito, sem quebrar a unidade do sentimento nacional.
Não sei se Vossês entendem isto?
— O que eu entendo, retrucava um, é que mais depressa.
270 o LOBO DA MA DRAGO A
n'esta moedeira somnolenta da carreta alemtejana, posso tritu-
rar a espinha dorsal, do que o sentimento... quê? Como dis-
seste tu?
— Nacional é que elle disse, recordava outro.
— Pois isso, menino, é que eu ainda não moí; o mais vai
tudo moído.
— Bárbaros I exclamava António Lobo. Vossês, em per-
dendo de vista o Isidro e a chanfana, pensam que o mundo
acabou ! Pois ha aqui muito que admirar sem phantasias de poeta
lunático. Entre o Alemtejo e a minha provincia noto differenças
consideráveis. O que lá é propriedade dividida e retalhada, é aqui
extensa herdade e grande cultura. O boi, esse pacifico e traba-
lhador animal do Minho, é aqui desbancado pelo gado muar,
que puxa a carreta, a carroça e a nora.
— Ora vejam lá como o Lobo vai ralado de saudades pelo
boisinho minhoto l Limpem-lhe as lagrimas; façam favor.
— Ha bois que valem mais do que Vossês, que nunca pres-
taram para nada.
— Pouco mais ou menos como tu.
— Exacto; é por isso que reconheço a superioridade do boi.
Passando por um grande rebanho de ovelhas negras, guar-
dadas por um pastor e dois cães, perguntou Lobo ao conductor
da carreta :
— E' baldio este terreno?
— Não, senhor. São terras que ficam de pousio, de trez em
trez annos, e servem para engordar os gados.
— Mas foram lavradas?
— Nós cá dizemos alqueivadas. Foram, sim senhor.
— Não ha no Alemtejo ovelhas brancas? Que diacho! só
vejo ovelhas pretas!
— As brancas dão-se melhor no alto Alemtejo, lá para Por-
talegre e Castello de Vide.
— Ah! Lobo! Lobo! confessa que te faz falta um cordeiri-
nho branco para compor um idyllio !
— Um idyllio! disse elle. Que peste! Eu nunca pude sup-
portar as semsaborias bucólicas.
E, concentrando-se, António Lobo continuava mentalmente
o confronto entre o Alemtejo e o Minho, invadindo-lhe o espi-
rito, n'uma penetrante saudade, a doce recordação da sua pro-
vincia natal, especialmente do tempo que passou na Palmeira,
onde conheceu e amou Therezinha.
Nunca, como n'essa viagem pelo Alemtejo, elle tinha pen-
sado tanto n'ella desde que sahira do Porto.
Pondo os olhos na monótona aspereza de terras infindas,
ou na vastidão de um ceu que parecia mais abrazado do que
o LOBO DA MADRAGÔA 271
luminoso, onde de vez em quando passavam aves de rapina, a
águia e o milhafre, António Lobo reconstituía a paizagem mi-
nhota, a terra verde, o rio claro, o céu azul, o canto das aves,
a mulher cantando.
Mas a única mulher do Minho que elle via n'essa hora, na
tortura de uma recordação suave, era aquella linda cachopa de
Villalva, sempre cantando, trabalhando e sorrindo.
— O que será feito d'ella? perguntava a si mesmo. Talvez
casasse com o pobre Miguel.
Mas o seu coração queria repellir esta hypothese, que des-
valorisava a lealdade e a dedicação de Therezinha.
Depois, como que procurava justifical-a se isso tivesse
acontecido :
— Sim, casou decerto. E' bem natural que o fizesse. Pois
havia de estar á espera de um noivo, que não podia voltar
nunca?
E recordava-se, nitidamente, do primeiro e único beijo que
lhe furtara, no dia em que abandonou a Palmeira: parecia-lhe
sentir ainda nos lábios o contacto de uma face macia e casta
como a pétala de uma rosa.
— O beijo, pensava elle, recebe o fluido magnético do corpo
em que toca : é puro ou impuro não pela intenção de quem o
dá, mas pelo fluido que absorve. Um beijo pôde ser malicioso,
mas se fôr dado n'uma mulher honesta, é como a onda que vae
quebrar-se n'uma roca de coral. E se a mulher não fôr vir-
tuosa, o beijo mais innocente inflamma-se, arranca uma cente-
lha como o fuzil á pederneira.
E jurava a si mesmo que, no beijo que furtou á Therezi-
nha, a innocencia d'ella o purificou tanto n'esse momento como
se fosse uma agua lustral cahindo dentro da sua alma e sa-
grando-a.
Foi sob todo este influxo de recordações saudosas que elle
avistou os muros negros de Beja e a negra Torre de Menagem,
rodeados de campinas mortas e silenciosas, onde raras man-
chas verdes de olival ou vinha quebravam a monotonia da cul-
tura dos cereaes.
Sentia-se triste e acabrunhado; suppunha-se a mil léguas
de distancia das povoações alegres e cantantes do seu Minho
luminoso.
— Tu vaes meditabundo, ô Lobo !
— Ainda choras pelo bolsinho trabalhador?
— E a ovelhinha branca, que pena!
— Diabo ! disse Lobo. Em Guimarães as pedras negras do
castello e da muralha não são tão feias como estas!
E logo, disfarçando os seus pensamentos, acrescentou:
272
o LOBO DA MADRAGÔA
— Hei de vingar-me de toda esta fadiga na ucharia e gar-
rafeira das freiras.
— Evohé! gritou um.
— Por Marianna Alcoforado ! berrou outro.
— Irra ! regougou António Lobo. Não me íallem de mulhe-
res que escrevem cartas delambidas! Isso é gentinha que eu
não posso soffrer.
O capellão do convento recebeu-os com grande alegria e
levou-os para a hospedaria que lhes fora destinada.
Era uma casa de taipa, isto é, com paredes de terra com-
Beja
primida, camadas de cal e pedras miúdas; e com pavimentos
de tijolo.
— Que diabo de casas estas! exclamava Lobo. Não ha
pedra?
— Falta nas visinhanças da cidade.
— E não ha madeira para assoalhar as casas?
— Também não ha.
— Então o que teem Vossês cá? perguntou Lobo.
— Teem freiras, e já não é mau, respondeu um dos poetas.
O capellão, muito risonho, explicou-lhes que o abbadeçado
tinha d'esta vez maior brilho por ser o primeiro que no con-
vento da Conceição se fazia depois que o illustre bispo Cená-
culo regia a diocese.
Era, pois, uma dupla homenagem ao prelado e á abbadeça.
E, para lisonjear os seus hospedes, foi-lhes mostrar um
esconço onde estava a garrafeira que elles deviam esgotar, uma
formidável bateria de garrafas cheias do melhor vinho de Beja,
de Cuba, da "Vidigueira e de Ferreira.
— Gaspite 1
o LOBO DA MADRAGÔA 273
— Bravo!
— ((Per Baccho !»
Depois do abba(ieça(io, cujas festas constituíram um bri-
lhante triciuo, ainda, a instancias das freiras, se demoraram os
vates mais trez dias em folguedos que deram brado.
Fallou-se muito de uma ceia que elles promoveram para se
divertir á custa de um rapaz, que os servia como criado.
Metteram-lhe na cabeça que o nome romano de Beja, «Pax
Júlia», se referia a uma illustre matrona, que no tempo de Jú-
lio César ali passou de viagem e casou, por paixão, com um
camponez lusitano, sendo esta a primitiva origem da cidade.
— Pois tu nunca tinhas ouvicio fallar na D. Júlia? pergun-
tava António Lobo ao criado.
— Ouvia algumas vezes fallar em Júlia, sim, senhor; mas
a historia, tão explicada, ninguém m'a tinha contado ainda.
— Ficas agora sabendo que Vossês, os de Beja, são filhos
de uma fidalga romana ; e quem sabe se seria teu parente o ra-
paz com quem ella casou?
— Não que eu não tenho parentes.
— Como não tens parentes?
— Sou engeitado.
— Mais uma razão: podes ser o representante longínquo
de alguma fragilidade de D. Júlia, que nas romanas não havia
que fiar. Pois, amigo, vamos remir a vossa ingratidão, reali-
zando amanhã uma ceia de despedida para honrar a memoria
da preclara D. Júlia, illustre matrona, sétima filha de Sexto
Pompeu, o qual casou oito vezes, e teve nove mulheres, porque
uma foi illegitima.
A ceia eífectuou-se, e a ella assistiram o capellão das frei-
ras e outros bejenses de bom humor.
Ficou-se-lhe chamando «a ceia de D. Júlia», e esta expres-
são servia depois, n'aquella cidade, durante os últimos annos
do século XVIII, para designar alguma comesaina formidável,
copiosamente regada de vinhos.
António Lobo, que não gostara da cidade, gostou da vida
que ali teve n'esses alegres oito dias; e a lembrancja de The-
rezinha esvaiu-se-lhe nos fumos bacchicos que o traziam con-
tente e folgado.
João Xavier de Mattos quiz, após breve demora na Vidi-
gueira, leval-o comsigo para Villa de Frades, em visita ao
dr. Joaquim António Alho Mattoso, * e fácil foi captar-lhe a
annuencia.
^ Foi este bacharel, em cuja casa Mattos falleceu mais tarde^ que o man-
dou sepultar n& egreja matriz e pôr-lhe um epithaphio sobre a campa (1789).
18
274 o LOBO DA MADRÂGÔA.
Os outros poetas seguiram directamente para Lisboa.
Na herdade do dr. Alho Mattoso teve António Lobo occa-
sião de observar mais deitdamente a vida alemtejana, cujos as-
pectos tanto o haviam interessado durante a jornada para Beja.
Dentro d'essa herdade havia um mundo que elle desconhe-
cia inteiramente : era pelo menos uma vasta cidade, fechada por
muros brancos, contendo uma abundante população agrícola de
homens, mulheres, creanças, animaes domésticos e bestas de
trabalho.
O «monte» ficava sobre uma collina, n'um dos extremos da
herdade: «monte» quer dizer a casa de habitação do dr. Alho
Mattoso, á qual se agrupavam outros edifícios menores, depen-
dências suas.
Sentia-se ali dentro a riqueza e a abundância, provenien-
tes de uma grande propriedade agrícola.
Solteirão maior de quarenta annos, o dr. Mattoso vivia
com todos os regalos e commodidades que sobejariam á vida,
pacifica e farta, de uma família numerosa.
Quando António Lobo viu a despensa, declarou-se assom-
brado deante das grossas mantas de toucinho, empilhadas em
salmoira, e das varas de paios, chouriços, linguiças, cacholei-
ras, farinheiras e murcellas, que, pendentes do tecto, comple-
tavam o fumeiro; dos potes de azeite, das azadas de queijo, das
talhas de azeitonas, dos balaios de ovos, das saccas de arroz,
dos costaes de bacalhau, como elle nunca tinha visto nem em
Guimarães, nem na Palmeira, onde as ucharias dos frades pa-
reciam reles despensas comparadas com a de um rico celiba-
tário do Alemtejo.
— Santo Deus! exclamou António Lobo. E lembrar-se a
gente de que em Lisboa se celebra a gloria da chanfana, como
sendo uma coisa digna de preoccupar o espirito de um prín-
cipe 1
O dr. Alho Mattoso, mostrando-lhe a sua casa, levou-o
também á cosinha, vasta, com uma lareira enorme, onde o fogo
chammejava constantemente. Dir-se-ia que se estava n'um mos-
teiro; em Tibães, por exemplo. Todo o arsenal culinário, em
cobre, ferro, estanho, arame e barro revestia as paredes de alto
a baixo, sumptuosamente, espelhando os clarões rubros da la-
reira, onde a lenha estalava ardendo.
Depois o dr. Mattoso mostrou-lhe os celleiros, aqueijeira,
as cavallariças, os palheiros, a atafona, o laneiro, a pocilga, a
capoeira, o pombal, o forno, em cuja «alpendorada» dormiam
os maltezes e os mendigos; as arrecadações de carros e appa-
relhos de lavoura; as arribanas do gado; o casão do carpin-
teiro; emfim, todo esse conjunto de variadas dependências de
o LOBO DA MADRAGÔA 275
um «monte», a que no Alemtejo se dá o nome genérico de «ca-
banas».
António Lobo senlia-se divertido e feliz dentro d'esta coló-
nia agrícola, espécie de cidade e de campo, onde fremiam acti-
vidades, laboravam officinas, e se confundiam no ar os ruidos
das ferramentas e dos utensílios de trabalho com as vozes dos
animaes e dos homens; e onde havia ociosos e inúteis, parasi-
tas e vadios, desconhecidos suspeitos, criminosos errantes, ci-
ganos pilharengos, a escoria vil que nas grandes cidades cos-
tuma viver da esmola, da burla e do furto.
Entretinha-se a observar a lida rural, os processos de
cultura, a labuta quotidiana do Alemtejo; mas o que principal-
mente lhe prendia a attenção era a fauna transtagana, sobretudo
o pária, o lixo humano, a que elle chamava «seu irmão»: o
maltez que a herdade alimenta e que diz mal do proprietário,
quando á noite, em voita da fogueira, tem a barriga cheia de
assorda ou atabefe; o cigano, acampado á parte, quasi sempre
junto ás medas de lenha; a creança, malteza vagabunda, sem
família e sem guia, que é ali acolhida caridosamente como n'um
asylo protector e que ali permanece regenerada; o adventício,
o caldeireiro, o vendedor ambulante, que vem de toda a parte,
sem passaporte, nem íolha corrida, e que no «monte» encontra
hospitalidade e tolerância.
— Grande terra o Alemtejo! dizia António Lobo, onde os
vadios como eu podem contar com o pão nosso de cada dia sem
terem que pedíl-o a Deus Nosso Senhor! Terra de hospitali-
dade e protecção, onde a fome não existe, e a cosinha de um
«monte» é a cosinha de toda a gente. Creia Vossa Senhoria,
dizia elle ao dr. Alho Mattoso, que me parece que já d'aqui não
saio mais, porque a minha cara de certo lhe inspirará mais
confiança que a de um desconhecido barbadão que eu vejo ha
dias na herdade, e que Vossa Senhoria não sabe quem é, nem
isso lhe importa.
— Esteja o tempo que quizer, meu caro Lobo, respondia-
Ihe o generoso hospedeiro, pois que somos dois a folgar com a
sua demora, o Mattos, que já parece vender saúde, e eu, que
lenho a companhia de duas pessoas cuja conversação litteraria
e convivência amena são deleitosa distracção aos meus cuida-
dos e aborrecimentos de celibatário.
O dr. Alho Mattoso proporcionava aos seus dois hospedes
excursões de recreio e festas campestres para os ter sempre
entretidos, pois que em verdade desejava demoral-os.
Percorreram juntos as melhores herdades circumvisinhas,
em Cuba, Selmes, Vidigueira, SanfAnna e Villalva.
— Pois também aqui ha Villalva 1 exclamou António Lobo,
276 o LOBO DA MA DRAGO A
impressionado, quando ouviu nomear a freguezia d'este nome.
— Ha, respondeu o dr. Mattoso. Havemos de lá ir visitar
a Gandra, propriedade de uma senliora tão respeitável como
distincla.
Lobo fallava muitas vezes, desde então, no passeio a Vil-
lalva.
— Esse nome deu-lhe no golto ! dizia o dr. Mattoso.
— E' que também no Minho ha uma povoação assim cha-
mada.
A Villalva alemtejana, freguezia limitrophe com a de Villa
de Frades, fica na vertente septentrional de uma ramificação da
serra d'Alpedreira.
Desce sobre a planície, e é banhada por uma ribeira que
vae desaguar na de Odivellas.
A herdade da Gandra pertencia n'esse tempo, como o
dr. Alho Mattoso dissera, a uma senhora, D. Maria Engracia
Bellem, viuva rica e quasi sexagenária, que fez amável acolhida
ao jurisconsulto, seu visinho, e aos dois hospedes que elle lhe
apresentou.
Ao cabo de vinte e quatro horas, quando pensavam em re-
tirar-se, D. Maria Engracia pediu-lhes que se demorassem mais
alguns dias, mostrando-se encantada com a presença dos dois
poetas, especialmente de António Lobo, cujos ditos chistosos a
divertiam immensamente.
— O marido d'esta senhora, dizia o dr. Mattoso, era um
lavrador taciturno, bom homem, mas sombrio, que fallava
pouco e só tratava dos seus negócios. De modo que D. Maria
Engracia parece apreciar muito o seu género, meu caro sr. Lobo,
não só por ser novo sob este tecto, mas também pouco vulgar
na nossa província, onde os aspectos da natureza e as condi-
ções da existência tornam o homem pouco expansivo e alegre.
Por sua parte, D. Maria Engracia dizia ao dr. Alho Mat-
toso :
— Peço ao meu bom visinho que retenha na minha casa os
seus hospedes, porque elles são como um raio de luz que en-
trou aqui e desassombrou o meu espirito. Não tenho filhos, não
tenho família, passo semanas, mezes, annos até, que não fallo
senão com os meus criados ou com o meu abegão, porque as
visitas são raras e cerimoniosas. Com a chegada de Vossa Se-
nhoria e dos seus companheiros entrou aqui a alegria. Então
este sr. Lobo, ainda mais que o sr. João Xavier, é dotado de
um génio tão jovial, que ninguém pôde estar triste ao pé d'ellel
Estimável pessoa o sr. António Lobo!
— Minha senhora, replicava-lhe Lobo, eu não sou o que
pareço ; sou muito peor. A minha graça, se a tenho, é como o
o LOBO DA MADRAGÔA 277
assucar que os boticários deitam nas drof^as amargas, para que
os doentes possam engulil-as melhor. Tenho o azedume pró-
prio de todos os inúteis e de todos os pobretões, que a cada
momento se despeitam por encontrar em toda a parte uma pes-
soa mais feliz do que elles.
— Um homem intelligente, contestava D. Maria Engracia,
nunca é inútil; e se não é rico, tem direito a aspirar a uma si-
tuação em que deixe de o não ser. 'Vossa Mercê, íóra de Lis-
boa, mudaria completamente o seu teor de vida, teria menos
distracções, mas talvez mais commodidades; sobretudo, teria
paz e saúde, que lhe fariam perder o azedume de que se queixa,
e que aliás não enxergo.
Lobo, ouvindo-a, dizia comsigo mesmo:
— E' curioso! Que estranha influencia tem este nome de
Villalva no meu destino 1 Na Villalva do Minho, encontrei o
coração de uma rapariga, tão linda como a sua aldeia. Na Vil-
lalva do Alemtejo, mais árida e triste, venho encontrar, cuido
eu, o coração de uma viuva rica e velha!
Escusado será dizer que, preoccupado com esta singular
coincidência, o pensamento de António Lobo fugia para a Vil-
lalva do Minho.
João Xavier de Mattos disse um dia a Lobo, na presença
do dr. Alho Mattoso:
— Homem ! casa com a velha. Tu ainda não percebeste que
ella morre por ti?
António Lobo sorriu-se.
O dr. Mattoso acrescentou :
— Se Vossa Mercê, sr. Lobo, me permitte liberdades, a
que eu não tenho direito ainda por ser o mais recente dos seus
amigos, comquanto na sinceridade possa igualar os que mais
antigos forem, dir-lhe-hei que seria um óptimo casamento. Esta
senhora, com ser idosa, é de presença e trato agradável, como
vê. Quanto a honestidade, não se lhe conhece uma falta. A sua
casa vale um punhado de mil crusados. Um tio do marquez de
Olhão, homem violento, tem procurado captar a estima de D. Ma-
ria Engracia, sem que ella se mostre resolvida a desposal-o,
certamente por lhe conhecer o génio e calcular também que o
único móbil a que elle obedece é o dinheiro. No Alemtejo, meu
caro sr. Lobo, ha uma fidalguia de coração que se não julga
inferior á fidalguia de raça.
— Creio bem, respondeu Lobo; e Vossa Senhoria o está
demonstrando agora com as suas boas palavras. Mas o casa-
mento é para mim como um hieroglypho do Egypto: não o
sei lêr.
João Xavier acudiu do lado:
278 o LOBO DA MADRAGÔA
— Eu tenho-me dado a estudar, estes dias, o coração da
mulher aos sessenta annos. E' como um rescaldo suave, que
nSo abrasa, mas aquece. Esta senhora está namorada de ti, sem
faceirice ridícula, nem obstinação impetuosa. Conserva a digni-
dade no amor, a temperatura calma de quem, sentindo ainda o
coração, pondera claramente as responsabilidades dos seus an-
nos. 0£ferece-te a sua riqueza, a sua casa, o seu affecto, e con-
segue fazel-o sem te vexar e sem vexar-se. O teu próprio des-
interesse parece captival-a ainda mais, porque só está habituada
a que lhe cobicem o dinheiro.
— E n'uma coisa também eu por minha vez tenho repa-
rado, disse o dr. Alho Mattoso. Nos primeiros dias, D. Maria
Engracia deu á sua casa um ar de festa, promovendo bailes e
descantes dos ganhões, saltos dos ciganos, e uma corrida de
novilhos. Mas desde que Vossa Mercê lhe despertou algum
affecto, ella aproveitou habilmente a nossa aprendizagem do is-
que, para reimprimir á sua casa a feição de tranquillidade ha-
bitual e mostrar a Vossa Mercê a pacifica vida que o pôde es^
perar aqui, ao lado d'ella.
— Já uma vez, replicou Lobo, eu poderia ter casado em
condições de muito menor abastança, mas de bem maior felici-
dade. . . O meu génio, o meu instincto de liberdade e indepen-
dência, por ventura a imposição do meu destino, venceu o co-
ração, contrariou esse ephemero e delicioso sonho. Não casei
então que era moço; hoje começo a envelhecer e tenho já in-
vencíveis hábitos de solteirão libérrimo. Vossa Senhoria, em
matéria de casamento, lembra um pouco frei Thomaz: olha para
o que elle diz, não olhes para o que elle faz.
Ao cabo de oito dias, o dr. Alho Mattoso disse aos dois
poetas que não podia abandonar por mais tempo a sua casa, e
combinou-se que na madrugada seguinte se despediriam da il-
lustre hospedeira.
Quando D. Maria Engracia soube isto, mostrou -se pre-
occupada. Durante a partida do isque, ella tinha hesitações so-
bre as cartas que devia jogar ou que já haviam sabido. A me-
moria falhava-lhe n'essa noite. No fim do jogo, resolveu-se a
chamar António Lobo de parte e a dizer-lhe:
— Vejo-me embaraçada para significar a Vossa Mercê
quanto eu desejaria que continuasse a viver em Villalva, n'esta
mesma casa, como senhor d'ella e marido da proprietária.
— Minha senhora, respondeu Lobo, eu agradeço profunda-
mente o testemunho de estima que me dispensa, e a que me
confesso grato. Mas eu seria um marido intolerável, por que
sou um espirito rebelde ao casamento; contentar-me-hei com
ser um sincero venerador de Vossa Senhoria.
o LOBO DA MADRAGÔA 279
E beijou-lhe respeitosamente a mão.
— Que tolo! dizia d'ahi a momentos João Xavier.
— Ali! meu caro sr. Lobo! ousou dizer o dr. Mattoso. Isso
é o que se chama atirar a felicidade pela janella fora. Chame-me,
embora, frei Thomaz. Fallo-lhe com toda a minha franqueza de
alemtejano.
Prolongou-se durante trez mezes a estada de João Xavier
e António Lobo na herdade do dr. Alho Mattoso.
Voltaram algumas vezes á Gandra, e ahi passaram dias,
sendo Lobo sempre recebido com o mesmo affectuoso acolhi-
mento.
D. Maria Engracia nao revelava o menor despeito, antes
timbrava em significar ao poeta a constância de um sentimento
discreto, mas sincero.
Lobo era sempre o mesmo homem, jovial, communicativo
6 sarcástico.
Passara os quarenta annos sem quebra do bom humor, do
génio mordaz que lhe conhecemos desde a mocidade.
Envelhecia rindo, podendo facilmente conter as recordações
saudosas do passado, por mais que intimamente o pungissem.
Duas coisas, dizia elle, me contentam da inutilidade da mi-
nha vida: ter a algibeira leve, e a consciência tão leve como a
algibeira.
Também costumava traduzir esta mesma idéa por um ri-
fão, que elle declarava ter adoptado como divisa: «Pobrete, ale-
grete» .
Todos, na herdade, a partir do dr. Mattoso, gostavam de
António Lobo, que umas vezes conversava com os ciganos,
outras com os maltezes, agora com os velhos, logo com as
creanças.
— Como Vossa Mercê pôde entreter-se com essa gente!
dizia-lhe a miude o dr. Mattoso.
— A minha resposta é sempre a mesma, contestava Lobo.
Ouvindo-os, folheio mentalmente o grande livro da vida, a his-
toria da humanidade, que é o maior de todos os dramas, uma
tragedia monstruosa.
Certo dia explanou esta resposta, dizendo:
— E sabe Vossa Senhoria uma coisa? E' que eu sinto-me
perto d'esses desgraçados. Com um pouco menos de intelligen-
cia, teria nascido igual a elles, e então, em vez de dormir n'um
dos melhores quartos do «monte», dormiria na «alpendorada»
do forno; e, em vez de comer gallinha ou abetarda á mesa de
Vossa Senhoria, comeria sopas com toucinho no meio dos mal-
tezes.
O dr. Mattoso, escutando- o, dizia comsigo mesmo:
280 o LOBO DA MADRAGÔA
— Singular homem este, que não tem onde cahir morto, e
recusa ser o dono da Gandra !
Uma vez, no intuito de prevenil-o contra quaesquer peri-
gos, o dr. Mattoso aproveitou o primeiro ensejo para dizer-liie:
— Vossa Mercê conversa muito com as ciganas, especial-
mente com as raparigas, e consinta que o avise de que, entre
esta raça cosmopolita, os homens são intransigentes quanto á
honra das mulheres. Poder-se-ia pagar caro um delicto, que
contrariasse o sentimento geral da raça.
— Sei perfeitamente; mas em todo o caso agradeço a boa
intenção do aviso. Não ha malícia no meu trato com as ciga-
nas; apenas curiosidade de observar costumes e praticas in-
teressantes, se bem que exóticas. Prefiro, naturalmente, con-
versar com as raparigas, porque a cigana é precoce, e, depois
dos vinte annos, começa a envelhecer; até os olhos, que são
dois bellos luzeiros, principiam a apagar-se. Gosto que ellas me
contem um pouco da sua raça; eu entretenho-me a perscrutar
o que posso. Até já sei canções das ciganas. Quer Vossa Se-
nhoria ouvir?
E, com o seu bom humor habitual, António Lobo cantou :
A* noche estube en chique,
Dama, para pirabar-te ;
Pó, non ha podido sé,
Qu'e&tabas con el avate.
O dr. Mattoso ria de o ouvir cantar em rumanho.
— Ora agora, proseguiu Lobo, para ser inteiramente leal
com Vossa Senhoria, dir-lhe-hei que outro dia uma das cigani-
tas, que traz na ponta das tranças um laço de fita verde. . .
— Bem sei; é talvez a mais bonita.
— Isso mesmo... se me ofifereceu para ir ser minha criada
em Lisboa.
— Pois não é vulgar. Ellas não se desaggregam facilmente
da sua raça e dos seus costumes. E Vossa Mercê o que lhe
respondeu?
— Que eu nunca tive criados em parte nenhuma.
— Bem respondido! observou, sorrindo, o dr. Mattoso, por
que podia ser uma grande cilada.
— Perdão! bem respondido, porque é uma grande verdade.
Uma vez vieram cartas de Lisboa para João Xavier de
Mattos.
— Que vai lá por essa Sodoma? perguntou-lhe António
Lobo.
— Queres vêr?
— Nao.
o LOBO DA MADRAGÔA 281
— Mas queres saber?
— Dize.
— Ainda que te seja desagradável?
— Isso é-me indifferente. Pois ainda ha alguém em Lisboa
que tenha tempo para se lembrar de mim? Quem é?
— Maria da Gloria.
— Então nao é ninguém. Mas dize sempre.
— Conta aqui o Barbosa que ella tem espalhado que fugiste
de Lisboa com medo da sua vingança implacável.
Lobo ficou um momento pensativo, e disse:
— Sim... ha trez mezes que andamos por fora. Prefiro nSo
ter vergonha a ter medo. Amigo, vamos embora, e ha de ser
hoje mesmo.
— Que diabo de tolice !
— Hoje mesmo.
E d'aii a horas partiam do Alemtejo para Lisboa.
XXI
Rua!
Estamos em 1774.
A Zamperini continua a cantar no theatro da Rua dos Con-
des, mas os seus espectáculos nao produzem já receita que
possa equilibrar as despezas da companhia.
Succedem-se umas operas a outras, sem melhoria de êxito
pecuniário. Succedem-se uns artistas a outros, mas fogem a
iDreve trecho como os ratos quando presentem a ruína de um
prédio.
Comtudo o theatro enche-se de espectadores, porque o
conde de Oeiras distribue entradas gratuitas para sustentar, ao
menos apparentemente, o culto da sua «rdiva».
A sociedade empresaria falliu, julgando-se os accionistas
muito felizes por não serem obrigados, segundo o estatuto, a
renovar o capital extincto.
Não ha vadio em Lisboa que se não faça admittir como
«claqueur» : a onda dos borlistas cresce todas as noites á porta
do theatro.
E', como hoje dizemos em giria theatral, toda a tirmandade
da Senhora da Graça».
Mas, em nossos dias, o borlista permitte-se a liberdade de
sahir dizendo mal do espectáculo a que assistiu por lavor.
Em 1774 o caso mudava um pouco de figura, porque pa-
recia arriscado offender o conde de Oeiras, filho do primeiro
o LOBO DA MADRAGÔA 283
ministro, comendo a isca de uma opera e desfeiteando depois o
anzol com que elle pescava espectadores.
Toda a gente sabia, comquanto o marquez de Pombal con-
tinuasse a ignoral-o, que a sustentação do theatro e da família
Zamperini pesava exclusivamente sobre o conde de Oeiras.
A «prima-donna», a sós com as irmSs, mostrava-se muito
preoccupada com o próximo fim do seu reinado em Lisboa.
Ella tinha a esperteza que a mulher de theatro copia das
heroinas das peças e das outras actrizes, mais velhas ou mais
ladinas.
A escola dos bastidores dá, como nenhuma outra escola, a
«sciencia da vida».
Anna Zamperini via bem a questão^ receiava uma de duas
coisas: que o conde de Oeiras, arruinado, alijasse a carga; ou
que o marquez de Pombal, sabendo o que se passava, prati-
casse alguma violência para salvar o filho de uma ruina com-
pleta.
Pois nao arcara elle com a poderosa Companhia de Jesus,
não insistira pela sua extincção, e essa Companhia não acabava
de ser extincta por um breve de Clemente XIV, vendo assim o
marquez esmagados aquelles que tão porfiadamente combatera?
O próprio marquez não fez alarde da sua victoria solemni-
sando a derrota dos jesuítas com um «Te-Deum» cantado em
todas as egrejas de Lisboa e com trez noites de luminárias pu-
blicas?
E o que era, a par da Companhia de Jesus, a companhia...
da Rua dos Condes?
Essa bem podia elle esmagal-a sem o auxilio de breves
pontificios; bastava-lhe uma ordem, uma palavra, a pressão de
um dedo da sua mão omnipotente.
As operas, por melhor que fosse a escolha, não conseguiam
levantar financeiramente o theatro: o êxito da «Isola d'amore>,
de Sacchini, e do «Amore senza malícia», de Ottani, cantadas
em abril e maio d'esse anno, ensaiadas e representadas em me-
nos de um mez, fora tão pouco lucrativo como o de outras mui-
tas operas anteriormente postas em scena.
Conhecendo bem o falso terreno que pisava, sentindo zum-
bir-lhe nos ouvidos, como um enxame de vespas, aquelle ter-
rível soneto em que Lobo lhe prophetisára que ella ainda havia
de ir morar para o bairro da Madragôa, Anna Zamperini soube
com inquietação que o mordacíssimo poeta tinha regressado a
Lisboa depois de uma ausência de alguns mezes.
Elle viria, com novas satyras e sarcasmos, descarregar-lhe
o golpe de misericórdia, justamente no momento de maior pe-
rigo.
284 o LOBO DA MADRAGÔA
A cantora nao se enganou.
Durante os últimos mezes de 1773 e os primeiros de J774,
António Lobo continuou a sua pertinaz campanha de opposição
á companhia Zamperini.
As circumstancias favoreciam -n'o agora mais que nunca.
— O naufrágio, dizia elle por toda a parte, já pouco pode
tardar. O chaveco da Rua dos Condes navega desarvorado e
com grande rombo no casco. Até os adjectivos do padre Ma-
cedo, que é o calafate da casa, já não sao querena que preste.
Anna Zamperini, para amordaçar António Lobo, decidiu
recorrer ás habilidades próprias do seu sexo e da sua profissão,
á sciencia de viver aprendida, por copia de bons modelos, nos
bastidores e nos camarins.
Traçou um plano, que, segundo todas as probabilidades,
devia dar bom resultado.
Encarregou uma das suas irmãs, Felicia, a mais velha, a
quem nSo faltavam seducções plásticas, de provocar amorosa-
mente António Lobo.
As duas manas Zamperinis assistiam sempre aos espectá-
culos n'uma das frisas ou «forçuras», que ficavam ao nivel da
platéa, e que não costumavam ser frequentadas pelas damas
portuguezas, exceptuando as noites de enchente real.
Mas, aproveitando a sua qualidade de estrangeiras e tam-
bém a circumstancia de serem pessoas de casa, isto é, da famí-
lia da primeira aestrella» da companhia, nem tendo que guar-
dar o decoro que pertence ás mulheres honestas, conversavam,
nos intervallos, das frisas para a platéa com os «habitues», que
lhes ofíereciam raminhos de flores, rebuçados e outras galan-
terias.
António Lobo nunca lhes tinha sido apresentado, pois que
desde o principio se alistara na phalange dos adversários da
tprima-donna».
Mas dissera uma vez, e isso constava no theatro — pequeno
mundo onde tudo se sabe — que das trez Zamperinis a que va-
lia menos como mulher era a cantora.
Também se sabia no theatro que elle, encarecendo a belleza
das suas patrícias, estava sempre disposto a desdenhar das mu-
lheres estrangeiras, que ordinariamente só pensavam em cha-
tinar com os seus encantos.
Ora o plano, audazmente traçado por Anna Zamperini, era
complexo, porque abrangia uma plena desforra de todas estas
opiniões emittidas, em momentos de expansiva franqueza, por
António Lobo.
O que é certo é que uma noite, inesperadamente, Felicia
Zamperini, vendo entrar o poeta no theatro, se dignou dispen-
o LOBO DA MADRAGÔA 285
sar-lhe olhares maviosos, cuja significação não admittia duvida.
EUe não attingiu logo todo o alcance d'este amável logro,
e contentou-se em dizer a João Xavier:
— As Zamperinis estão cada vez mais perto do naufrágio.
Até já se não esquivam a encarar os poetas que não dão tré-
guas á irmã, nem a ellas podem dar garantia de lhes offerecer
alguma jóia de preço.
— Bem sei por que dizes isso, tornou-lhe João Xavier. E'
que a Felicia tem-te feito esta noite um namoro descarado. Pa-
rece querer arvorar a bandeira branca da paz, em nome da fa-
milia.
— Meu caro amigo, quem no Alemtejo passou noventa dias
entre maltezas e ciganas, não deixa de achar attractivos na mu-
lher que sabe toucar-se e vestir-se. E' uma espécie de perinha
doce depois de um longo regimen de fumeiro.
— Estás um pouco mudado!
— E' verdade. Vai-me cansando a guerra. Talvez seja acção
reflexa do Alemtejo, onde a grandeza das terras influe no espi-
rito do homem dilatando-o generosamente. Começo agora a sen-
tir os eíTeitos da tizana benéfica. Eu tenho esta noite consentido
em deixar-me namorar — e n'isto é que está a minha generosi-
dade—o que é muito differente de me fazer eu namoradiço como
qualquer peralvilho de cuteliqué. Para onde queres tu que eu me
volte? Para a Maria da Gloria, que me daria que fazer, se a não
tivessem enxotado de Lisboa? Para a D. Maria Engracia, a
quem recusei a mão e a Gandra? Para a cigana dos laços ver-
des, immunda e honesta, a cheirar a azeite no cabello? Para
quem mais?. . .
E, subitamente, uma nuvem de tristeza lhe poisou no sem-
blante : tinha-se lembrado de Therezinha.
Mas logo, rebatendo este pensamento, readquiriu o seu bom
humor e continuou muito discursivo, como quasi sempre.
— Eu, entre a Zam.perini e o padre Macedo, não hesitarei
um momento : sou pela cantora, que é mulher, contra o padre,
que é tolo. E quanto ás irmãs, meu amigo, visto que não ha
ciganos dispostos a desaffrontal-as de cochilla em punho, está-me
parecendo hoje que ellas não são para recusar, caso esponta-
neamente se declarem dispostas a esquecer os aggravos feitos
á tdivina» cantatriz, sua illustre mana.
— Todavia são estrangeiras, o que prejudica a tua patrió-
tica theoria do monopólio nacional.
— São, mas não me podem roubar, porque eu não tenho
nada que me roubem. E' uma d'ellas que vem hoje ao meu en-
contro e me diz com o olhar e com o sorriso: «Vossa Mercê
defende as portuguezas, sem interesse nem proveito. Pois fi-
286 o LOBO DA MADRAGÔA
que-se embora com ellas, que eu quero ser gentil com um ad-
versário, galardoando-liie o seu mesmo patriotismo, já que as
suas patricias o não fazem por gratidão. Pensassem todos os
italianos tSo patrioticamente, e nenhuma das Zamperinis teria
necessidade de andar expatriada por longes terras.» O' João
Xavier! olha que é honroso e justo. Uma reconciliação é sem-
pre nobre. Deixa-me agora, que lá está a Felicia a arvorar ou-
tra vez a bandeira branca da paz. E' o inimigo que se rende.
Sejamos humanos e. . . homens.
O que é certo é que o «signum pacis» já fluctuava benigno
nos olhos de Felicia havia trez ou quatro dias, quando uma
noite António Lobo, atravessando o Rocio para ir á Rua dos
Condes, encontrou o morgado da Boa- Vista junto ao palácio da
Inquisição.
Foi o morgado que o deteve, tocando-lhe no hombro.
— Não me engano ! exclamou Lobo. Por onde se tem gas-
tado Vossa Senhoria ?
— O mesmo digo eu a respeito de Vossa Mercê. Cheguei
ha trez dias de França, onde passei alguns mezes. Não o pude
vêr antes de partir, por mais que o procurasse!
— Estive no Alemtejo, em Villa de Frades.
— Onde fica isso?
— Para os lados de Beja.
— Gostou?
— Muito. Passei excellentemente. Mas Vossa Senhoria não
tem apparecido na Rua dos Condes !
— Não, respondeu o morgado, sorrindo; por causa dos
primos Lorênas, preciso guardar as apparencias.
— E deu-se bem por França?
— Oh 1 excellentemente. Grande e alegre paiz aquelle. Mas
deixemos esse bello assumpto para melhor occasião. Agora va-
mos a outra coisa. Eu estava morto por encontrar Vossa Mercê
para lhe dar uma explicação.
— A mim?
— Certamente. Tenho que pedir -lhe desculpa da desagradá-
vel occorrencia de Sacavém, para que eu involuntariamente con-
corri. Pratiquei talvez uma leviandade...
— Por modo nenhum.
— O caso foi que Maria da Gloria negava impudentemente
que me houvesse atraiçoado. Exigia provas com irritante alti-
vez. Tive de dizer-lhe tudo, e fallei no seu nome, meu caro
Lobo, que era a prova decisiva. Ella então lembrou-se de que
Vossa Mercê havia reconhecido a minha lettra no sobrescripto
de uma carta, e attribuiu a denuncia sua, por vingança, o meu
rompimento. Disse-lhe que da parte de Vossa Mercê não houve
o LOBO DA MADRAGÔA 287
propósito algum de prejudical-a; mas apenas uma referencia a
factos em que me nao suppunlia interessado. Ella parecia ter
ficado convencida da verdade. Mas d*ali a dias, sabendo da mi-
nha intimidade com a Ricarda, perdeu a cabeça, deu por paus
e por pedras, e conseguiu levar o filho do fanqueiro a praticar
o desatino de Sacavém. Mas ainda a historia não pára aqui.
— Então que mais?
— Eu também tive um conflicto com o rapazote.
— Sim?
— Provocou-me, e posso garantir-lhe que d'uma cajadada
matei dois coelhos : vinguei a Vossa Mercê e a mim.
— E o peralvilho ficou ensinado de vez?
— Entrou em casa bem zurzido, e o pai, não podendo já
supportar-lhe as estroinices nem os gastos, mandou-o á socapa
para o Brazil.
— Eu sabia que elle tinha embarcado, mas ignorava esse
pormenor. Quando regressei do Alemtejo, perguntei pelo che-
chisbeo, por o não encontrar no meu caminho, como esperava.
Foi então que me disseram que a familia se desfizera d'elle
mandando-o para longe.
— Também já sabe de certo o que aconteceu á Maria da
Gloria?
— Sei. Tratei de saber. Está degradada em Castro Marim.
Constou-me no Alemtejo que ella andava a diffamar-me por
Lisboa, e vim com o propósito de lhe enterrar uma mordaça pela
bocca dentro. Mas não foi preciso, porque eu a chegar e ella a
ir para Castro Marim.
— Também me diífamava, dizendo que eu era o mais villão
dos fidalgos portuguezes. Sabe que ella atirou vitríolo á cara da
Ricarda?
— Sei que foi degradada por isso.
— Tornára-se mais raivosa desde que perdeu o Lourenci-
nho, que por amor d'ella já andava na mão de todos os agiotas.
E então, desesperada, deu-lhe para se vingar na Ricarda por
minha causa.
— E diga-me Vossa Senhoria: A Ricarda, que não tenho
visto, ficou muito queimada ?
— Algum tanto, especialmente no pescoço. Mas conte-me
o que tem feito por cá?
— Nada. O mesmo que fiz no Alemtejo.
— Nem a respeito de amores ?
— No Alemtejo não pensei n'isso durante trez mezes.
— Custa a crer !
— Mas é verdade.
— E em Lisboa?
288 o LOBO DA MADRAGÔA
Lobo sorriu-se e disse :
--Eu já tenho medo de fallar de amores a Vossa Senho-
ria.. .
O morgado sorriu-se também, e respondeu :
— Pôde fallar á vontade, que eu tenho aprendido á minha
custa a não ser leviano, ainda quando se trate de amores fáceis.
— Mas sempre é bom acautelar. Ahi vai uma pergunta por
minha vez. Vossa Senhoria, desde que regressou de França,
tem-se avistado com a Zamperini, apesar de nao ir ao theatro?
O morgado sorriu e disse :
— Bem sabe que prometti aos primos Lorênas não zampa-
rinar mais, e, pelo que respeita á cantora, tenho cumprido a
minha palavra. Agora haveria ainda outra razão : é que sou
amigo do conde de Oeiras, e não quereria desgostai -o. Mas
pelo que respeita ás irmãs da Zamperini, não tomei compro-
misso nenhum, e alguma coisa ha effectivamente, n'estas ulti-
mas quarenta e oito horas.
Foi António Lobo quem agora sorriu, exclamando :
— Mau!
O morgado da Boa-Vista, surprehendido com esta excla-
mação, perguntou :
— Mau, por quê?
— Primeiro que tudo: Vossa Senhoria refere-se a ambas
as irmãs ou apenas a alguma d'ellas?
— Cartas na mesa: refiro-me á Margarida.
— Respiro !
— Mas então?
— E' que a Felícia tem-me dado um ar da sua graça ha
trez ou quatro dias.
Agora foi o morgado que sorriu, dizendo:
— Bomf
— Bom, por quê?
— Porque Vossa Mercê encostou-se a boa arvore: eu posso
auxilial-o n'essa empresa. Já se avistou com ella?
— Ainda não.
— Pois ha de avistar. Mas, ó meu caro Lobo, quem havia
de dizer, ha ainda um anno, que Vossa Mercê embarraria pela
familia Zamperini?
— Voltas do mundo. Olhe, morgado, pelo padre Macedo é
que eu não hei de embarrar, nem quero.
Tornou o morgado a sorrir-se, e disse:
— Ora ainda bem que encontrei o meu caro Lobo. Já me
fazia falta o seu bom humor.
Depois entraram em minuciosas confidencias.
O morgado lastimou que a Zamperini estivesse impondo ao
o LOBO DA MADRAGÔA 289
conde de Oeiras dispendiosos sacrifícios, que elle não poderia
supportar por longo tempo.
— A corda não tarda a rebentar, disse elle. E quando o
marquez o souber, rebentará, com estrondo, fulminantemente.
Confirmou que as irmãs da Zamperini eram muito mais
accessiveis depois que a cantora apenas podia dispor do bolso
do conde de Oeiras, e que a própria cantora atraiçoaria o conde,
se não tivesse medo d'elle e do seu valimento. A situação es-
tava sendo embaraçosa para as trez irmãs.
— Agora entendo tudo! disse Lobo. Felicia e Margarida
procuram amparar a irmã na decadência. Vossa Senhoria con-
corre com dinheiro para as urgências do estado. Eu sou um
canudo da opinião publica, que convém entupir. Pois já estou
entupido. Quando é que Vossa Senhoria se digna apresentar-me
á sua cunhada Felicia ?
O morgado largou a rir e disse:
— Vossa Mercê tem coisas ! A' minha cunhada I Pôde ser
hoje mesmo se quizer.
— Pois seja.
— Irei por excepção hoje á Rua dos Condes para auxiliar
o meu caro poeta. Mas não volto lá, nem será preciso. E uma
vez não são vezes.
Durante o espectáculo Lobo viu entrar na frisa das irmãs
Zamperini um porteiro do theatro, e chamar de parte Marga-
rida.
Esta, por sua vez, chamou Felicia, com quem fallou ao
fundo da frisa.
Entretanto o porteiro fingia entreter-se, discretamente, a
olhar para os camarotes fronteiros.
Depois, Margarida tirou do seio uma carteirinha, escreveu
n'uma folha, arrancou-a, dobrou-a, e entregou-a ao porteiro.
António Lobo disse de si para si :
— Isto é que é um serviço de amor bem organizado ! Até
trazem no seio a secretária. Pobre morgado ! alguém hoje o
atraiçoa.
D'ali a pouco voltava á platéa o morgado da Boa- Vista e
dizia a Lobo :
— Está tudo combinado. Amanhã cearemos os quatro.
— Como fez Vossa Senhoria isso?
— Escrevendo á Margarida.
— Então o bilhete que ella recebeu, ha bocado, era seu?
— Era.
— Já vejo que foi para responder-lhe que ella tirou do seio
a secretária 1
— Cale-se, homem I que me faz perder de riso.
19
290 o LOBO DA MADRAGÔA
— Decididamente, disse Lobo, os poetas são os maiores tolos
do mundo. Eu não haveria passado de uma troca de olhadel-
las, se não tivesse a boa fortuna de encontrar Vossa Senhoria.
Assim, apanhei ceia e amor. Em conclusão, sou um grande
tanso, e o morgado é um homem pratico. O seu a seu dono.
— Eu devia-lhe uma indemnisação. Trato de pagar o que
devo. Quero desmentir Maria da Gloria, provando que não sou
o mais villão dos fidalgos portuguezes.
E o morgado cantarolou «Ah cari palpiti», o lindo duetto
do «Matrimonio secreto».
Pouco depois rompia a orchestra ; o espectáculo continuava.
E então havia já no olhar de Felicia Zamperini mais alguma
coisa do que uma esperança : havia uma promessa.
Nada d'isto passou despercebido ao padre Manuel de Ma-
cedo, em cujos lábios se steriotypou um sorriso irónico e im-
pertinente.
— Eu racho aquelle padre ! dizia António Lobo ao morgado.
— Não faça tolices, respondia-lhe tranquilamente o fidalgo.
O que é certo é que Felicia Zamperini procurava denunciar
publicamente a vassalagem de Lobo, por esse vulgar senti-
mento de vingança generosa, que tanto lisonjeia o orgulho das
mulheres.
Ella queria mostrar rendido aos seus encantos um dos mais
ferozes adversários da irmã.
Esse era o plano combinado com a cantora.
O padre Macedo, espécie de perdigueiro ao serviço da fa-
mília Zamperini, farejou, com fino olfacto, a aproximação de
um. . . «Lobo».
E no seu sorriso, irónico e impertinente, havia como que
uma dolorida expressão de desalento e despeito : tTodos são
aqui felizes, menos eu».
A famosa ode, que tamanho escândalo fizera, subia-lhe
aos gorgomilos e entalava-o.
O morgado da Boa- Vista morava, a esse tempo, na rua
das Portas de Santo Antão, no segundo andar de um prédio
de modesta apparencia, que hoje está reconstruído.
Alfaiara com elegância e riqueza o seu ninho de homem
solteiro: «garçonnière», como dizem os francezes. Ali dentro
reinava ainda D. João V : mobilia doirada e estofos claros. *
^ As mobilias doiradas continuaram a ser moda, a despeito da pragmá-
tica de 1749, que dizia: «Só poderão ser doiradas, ou prateadas as molduras
dos espelhos, painéis, placas e pés de bofetes».
Esta pragmática, dada por um rei quasi morto, ficou sempre lettra morta
o LOBO DA MADRAGÔA 291
Este apparato, em contradicção flagrante com o exterior mo-
desto do prédio, era um turbiilião de luz que surprehendia e
deslumbrava as mulheres e confundia algum tanto os homens,
especialmente os bohemios que pela primeira vez entravam ali.
As duas Zamperinis chegaram pouco antes da meia noite,
findo o espectáculo, n'uma sege que o morgado tinha posto,
havia dois dias, á disposição de Margarida.
Já alguém, sabendo d'esta galante generosidade, havia dito
que, no momento em que o conde de Oeiras largasse a presa,
Margarida seria substituída n'aquella sege pela cantora, que o
morgado preferia ás irmãs.
E, a dar-se esse caso, uma coisa se prophetisava : que o
fidalgo da Boa-Vista, apesar da promessa feita aos primos Lo-
rênas, caminharia cegamente para uma completa ruina.
Margarida e Felicia traziam na cabeça mantilhas brancas,
guarnecidas de rendas de Malines.
Quando as tiraram, uma onda de perfumes caros evolou-se
perturbadoramente dos decotes, que punham a descoberto bus-
tos marmóreos, onde o reflexo das luzes cahia em palpitações
scintillantes.
Essas duas Zamperinis tinham a alegria, a garridice, a
desenvoltura, que pertencem ás mulheres da raça latina, com
excepção das portuguezas, e que a liberdade dos costumes,
quando adoptada como norma de vida, exagera e desculpa.
A mulher de Portugal é, na sua raça, a mais sóbria de
gestos e palavras, a de génio mais grave e concentrado. Falta-
Ihe a mobilidade e o gorgeio das francezas, das hespanholas e
ainda das italianas. Não canta ; falia: mas um doce tom de sin-
ceridade e firmeza aquece habitualmente a sua voz. Os seus
olhos, quasi sempre bellos, raras vezes são travessos. A sua
physionomia habitual tem o que quer que seja de lago sereno,
que não promette naufrágios, como o olhar provocante, oceano
revolto, das outras latinas.
Que influencia, physiologica ou mesologica, pode ter deter-
nado este facto ?
Não sei. Mas a educação portugueza, por tantos séculos
severa e austera, deve ter sido um dos factores que o produ-
ziram.
A portugueza foi, durante gerações successivas, educada
para o lar domestico e para o convento ; d'ella se dizia, por
largo tempo, que sahia de casa apenas trez vezes para ir á
igreja : baptisar-se, casar-se, e sepultar-se.
Podia a vida conventual tolerar costumes reprehensiveis,
como já tivemos occasião de vêr; mas a mulher portugueza,
lançada n'esse meio, não adquiria, ainda assim, a petulan-
292
o LOBO DA MADRAGÔA
cia de outras da sua raça em identidade de condições sociaes.
Sei que não falto á verdade, se disser que António Lobo,
ao vêr entrar as duas Zamperinis, se lembrou do estalajadeiro
Reboto, achando-lhe razão mais uma vez.
O que faltava nas duas irmãs, para completar o encanto
da sua presença, era o prestigio artístico da outra.
A ceia do morgado da Boa Yista
Mas essa falta suppria-a de algum modo a lembrança de
que justamente havia na familia uma «prima-donna», que até
de longe parecia enviar ás irmãs, para completar-lhes a attrac-
ção, um reflexo da sua celebridade.
A ceia começou com um brilho de alacridade que não seria
possível se, em vez de haver á mesa dois portuguezes e duas
italianas, houvesse duas portuguezas e dois italianos.
o LOBO DA MADRAGÔA 293
Os vinhos preciosos da garrafeira do morgado, que já os
bohemios tinham preconisado mais de uma vez, punham irisa-
ções estonteadoras no crystal dos copos e na alegria dos espi-
ritos.
António Lobo estava em veia, pródigo de engraçados ditos,
onde já a maHcia penetrava como a ponta de um punhal que
rasgasse a phrase e descobrisse as intenções.
De repente, sentiu-se bater á porta.
— Quem será? perguntou Felicia.
— Algum dos nossos amigos, respondeu tranquillamente o
morgado.
— Que fará o favor de não deixar entrar, disse jovialmente
António Lobo, para não desacertar a conta.
O criado, um velho escudeiro que seguia o morgado para
toda a parte, foi vêr quem era, e voltou com um bilhete na mão.
— E' para entregar ás senhoras, disse o escudeiro grave-
mente.
— Um bilhete ! commentou o morgado com surpreza.
— De minha irmã! exclamou, assustada, Felicia Zamperini.
— A esta hora! o que será? interrogou Margarida, muito
nervosa.
Felicia leu, empallidecendo extremamente.
— Santo Deus ! apostrophou ella com voz tremula e com-
movida. Minha irmã, depois do espectáculo, foi intimada por
ordem do marquez de Pombal para sahir de Lisboa dentro de
quatro horas.
— Como?! perguntou o morgado.
— Cebolorio ! berrou António Lobo, sem que as Zamperi-
nis comprehendessem o que elle tinha dito.
As duas irmãs sahiram na sege com afflictiva precipitação,
como se fugissem espavoridas deante da cólera tremenda do
grande marquez.
E, já quando a sege rodava na rua, dizia o morgado :
— Estava de prever. Logo que o marquez soubesse, a
bomba era certa.
Lobo, por sua parte, caramunhava dizendo :
— O que estava de prever era o enguiço que preside ao
destino do mais infeliz de todos os poetas que teem vindo ao
mundo desde Homero até hoje. Irra I que má sorte ! Esta só a
mim acontece I Sabe Vossa Senhoria por que o marquez ex-
pulsa a Zamperini?
— Sei; é para salvar o filho.
— Qual! é por eu me ter aproximado da Felicia, e a Felí-
cia ser irmã da Anna, e a Anna ser a amante do conde de
Oeiras.
294 o LOBO DA MADRAGÔA.
O morgado, rindo, perguntou :
— E onde fica a Margarida?
— A Margarida é irmã da Felicia, e a Felícia é irmS da
Anna, e a Anna é a amante do conde de Oeiras, e o conde de
Oeiras é fillio do marquez de Pombal, e eu sou um tumba que
hoje encalixtei toda esta gente, e a Vossa Senhoria também.
Depois fez uma pausa e disse com apparente gravidade :
— Morgado! como ninguém pôde luctar contra os decretos
do marquez de Pombal, acabemos de ceiar resignadamente.
Não supponha o leitor que eu preparei um lance de novella
fazendo-lhe crer que o grande marquez se dignou honrar com
um raio de súbita cólera a «prima-donna» da Rua dos Condes.
Lá o diz Verdier em a nota ao «Hyssope», quando noticia
que, meado o anno de 1774, «o marquez de Pombal fez sahir
de Lisboa a Zamperini».
Camillo Castello Branco amplia esta informação, dizendo a
respeito do conde de Oeiras: «O sagacíssimo pai espiara-o até
dar-se a crise da logreira dama se manter a expensas d'elle,
sem o concurso dos capitalistas. Chegado o momento, Zampe-
rini foi expulsa do paiz, por ordem do ministro». *
Não admira nada que tal ordem desabasse fulminantemente,
no fim de um espectáculo, sobre a cabeça da cantora. Os pro-
cessos do marquez eram rápidos e decisivos, quando tratava de
expulsar alguém.
N'aquelle mesmo anno, em janeiro, um decreto obrigou a
sahir de Lisboa, no praso de quarenta e oito horas, o desem-
bargador José de Seabra e Silva, então accessor do marquez
no exercício de secretario de estado dos negócios do reino.
Os motivos ainda hoje não são nitidamente conhecidos.
Doze annos antes fizera sahir da corte, dentro de quatro
horas, o cardeal Acciaiolli, núncio apostólico.
Em 1768 havia empregado igual processo com o parocho
de Santa Isabel e provisor do patriarchado, dr. José Mendes da
Costa, que de uma só pennada foi desnaturalisado e banido.
Agora, com a Zamperini, não se tratava d'um negocio de
Estado, de uma questão politica; o marquez procedia «pro
domo sua», procurando salvar o filho das garras da cantarina.
Tocava-lhe por casa : por isso a ordem foi expedida n'um
momento de formidável cólera.
Felizes os pais que, em lances idênticos, podem ser mar-
quezes de Pombal.
* «Noites de insomnia», n.» 5, pag. 22.
o LOBO DA MADRAGÔA 295
D'esta mesma opinião, quando soube do acontecido, foi a
serenissima princeza da Beira, D. Maria Francisca, futura rai-
nha de Portugal, que n'um Ímpeto de convicção profunda ex-
clamou :
— Os theatros deviam ser prohibidos, bem como toda essa
peste de cómicas e cantarinas.
XXII
Hei de bponze e ministro de ferro
Nos primeiros dias de junho de 1775 era extraordinária a
animação, que alvoroçava jubilosamente a cidade de Lisboa, e
lhe duplicava o movimento pela chegada de seges, liteiras e
carretas que transportavam famílias das mais remotas provín-
cias do reino.
Apesar de cahir uma calma intensa, que já despertava o
apetite de ir veranear para o campo, a população da cidade nâo
arredava pé fora de Portas, e n'uma festiva azáfama mandava
dealbar o exterior dos prédios, limpar o pó das vidraças, es-
pannar o peitoril das sacadas, ao mesmo passo que, no interior
dos domicílios, preparava aposentos confortáveis para receber
hospedes, por obsequio ou negocio.
Innovou-se n'esses dias uma industria de occasião, a de
alugar janellas e quartos por motivo da próxima inauguração
da estatua equestre de sua magestade el-rei D. José I, o «Re-
formador».
O pregão d'esta grandiosa solemnidade publica soara ao
longe como transmittido por uma tuba ingente, que se fez ou-
vir nos mais recônditos valles e nas mais longínquas monta-
nhas de Portugal, tentando a curiosidade dos leaes súbditos de
sua magestade fidelíssima.
O facto era inteiramente novo para os portuguezes, que nSo
estavam ainda habituados a vêr estatuas nas praças publicas.
o LOBO DA MADRAGÔA 297
Os monumentos patrióticos limitavam-se até entSo, além de
alguns templos notáveis, a singelos padrões commemorativos
de victorias militares.
Um rei de bronze era coisa ainda nSo vista pela nossa
gente.
De mais a mais, não se tratava apenas da figura do rei,
com todo o seu apparatoso revestimento de armas brancas.
Havia também um cavallo fundido que o rei montava, e na
imaginação do bom povo da província não sei se a curiosidade
de vêr o cavallo seria superior á de vêr o rei.
Outros animaes, não em bronze, mas em mármore, deviam
outrosim atiçar a curiosidade do portuguez ingénuo, e vinham
a ser as figurações symbolicas do pedestal : o corcel que, mal
domado pela mão do Triumpho, atropella um prisioneiro de
avantajada estatura, e o elephante, que faz grupo com a Fama,
e calca outro prisioneiro de vulto não menos avantajado.
Os provincianos, ouvindo soar em suas terras a troante
descripção da estatua, preoccupavam-se menos com o sentido
politico das allegorias, do que com a representação zoológica
que as concretisava, porque a imaginação popular impressio-
na-se sempre, e muito, com o maravilhoso que resulta da ex-
hibição plástica de uma fauna gigantesca.
Entrara por um ouvido ao povo e sahira por outro a infor-
mação de que o corcel representava a Europa e o elephante a
Ásia, e ambos o predomínio da coroa portugueza n'aquellas
duas partes do mundo.
O que elle queria vêr era os bichos, em bronze e em már-
more, as alimárias, o elephante e ainda as serpentes que pisa o
cavallo montado por el-rei, dando-se-lhe pouco de saber que
ellas significassem as difficuldades e embaraços que foi preciso
esmagar para conseguir a rápida reedificação de Lisboa.
E n'esse ardente interesse animalista do povo entrava tam-
bém em grande parte o desejo de vêr, em carne e osso, com a
sua cabelleira e luneta tradicionaes, o marquez de Pombal,
«bicho formidável», leão na sanha, elephante na força, cobra no
salto, maior que o rei, maior que o monumento, maior que
Portugal.
O rei era uma figura quasi apagada a par da do seu pri-
meiro ministro, e se todas as verdades se pudessem dizer, e
melhor ainda representar, quem devia estar sobre o pedestal e
sobre o cavallo, era o marquez, com o sceptro na mão direita,
com as rédeas na mão esquerda, isto é, com o poder real em
ambas as mãos, passando o sr. D. José a occupar modesta-
mente o medalhão de que, no pedestal, resaltava a vera eífigie
do marquez.
298 o LOBO DA MADRAGÔA
Todas as circumstancias concorriam, pois, para attrair fo-
rasteiros a Lisboa, além de uma outra, que nao deixava de li-
sonjear o sentimento nacional, e vinha a ser que tanto a mo-
delação como a fundição da estatua eram producto de artistas
portuguezes, Joaquim Machado de Castro e Bartholomeu da
Costa.
Isto pelo que respeitava ao monumento, que o vêr reedifi-
cada uma cidade, que o terremoto arrazára e que tinha resur-
gido mais bella e mais ampla do que fora, era também natura-
lissima tentação no espirito dos provincianos.
A noticia da conducção da estatua e da sua montagem so-
bre o pedestal, factos já celebrados com trez dias de regosijo
publico, que um vistoso bando annunciára, chegou a todos os
confins do paiz e acabou de resolver os ânimos que hesitavam
ainda perante o incommodo e fadiga de uma viagem á corte.
Finalmente amanheceu, radiante de luz e alegria, o dia
de terça feira 6 de junho, destinado para a cerimonia da inau-
guração, e anniversario natalício de el-rei, que n'esse dia com-
pletava 61 annos de idade.
Ao romper d'alva salvaram o castello de S. Jorge, todas as
outras fortalezas da capital, e os navios surtos no Tejo.
A cidade accordou em jubilo, com esse communicativo al-
voroço que, por occâsião das grandes festas publicas, não poupa
os mais indifferentes e os menos interessados n'ellas.
Na Praça do Commercio, ainda não completa, ultimavam-se
á pressa os retoques provisórios do seu aformoseamento, espe-
cialmente no pavilhão redondo que foi construído sobre a cor-
tina do cães, para acommodar grande numero de espectadores ;
e no arco triumphal, que marca o centro da fachada norte da
Praça, e que apenas veiu a ser fechado em nosso tempo, mas
que n'aquelle dia devia servir para dar mais brilhante passa-
gem ás tropas. Preenchiam-se com madeira pintada as lacunas
da alvenaria, tanto no arco como nos dois torreões, e também
na fachada occidental. Alisava-se melhor o lastro de areia en-
carnada, que já de véspera ficara atapetando o vasto recinto da
Praça. Abriam-se de par em par as janellas das secretarias e
repartições publicas, adornadas de sanefas, cortinas e colchas
de damasco carmezim. Compunham-se com arte as pregas do
alto envoltório de tafetá vermelho, que velava a estatua. O in-
tendente geral da policia, acompanhado pelos corregedores dos
bairros, com os seus respectivos alcaides, escrivães, meirinhos
e quadrilheiros, dava instrucções sobre o modo de regular o
transito e accesso do cortejo durante a cerimonia.
Pouco depois das nove horas da manhã já as embocaduras
das ruas, confinantes com a Praça do Commercio, estavam
o LOBO DA MADRAGÔA 299
guardadas por soldados de cavallaria, que obstavam á passa-
gem dos maltrapilhos, e apenas deixavam entrar ordenada-
mente, grupo a grupo, as pessoas que se apresentavam decen-
temente vestidas.
A multidão nSo podia ser mais variegada no aspecto, mais
pittoresca nos trajes : era o minhoto, com a sua jaqueta de
trinta botões, e a minhota com as suas roupas garridas, flam-
mantes de vivas cores; era a lisboeta de josésinho sobre os
hombros e lenço branco na cabeça; era a saloia de mantéo e
carapuça, saia curta e bota amarella ; era o campino do Riba-
tejo, de jaleca ao hombro, barrete verde, e collete vermelho; era
o alemtejano de jaqueta de alamares, faixa encarnada e chapéu
redondo ; a varina de camisa bordada, collete estreito, meia
branca e chinella polida; era, n'uma palavra, um vasto catasol
ondulante de cidadãos de todas as províncias, de portuguezes
da montanha e do valle, de gentes do norte e do sul do reino.
O «brouhaha» da multidão resfolegava de impaciência e
curiosidade, como um oceano que respirasse fremente, e apenas
se aquietou quando, pelo meio dia, entraram na Praça oito fi-
guras vestidas ao gosto de tragedia, e a cavallo, precedidas de
ternos de musica, as quaes derramaram no chão louros, mur-
tas e fiôres.
Era, finalmente, o inicio da solemnidade, ou, como hoje
dizemos, o primeiro numero do programma.
Logo depois organizou-se o préstito de carruagens que con-
duziam o senado da camará e a junta do commercio, e se diri-
giram para a calçada da Ajuda a fim de acompanhar o marquez
de Pombal desde o seu palácio.
As janellas estavam occupadas pela corte e seus altos di-
gnitários, incluindo as damas e açafatas, bem como pelo corpo
diplomático estrangeiro.
A familia real viera incógnita, pela manha, e aposentara-se
nas salas da mesa da consciência ao occidente da Praça.
El- rei D. José, adoentado e triste, parecia assistir indiffe-
rente a esse pomposo espectáculo : era ali um espectador como
os outros, pois que n'aque]le dia todas as honras pertenciam á
sua estatua, e não á sua pessoa, e se a pessoa apparecesse offi-
cialmente, prejudicaria a estatua; o rei de bronze, ofiferecido ás
gerações futuras, supplantava o rei mortal, que sentia avisi-
nhar-se o termo de seus dias.
Aquella estatua era o prologo da posteridade, e o rei sen-
tia-se talvez mais frio do que a estatua, porque o sol de um dia
de junho a devia ter aquecido.
O marquez de Pombal e seu filho o conde de Oeiras, am-
bos de capa e volta, com chapéus de cocares brancos, condu-
300 o LOBO DA MADRAGÔA
zidos n'uma carruagem da casa real, escoltada por uma com-
panhia de dragões, e seguidos por numeroso e brilhante cortejo,
vieram esperar a hora do programma no palácio novo do se-
nado da camará, onde se apearam. *
Logo depois quatro regimentos de infantaria entraram na
Praça, bem como esquadrões de cavallaria que, passando por
debaixo do arco triumphal, foram postar-se atraz da estatua,
dando a impressão de quererem seguir o cavallo em que el-rei
partia n'aquelle momento para a immortalidade.
A's trez horas da tarde chegaram os reis d'armas, arautos
e passavantes, com os timbales, clarins e oboés da casa real,
e começou a desfilar o luzido préstito, que acompanhava ao
marquez de Pombal e ao conde de Oeiras, e era formado, em
duas alas, pela junta do commercio, senado da camará e casa
dos vinte e quatro.
No couce do préstito vinham o esculptor, o fundidor e os
principaes mestres-de-obras que trabalharam no monumento.
As musicas, collocadas nos pavimentos térreos de ambos
os pavilhões, entoaram o hymno real.
O marquez e seu filho, parando na frente da estatua, rece-
beram os cordões da cortina.
Um vento rijo, que soprava do mar, fel-a papejar violen-
tamente, e rompeu-a no momento em que devia descerrar-se.
Apenas a cabeça do rei ficou a descoberto, como estran-
gulada.
D. José I empallideceu, e a multidão^ suspensa de curiosi-
dade, conservou-se silenciosa, de cara no ar, os olhos arrega-
lados, n'uma attitude de sôfrega observação.
Foi preciso que um meirinho subisse ao pedestal e a muito
custo, no meio de um grande silencio espectante, fosse, pouco
a pouco, desvelando a estatua.
Quando a cortina cahiu, o marquez de Pombal, chapéu er-
guido na mão, plumas ao vento, fez vénia á estatua, curvando
o joelho até quasi tocar em terra, no que foi imitado por todos
os assistentes, e um rei d'armas, agitando um lenço branco,
proferiu solemnemente em voz alta: «Viva D. José I, rei de
Portugal».
Soaram todas as musicas, estalaram foguetes, ribombaram
salvas de artilharia ; os reis d'armas soltaram vivas a que o
povo correspondeu; versos e flores vieram adejando das janellas
cahir sobre a multidão.
* Este palácio, edificado de 1770 a 1774, vinha desde o novo largo do Pe-
lourinho até á rua do Oiro. Ardeu em 19 de novembro de 1863.
o LOBO DA MADRAGÒA
301
O marquez, com o seu cortejo, deu volta ao monumento, e
repetiu a vénia antes de retirar-se para a casa da junta do com-
mercio, cujas janellas lhe estavam reservadas.
Pouco depois entrava na Praça um vistoso carro que re-
presentava o «Templo da immortalidade», com muitas figuras
allegoricas, ricamente vestidas.
O carro deu trez voltas ao monumento, e após elle desíila-
A estatna equestre
ram por deante da estatua os regimentos da guarnição, em con-
tinência militar.
Anoitecia quando as tropas recolhiam a quartéis e a mul-
tidão começava a dispersar-se pelas ruas da Baixa.
Era apenas uma breve pausa nas festas d'aquelle dia, pri-
meiro do triduo consagrado ás solemnidades da inauguração.
As illuminações publicas promettiam ser deslumbrantes, e
o vento refrescava a calma de junho, o que tornava agradável
a temperatura.
A' noite, além das illuminações, havia ópera no theatro do
palácio da Ajuda, sarau e ceia na casa dos vinte e quatro, aca-
demias litterarias em vários conventos, e grande bodo, por bi-
302 o LOBO DA MADRAGÔA
Ihetes de admissão, offerecido pelo senado da camará aos mu-
nícipes nos amplos armazéns da alfandega.
O bodo foi um bródio, uma comesaina colossal, uma in-
gente rapina pantagruelica.
De trezentas arrobas de doce, que deviam chegar para trez
dias, duzentas e cincoenta desappareceram n'essa primeira
noite, devoradas e arrebanhadas pelos felizes portadores de bi-
lhetes de admissão.
A' porta da alfandega affluiam grossas ondas de povo, que
por qualquer modo obtivera o direito de ingresso. Era enorme
ali o apertão. Os criados do marquez de Pombal e do conde de
Oeiras haviam distribuído por sua conta e risco grande numero
de bilhetes a parentes, amigos e conhecidos. Todos queriam
entrar, ninguém queria sahir; e alguns que sabiam, levavam
cabazes cheios de bolos, latas de conservas, saccos de confei-
tos, garrafas de vinho, frascos de licor, a pretexto de o faze-
rem por incumbência dos vereadores ou dos funccionarios do
senado.
Era um saque em forma, realizado no meio de um torve-
linho cahotico, de um pandemonium espantoso, que desorien-
tava os copeiros, os serventes e fiscaes.
António Lobo, arrastado pela multidão, achou-se dentro
do edifício da alfandega, sem que ninguém lhe perguntasse pelo
bilhete, que não tinha. Aconteceu isso a muitas outras pes-
soas.
— Ah ! disse elle com os seus botões, querem que eu coma?
Pois faço-lhes a vontade; comerei e beberei.
Se bem o disse, melhor o fez. Mas não se alargou tanto
nas libações, que ficasse embriagado. Teve medo de si mesmo,
porque detestava o marquez de Pombal, não só por suggestão
da nobreza, mas também, agora, de conta própria, depois da
mallograda ceia em casa do morgado da Boa- Vista, e porque
não tinha feito outra coisa, desde pela manhã, senão procurar
o reverso cómico de toda aquella esplendorosa solemnidade,
que elle classificara de — palhaçada pombalina.
Rira, comsigo próprio, dos versos que tinham chovido so-
bre a multidão, e ferviam-íhe satyras, na cabeça, ao marquez,
ás salvas, ás luminárias e aos poetas.
Até já mentalmente aconsoantára o principio de um soneto
picaresco :
Trovejaram os poetas da manada,
E seguiu se uma chuva muito fria
De versos, que no campo da poesia
Mui grande perda fez co'a enxurrada.
o LOBO DA MADRAGÔA 303
Mandou Phebo chamar toda essa asnada,
Para os corrigir d'isto, e da ousadia
De fallarem na estatua, que devia
Por elle unicamente ser louvada.
Mas a multidão mettera-o aos empurrões dentro da alfan-
dega, quando ia pensando nas rimas dos tercetos com que o so-
neto devia terminar.
Bebeu cautelosamente, para evitar a embriaguez, mas
quando voltou á Praça do Commercio, e respirou o ar fresco
da noite, sentira-se bem disposto e satisfeito.
D'ali a pouco, a sua attençao foi attraída para a escada da
casa dos vinte e quatro, onde os homens bons da cidade de-
viam estar effectuando o annunciado sarau. Ouviu arruido, gri-
tos, pragas, viu muita gente a fugir e quadrilheiros correndo,
para conter o povo.
— Será alguma coisa ainda por causa do genovez? pensou
António Lobo.
E quedou-se em observação.
O genovez era João Baptista Pelle, que dias antes fora
preso como suspeito de querer fazer voar a carruagem do mar-
quez por meio de explosivos.
A policia procurava os cúmplices do italiano, que elle,
posto a tratos, nem assim mesmo denunciou.
Mas o arruido não fora causado por nenhum facto que
se relacionasse com o supposto attentado de João Baptista
Pelle.
Outra era a causa, e semelhante ó do apertão na porta da
alfandega.
A sala da casa dos vinte e quatro não tinha capacidade
para receber mais de oitenta pessoas. Haviam sido distribuídos,
por comprazer com instantes solicitações, uns trezentos convi-
tes. Ora emquanto o juiz do povo discursou, e se cantou por
musica um hymno a «José Augusto» (que era, aliás, o augusto
José, rei de Portugal e dos Algarves) e um chuveiro de sone-
tos, decimas e oitavas asphyxou oitenta aborrecidos espectado-
res, os duzentos e vinte restantes convidados espiavam na rua
o momento de começar a ceia.
E quando lhes pareceu que era chegada a occasião oppor-
tuna, enfiaram em tropel pela escada acima, como horda de fa-
mintos e lambareiros, empurrando as sentinellas, que por sua
vez os repelliram á coronhada, estabelecendo-se um coníiicto
de que resultou todo o arruido.
Esta refrega durou alguns minutos, e no theatro da acção
ficaram patentes os vestígios d'ella : fivelas perdidas, espadins
304 o LOBO DA MADRAGÔA
quebrados, plumas de chapéus, luvas e lenços dispersos pelo
chão.
António Lobo, quando observava o tumulto, cuja causa
desconhecia, sentiu tocarem-lhe no hombro.
Voltou-se rapidamente, e logo reconheceu o dr. Alho Mat-
toso, de Villa de Frades.
— Vossa Senhoria por aqui ! exclamou Lobo. Que surpreza
agradável !
— Mais surprehendido, e não menos agradavelmente, me
confesso eu — disse o dr. Mattoso — por encontrar a esta hora,
na Praça do Commercio, um poeta que devia estar na casa dos
vinte 6 quatro ou em qualquer outra parte onde hoje brilham
poetas.
— Bons poetas! respondeu ironicamente António Lobo. E'
que eu não sou correeiro, como o juiz do povo, nem sapateiro,
nem alfaiate, nem de nenhum outro officio como os deputados
das classes. Também não sou frade de S. Francisco para to-
mar parte n'essa famosa academia, que pela variedade das lín-
guas parecerá uma Torre de Babel, e que deve estar-se agora
celebrando no convento de Nossa Senhora de Jesus. Sou ape-
nas um homem feliz, a quem a multidão empurrou para dentro
da alfandega, e que lá ceiou regaladamente, como tantas vezes
o fiz em Villa de Frades na casa de Vossa Senhoria. Mas di-
ga-me uma coisa: quando chegou, e onde está?
— Cheguei ha dois dias, e vim acompanhando a D. Maria
Engracia, que morreria de desgosto se não viesse a Lisboa. O
meu caro poeta bem sabe decerto por quê. . .
Lobo illudiu a resposta dizendo :
— Por causa da estatua.
— Por causa de quem não quer deixar de parecer menos
frio que o bronze.
Lobo baixou um pouco a voz e replicou :
— Então deve ser o marquez de Pombal, que é um minis-
tro de ferro.
— De bronze, de ferro ou de carne e osso, trata-se de Vossa
Mercê, a quem eu, por mais que o procurasse, não tinha po-
dido encontrar ainda. E não era porque a D. Maria Engracia,
com toda a sinceridade da sua alma de alemtejana, me não re-
commendasse a cada momento que lhe desse aviso da nossa
chegada. Mas aonde? Lisboa é grande, e n'esta occasião tem o
dobro da gente. Vão lá encontrar uma determinada pessoa, a
não ser por acaso !
— Especialmente uma certa pessoa que não tem casa certa.
— Sim, eu não sabia, ou me esqueceu, a morada de Vossa
Mercê.
o LOBO DA MADRAGÔA 305
— Nem eu sei... respondeu Lobo sorrindo.
— Sempre de bom humor!
— Mas onde é que se hospedaram?
— Na «Estalagem transtagana».
— Onde é isso?
— Na rua dos Douradores. *
— Ah! já sei. Que tal a hospedagem?
— Irregular, como nao pôde deixar de ser n'esta occasiao,
estando a casa cheia de gente. Mas nós temos mais alguma
commodidade, porque comemos n'uma saleta á parte.
— E por onde anda agora a sr.° D. Maria Engracia?
— Anda decerto a verse pôde encontrar Vossa Mercê.
— Sôsinha?
— Não. Acompanhada por outra senhora, que encontrámos
na mesma estalagem, e ambas por dois criados que D. Maria
Engracia trouxe do Alemtejo.
— A outra senhora também é alemtejana?
— E' de Ponte do Lima. Sei apenas que se chama Isabel
Júlia, mas parece ser pessoa muito respeitável. Conhecemol-a
ha dois dias na estalagem. E para a D. Maria Engracia foi uma
felicidade.
— Também para Vossa Senhoria, que pôde ter maior folga.
— Engana-se. Eu andava por aqui em serviço da D. Maria
Engracia, sem que ella, aliás, exigisse tanto.
— Como assim? 1
— Ella procurava Vossa Mercê de conta própria, e certa-
mente estimava que eu o procurasse como obsequioso auxiliar.
Dividiam-se assim as forças para envolver mais facilmente o
inimigo. E a manobra, sem obedecer a um plano de guerra,
deu comtudo bom resultado. Cá está prisioneiro o inimigo!
Vou conduzil-o ao quartel-general.
— Agora ? !
— Pois decerto. Desejo ser agradável á minha patrícia e
visinha, que merece todas as attenções do meu respeito.
— Agora de noite?
— Para os vencidos não ha noite, nem dia. Não quero que
me fuja o prisioneiro, e que a minha cabeça tenha de responder
por elle.
— Mas uma sécca amorosa custa um pouco a soífrer de-
pois de uma boa ceia.
* O decreto de 5 de novembro de 1760, coraquanto destinasse cada ar-
ruamento da Baixa a determinados officios, permittiu que na rua dos Doura-
dores as casas, que não fossem occupadas por esta classe, pudessem servir a
tendas, tabernas, estalagens, etc.
306 o LOBO DA MADRAGÔA
— Não será do mesmo parecer o tio do marquez de OlhSo,
que ahi anda no rasto de D. Maria Engracia, e que abomina a
Vossa Mercê, desde que o soube seu rival.
— Rival ! A rivalidade suppõe concorrência, e eu nSo disputo
a mSo d'essa dama.
— Tanto não disputa, que a recusou, mas disputa-a elle, e
vê um perigo em Vossa Mercê.
— E eu vejo n'elle um grande tolo. Mas nao me rala isso
agora, que estou contente como um rato que tivesse devorado
um queijo. Não sirvo para amorios, meu caro doutor. E' con-
tra o meu génio.
— Pois eu sirvo com gosto a D. Maria Engracia. Nós, os
alemtejanos, somos uns pelos outros. E a boa senhora tantas
vezes falia em Vossa Mercê, que até já a D. Isabel Júlia disse:
«Eu própria estou com curiosidade de conhecer esse sujeito, que
todos procuram, e 'que não apparece nunca».
— E que tal... a D. Isabel Júlia?
— Cabeça branca.
— Outra velha !
— Nem tanto. Physionomia de doença ou desgosto.
— Só me apparecem d'essas !
— Isso agora é menos certo, porque o João Xavier, que
merendou hoje comnosco, e que também ficou de procurar
Vossa Mercê, contou vagamente a historia de uma ceia em casa
do morgado da Boa-Vista. . •
— Pois elle contou isso, o linguareiro? ! Ha quarenta e oito
horas que não vejo esse diabo de homem, que decerto anda a
merendar com os forasteiros pelas estalagens, mas quando o
vir hei de justar contas com elle.
— E as senhoras estavam tão interessadas no conto, que
se mostraram aborrecidas de elle o deixar em meio.
— Pois foi mais longe do que devia, porque o conto não
teve meio ; ficou apenas no principio.
— O que não pôde ficar apenas no principio é a historia
d'este meu feliz encontro. Vossa Mercê tem a bondade de che-
gar agora comigo á rua dos Douradores?
— A D. Maria Engracia ainda decerto se não recolheu a
casa; deve andar a vêr as luminárias.
— Não tem duvida; esperaremos. E entretanto Vossa Mercê
ceiará.
— Outra vez não pôde ser. E' que eu ceei á custa da cidade
e estou municipalmente repleto. Preciso tomar ar, fazer exer-
cido. Mas irei amanhã cumprimentar a sr." D. Maria Engracia.
— E' um subterfúgio^ que me desgosta.
— Não é. Dou a Vossa Senhoria a minha palavra de honra.
o LOBO DA MADRAGÔA 307
— Bem; acceito-a. A que horas irá?
— A's que Vossa Senhoria me indicar.
— Então ás oito, para almoçarmos juntos.
— Pois seja. Vá Vossa Senhoria tranquillo com a minha
palavra de honra. Não faltarei.
— Então, meu caro Lobo, até amanhã.
O poeta apartou-se, dizendo com os seus botões:
— Que maçada me espera amanhã!
E logo, mudando o rumo ao pensamento, procurou compor
os tercetos que deviam completar a satyra contra os poetas da
estatua.
Foram á correcção centos e centos;
E tendo-os Phebo em pé, e á mão esquerda,
Os reprehendeu de seus atrevimentos.
Mas depois encontrou conhecidos, que andavam a flaino,
chalaçou e riu com elles, e o soneto ficou ainda incompleto
n'essa noite.
Quando o dr. Alho Mattoso entrou na estalagem da rua dos
Douradores, já lá encontrou as duas senhoras que, apesar de
mortas de fadiga, estavam esperando por elle para saber se,
mais feliz que ellas, teria encontrado António Lobo.
O dr. Mattoso procurou disfarçar a verdade para tornar
ainda mais agradável a surpreza.
— Então? perguntou elle.
— Nada f respondeu D. Maria Engracia. Estará talvez
doente. E Vossa Senhoria?
— Nada, também.
— Se nós fossemos á intendência geral da policia pedir que
nos ajudasse?... aventou, com timidez, a dama alemtejana.
O dr. Mattoso sorriu e disse :
— A procurar o menino perdido? Ora, minha senhora, a
policia ainda não conseguiu encontrar os cúmplices de João Ba-
ptista Pelle e comtudo bem os tem procurado 1 EUa não pôde
querer servir-nos melhor do que ao marquez de Pombal.
— Dê Vossa Senhoria alguma idéa, disse D. Maria Engra-
cia a Isabel Júlia.
— Eu ! Fraca sou para dar idéas, sobretudo quando se trata
de procurar uma pessoa n'uma terra que não conheço.
— Tem razão! Pobre senhora D. Isabel! quanto eu a terei
enfadado com estas minhas impaciências. . .
— A mim?! Nada, absolutamente nada.
— Não quero que esteja triste, nem aborrecida por minha
causa.
308 o LOBO DA MADRAGÔA
— Não, minha senhora, eu não estou triste e menos ainda
aborrecida. E' modo meu.
De repente o dr. Mattoso levantou-se da cadeira em que se
havia sentado, e apostrophou triumphante :
— Saibam que fui nomeado intendente geral da policia da
corte e reino.
Maria Engracia e Isabel Júlia olharam surprehendidas uma
para a outra.
— Fui, sim, proseguiu o dr. Mattoso, porque o marquez
de Pombal se convenceu de que era eu n'este reino a única
pessoa apta para exercer esse cargo. Lá vai a bomba : achei o
homem 1
— Achou !? exclamaram as duas senhoras ao mesmo tempo.
— Achei. E vem amanha almoçar comnosco ás oito horas.
— Até que emtim ! disse J). Maria Engracia.
— Ainda bem! commentou Isabel Júlia. Ainda bem... por
que a sr.' D. Maria Engracia o estima.
— E comtudo elle é um ingrato! reflexionou, com des-
alento, a viuva Bellem.
— Um ingrato. . . repetiu Isabel Júlia. Parece ser. Mas ha
tanto d'isso !
— Minhas senhoras ! trovejou o dr. Mattoso. Vou tomar
conta do meu cargo.
E, pegando n'um candeeiro de latão, fez vénia, dizendo :
— Uma noite bem descansada.
— Muito boa noite, responderam as duas damas.
XXIII
Dezesete annos depois
A viuva Bellem sahiu do seu quarto logo ao romper do dia,
e foi chamar Isabel Júlia, com quem sympathisava tanto, que
lhe parecia conhecel-a já desde muito tempo.
Achou-a a pé, com a physionomia perturbada.
— Passou mal a noite, minha boa amiga? perguntou cari-
nhosamente D. Maria Engracia. Consinta que lhe chame minha
boa amiga, porque os impulsos do coração dSo ás vezes mais
direitos do que a longa acção do tempo.
— Oh! minha senhora! quanto me penhora tratando-me
assim ! Acredite que também a estimo muito, e que até me pa-
rece ter sido Deus que preparou este nosso encontro.
— Pois, minha boa amiga, ha de certamente ter estranhado
todo este meu alvoroço em idade que devia ser de fria reflexão.
Mas que quer? Por mais excepcional que isto lhe pareça, eu
amo António Lobo.
— Já o tinha comprehendido. . .
— Sabendo a minha vida, ha de desculpar-me.
— Se a desculpo !
— Casei, á vontade de meus pais, com um homem honrado
e sério, mas nada carinhoso. Era triste, concentrado, de muito
poucas falias. Respeitei- o sempre, como devia, mas não che-
guei a amal-o nunca. Enviuvei e a mim mesma perguntava se
310 o LOBO DA MADRAGÔA
uma mulher podia chegar á velhice sem ter amado, e se isso
era viver. Sabe a minha boa amiga quem me respondeu?
— Foi o coração.
— Foi, sim, quando vi António Lobo, o homem mais en-
graçado e independente que ainda conheci. Mas a sua resposta,
minha boa amiga, faz-me crer que também tem soffrido por
amor.
— Alguma coisa.
Houve um momento de silencio.
— Eu receio ser indiscreta, disse D. Maria Engracia. Mas
acredite que, por uma sympathia tão rápida como sincera, a
sua vida me interessa.
— Eu agradeço muito os bons sentimentos de Vossa Se-
nhoria para comigo, e creia que os retribuo mais ainda do que
pôde imaginar. Assim, não tem que receiar ser indiscreta.
— Ainda bem! Ah! eu suspeito que tenha amado. . .
— E não se engana.
— Casou?
— Não casei.
— Amor mal correspondido?
— ^Sim... talvez. Nem eu sei bem.
— Como?! Não sabe?!
— Não sei, é certo, porque o homem, a quem amo desde
a mocidade, se não casou comigo, também, segundo ultima-
mente pude averiguar, não casou com nenhuma outra.
— Mas fizeram algum juramento n'esse sentido?
— Nenhum.
— E' extraordinário ! Agora começo eu a interessar-me
ainda mais. E vê-o? Vivem na mesma terra?
— Não, minha senhora. Ha muitos annos que o não vejo.
— Parece um caso de novella !
— Pois é inteira verdade.
— E, diga-me, havia de ter muito quem a quizesse despo-
sar; mas recusou sempre?
— Muito não. Houve um rapaz da minha creação que gos-
tava de mim e quiz casar comigo.
— Morreu ?
— Morreu o anno passado. Coitado d*elle ! não teve felici-
dade nenhuma por minha causa !
— Tem muita pena?
— Isso tenho, porque foi muito bom para mim. E' certo
que eu o tratei com a dedicação de uma irmã : era um senti-
mento sem mancha, um affecto innocente. E assim foi sempre.
Quando o pobre rapaz estava doente, era eu a sua enfermeira.
Assisti-lhe á morte, fechei-lhe os olhos, e se elle ainda vivesse,
o LOBO DA MADRAGÔA 311
eu, para lhe poupar desgostos, nao teria vindo procurar nas
festas de Lisboa alguma distracção, de que bem preciso.
— E o outro?
— Vive longe.
— Decerto; para o não ter visto ha muitos annos! No
reino ?
— Sim, no reino.
— Pôde ser que viesse também ás festas.
— Se eu o encontrar, dou-me por bem paga de ter vindo a
Lisboa.
— Não o tem procurado ?
— Penso n'elle, e desejo muito vêl-o antes de morrer.
— Para recomeçar a amal-o?
— Não, minha senhora. Para continuar a amal-o lealmente,
sem lh'o fazer lembrar.
— Admiro a sua coragem !
— Não é coragem ; é resignação.
— O nosso caracter é differente, mas os nossos destinos
são parecidos. Cada uma de nós ama um ingrato. O coração
não me enganou logo que a vi. . . Ha de dizer-me os signaes
d'elle. Quero ajudal-a a procural-o, tanto quanto me tem aju-
dado a mim. Seremos desde hoje duas dedicadas amigas.
— Certamente. Mas os signaes d'elle... nem eu os sei bem
agora.
— Ora essa!
— Se estiver tão velho como eu, não o reconhecerei de-
certo, come elle também me não reconhecerá a mim.
— Ser velha ! Então que direi eu !
— Pois Vossa Senhoria não vê como está branco o meu
cabello !
— Vossa Senhoria! Bem quizera eu que me não tratasse
assim.
— Então como quer que eu a trate?
— Pelo meu nome, mas sem cerimonia nenhuma. Não lhe
parece que o «tu» fica bem entre duas amigas?
— Pois seja assim. Direi apenas... Maria Engracia.
— E eu. . . só Isabel Júlia, também.
Abraçaram-se com essa impetuosa necessidade de expan-
são, que é própria dos corações atormentados.
D. Maria Engracia carinhosamente continuou a interrogar
com vivo interesse :
— Dize-me, Isabel, qual de vós é mais velho?
— Elle.
— Muitos annos?
— Quatro apenas.
312 o LOBO DA MADRAGÔA
— Ah! suspirou a alemtejana. Isso é uma pequena diffe-
rença.
— Mas eu agora é que devo parecer mais velha.
— Tontinha ! E que modo de vida tem elle? E' fidalgo?
— Não; nao é fidalgo. Do que vive, ignoro; se ha tantos
annos que nao sei nada da sua vida !
A's oito horas da manhã o dr. Mattoso annunciou n'um
berreiro :
— Cá está o homem I
A viuva Bellem veiu a saleta receber António Lobo, com o
alegre semblante de quem se avista, finalmente, com uma pes-
soa cuja presença desejava.
— Vamos já almoçar, dizia o dr. Mattoso, que temos hoje
muito que vêr. E' preciso chamar a D. Isabel. Ella já estará
a pé?
— Ha muito tempo, respondeu a alemtejana. Eu mesma
vou buscal-a.
Quando António Lobo viu assomar á porta da saleta essa
figura de mulher, extremamente pallida, com o cabello todo
branco, notou-lhe alguns traços de semelhança physionomica
com a Therezinha de Villalva, e ficou impressionado.
Mas conteve-se, dizendo a si próprio :
— Não, não pôde ser ella. Esta senhora é muito mais ve-
lha. Ha apenas alguma coincidência de feições. De mais a mais
esta Isabel Júlia é natural de Ponte do Lima. . .
Continuando a vêr na imaginação a Therezinha, que elle
tinha conhecido nova e alegre, radiante de frescura e mocidade,
tranquillisava-se certificando a si mesmo :
— Não poderia estar tão velha. Nem a voz é a mesma que
eu ouvia cantar na Palmeira e que parecia o gorgeio de uma
ave. O sotaque é bem minhoto, sim, mas Isabel também é do
Minho, que admira, pois!
Era que elle, habituado a viver entre muita gente, não sus-
peitava, sequer, quanto o habito do silencio, longo e triste,
torna inconsistente e hesitante a voz humana,
Por sua vez, Isabel Júlia sentia-se abafar nas palpitações
violentas do coração. Tinha nos ouvidos um ruido semelhante
ao de muitos sinos que tangessem tumultuariamente; e um ne-
voeiro ondulante, zebrado de manchas pardacentas, turva va-lhe
a vista. Receiou perder os sentidos e denunciar-se.
O leitor já adivinhou decerto que Isabel Júlia era a There-
zinha de Villalva.
Era ella que não queria morrer sem tornar a vêr António
Lobo, e por isso viera a Lisboa aproveitando justamente uma
occasião em que, pela affluencia de forasteiros, poderia vêl-o
o LOBO DA MADRAGÔA
313
com probabilidades de não ser reconhecida. Mas quantas incer-
tezas a rodeiavani n'esta sua arrojada viagem ! Seria elle ainda
vivo? Residiria ainda em Lisboa? Lograria ella encontrai- o e
reconhecel-o? Se é vivo, dissera Therezinha comsigo mesma,
hei-de vêl-o, custe o que custar; hei-de reconhecel-o por força,
porque o meu coração ha de dizer- me: «E' aquelle».
Isabel Júlia (Therezinha)
E com esta fé viva, capaz de operar prodígios, se decidiu a
deixar por algum tempo a sua querida terra, o seu doce ninho
de recordações saudosas, e a fazer uma longa viagem, sósi-
nha, com as cautelas e mysterios de quem viesse praticar um
crime.
Quando viu Lisboa, teve um momento de desanimo. Como
poderia ella encontrar António Lobo entre tanta gente, n'uma
314 o LOBO DA MADRAGÔA
terra tamanha? Dir-se-ia que a tinha assaltado, de súbito, a
phobia dos grandes espaços. A cidade, com os seus vastos edi-
fícios e arruamentos pombalinos, fez-lhe medo. Therezinha
quasi chegou a arrepender-se de ter fugido ás seis arvores e
aos dois outeiros da sua pequenina aldeia de Villalva.
Tomou uma estalagem ao acaso e n'ella encontrou a Pro-
videncia, o imprevisto auxilio com que o céu acode a todos os
desgraçados : maná no deserto, jorro de agua no Horeb, taboa
de salvação no naufrágio.
Tendo por companheiros de estalagem o dr. Mattoso e
D. Maria Engracia, ouviu fallar de António Lobo. Era a Provi-
dencia que misericordiosamente lhe punha nas mãos um fio
conductor. Manifestamente os dois alemtejanos referiam-se ao
poeta. Elle estava, pois, vivo e solteiro ainda, porque D. Maria
Engracia não tinha sabido occultar o sentimento que Lobo lhe
inspirara. Therezinha não quiz mal áquella mulher pela coinci-
dência de amarem ambas o mesmo homem. Pelo contrario,
achou providencial esse encontro, e agradeceu-o com fervorosa
gratidão ao anjo protector dos desgraçados. Ella não vinha
disputar a ninguém o amor de António Lobo; vinha unica-
mente vêl-o, acalmar o coração saudoso, e preparar-se para
morrer, tranquillamente, na paz de Deus e da sua aldeia.
Foi ainda o Providencia que lhe valeu na occasião em que
entrou na saleta onde António Lobo estava.
Pôde dominar-se, readquirir a sua habitual coragem, a que
ella tão singelamente chamava resignação.
A pouco e pouco, o coração foi socegando; o nevoeiro des-
fazendo-se.
E podendo então observar esse homem, que tinha sido o
único amor de toda a sua vida, Therezinha escutou uma voz
interior, que lhe dizia :
— Santo Deus! como também está velho! Quem poderia
adivinhar n'elle, desprevenidamente, aquelle endiabrado rapaz
da Palmeira ? !
E ao sentarem-se á mesa do almoço, quando Lobo lhe di-
rigiu uma pergunta, Therezinha sentiu escaldar-lhe as faces
um rubor honesto : era a recordação do beijo que elle lhe havia
furtado.
— Ja sei que Vossa Senhoria é do Minho, e de Ponte do
Lima. Mas não tem parentes em Santo Thyrso?
Therezinha estremeceu de commoção.
— Já não tenho parentes em parte nenhuma, disse ella,
vencendo-se.
— E* que eu... conheci outr'ora varias famílias d'essa terra,
que é próxima da minha.
o LOBO DA MADRAGÔA 315
— Mas por que faz Vossa Mercê essa pergunta?
— Porque... também conheci lá uma pessoa, de quem a
sr.* D. Isabel me dá alguma idéa.
De novo se alvoroçou o coração de Therezinha.
— Não, disse ella, procurando atalhar o dialogo, e conter-se;
não tenho parentes em parte nenhuma.
— Parece soffrer ?
Therezinha sorriu e disse :
— Não soffro; sou velha. Digamos as coisas como ellas são.
— Sempre a pensar-se velha! exclamou D. Maria Engra-
cia. Tem tido desgostos, que pesam ainda mais que a velhice.
— Desgostos? interrogou António Lobo.
A certe/a de não haver sido completamente esquecida e o
gradual regresso á convivência foram a pouco e pouco afinando
a voz de Therezinha, restituindo-lhe alguma parcella da sua an-
tiga melodia.
Comtudo já não era, e não fora nunca mais, o mesmo gor-
geio d'outr'ora : é que a voz humana tem também a sua prima-
vera; o tempo desaninha do vergel de cada alma os rouxinoes
que a mocidade inspirou.
No soffrimento e na velhice, ainda que seja prematura, a
voz vai adquirindo lagrimas e perdendo cânticos.
■ Mas Therezinha, readquirindo os hábitos de convivência,
foi-se exercitando no trato social, que a educação lhe insinuara,
e que um instincto senhoril favorecia.
Por isso respondeu a António Lobo já com maior desem-
baraço :
— A minha amiga quer dizer que não pôde ser alegre quem
vive longe do mundo e já não tem familia. Mas agora, no meio
de todas estas grandes festas de Lisboa, não se deve fallar das
tristezas de cada um.
— Pois decerto, obtemperou o dr. Mattoso. E o caso é que
temos hoje muito que vêr. Dizem-me que são deslumbrantes os
carros e as figuras da casa dos vinte e quatro.
— Queira Deus que sejam melhores que os poetas! disse
António Lobo.
E esta phrase foi o ponto de partida de uma longa serie de
chistosos ditos, em que Lobo, animando-se progressivamente,
prodigalisou toda a scintillante mordacidade do seu espirito.
Mas sempre que tinha de se dirigir a Isabel Júlia, o fazia
com respeitosa deferência e attenciosa compostura.
Evidentemente, aquella dama, ainda ha instantes desconhe-
cida para elle, infundia-lhe um sentimento de veneração, que
os cabellos brancos e os sulcos da face de Isabel Júlia appa-
rentemente justificavam.
316 o LOBO DA MADRAGÔA
A verdade é que António Lobo achava na physionomia
d'ella uma vaga recordação do passado, como que uma evoca-
ção muito longinqua e confusa da Therezinha de Villalva ; e,
mais talvez que na physionomia, no poHdo acanhamento, na
modéstia senhoril com que ella respondia a todas as perguntas.
— A mulher do Minho, pensava elle, quando não seja um
anjo de innocencia, está muito longe de ser um demónio de as-
túcia. Therezinha era uma alma simples, sincera e crédula ; as-
sim deve ser ainda, se acaso vive.
Mas esta recordação apenas o entristecera nos primeiros
momentos; depois sentiu-se alegre, de uma alegria quasi doida,
como se essa mesma recordação o tornasse subitamente feliz
n'aquelle dia.
— Vossa Mercê está hoje divino! dizia-lhe o dr. Mattoso.
— Perdão! não queira Vossa Senhoria usurpar o vocabu-
lário do padre Macedo.
— Direi então que está graciosíssimo.
— E' que me subiu a estatua á cabeça. Deus queira que o
peso do cavallo me não esmague a mioleira.
João Xavier, chegando n'esta occasião, ainda tomou parte
no almoço; e contribuiu para estimular a graça picante de An-
tónio Lobo.
Rindo se levantaram da mesa. Isabel Júlia não era por
certo a menos contente d'aquellas cinco pessoas que almoçaram
juntas na saleta da «Estalagem transtagana».
E' que ella repetia a si mesma, n'um delicioso encanto de
saudade rediviva :
— Ainda se lembra de mim! Eu sou a pessoa que elle
disse ter conhecido em Santo Thyrso.
O dr. Mattoso, habituado a ser obedecido na faina agrícola
da sua herdade, era quem dava as vozes de commando no res-
peitante ao horário de cada dia.
— Vamos para a rua, disse elle, que a sr.* D. Maria En-
gracia e eu já não vemos Lisboa ha muito tempo, e a sr.^ D. Isa-
bel não a viu nunca. Os nossos poetas, se não teem destino
certo, far-nos-hão o favor de servir-nos de guias. Ahi pela uma
hora da tarde precisamos estar de plantão na Praça do Com-
mercio, porque as festas principiam ás trez horas.
António Lobo respondeu logo que podiam dispor do seu
préstimo de «cicerone».
D. Maria Engracia mostrou- se discretamente satisfeita com
esta resposta; deante de Lobo não ultrapassava nunca as con-
veniências que a sua idade lhe impunha. E Isabel Júlia sentiu
inundar-lhe a alma uma onda de intima felicidade, que os seus
olhos traíram levemente n'um relâmpago de alegria.
o LOBO DA MADRAGÔA 317
Bem aproveitadas as horas, sob o commando do dr. Mat-
toso, viram, n'esse pouco tempo, o mais que foi possivel.
Lobo desempenhou-se pontualmente do seu papel de «cice-
rone» e, por um sentimento de conveniência, que era n'elle ex-
cepcional, repartiu attenções e delicadezas entre D. Maria En-
gracia e Isabel Júlia, sem maior deferência para uma ou para
outra.
N'aquelle dia não se enfadava de acompanhar damas, bem
ao contrario do seu génio inquieto e insubmisso ; parecia, sem
que elle o pudesse explicar a si próprio, que a presença de Isa-
bel Júlia lhe aligeirava o encargo que voluntariamente assumira.
E mostrando um edifício, indicando uma rua, fazendo no-
tar uma pessoa que passava, acudiam-lhe graciosas referencias,
que tornavam suave a peregrinação de arruamento em arrua-
mento.
— O marquez de Pombal, explicava elle ás duas senhoras,
destinou cada rua da Baixa para determinado mister. Esta rua
em que vamos passando agora, é a dos Sapateiros. Todas as
artes e oííicios teem, pois, sua rua, menos os poetas, que n'esta
prerogativa ficam abaixo dos sapateiros. E sabem por quê?
— Nao sabemos.
— Porque em Lisboa sSo tantos os poetas, que nSo haveria
rua onde pudessem caber todos.
Mais adeante dizia António Lobo, indicando uma sege que
passava :
— Aquelle sujeito que ali vae, dentro da sege, tem man-
dado para o céu milhares de almas.
— E' medico? perguntou o dr. Mattoso.
— Não, é inquisidor, mas desde que o marquez de Pombal
saltou como raposa no gallinheiro do Santo Officio, ficou valendo
menos cincoenta por cento.
Referia-se ao alvará e regimento de 1774 que, acabando
com a odiosa omnipotência da inquisição, a reduziram a ser
apenas um tribunal régio.
— Como Vossa Mercê escapou da fogueira ou da polé, é
que eu não sei I disse a meia voz o dr. Mattoso.
— E' verdade ! Muitas vezes me deitei com medo de vir a
ser carne assada no primeiro auto de fé.
— Creio que, ao menos por esta providencia, não deixará
de applaudir o marquez.
— Eu sou o homem mais contradictorio d'este mundo.
Aborreço o marquez — disse elle parando cautelosamente no
meio do grupo — porque é um déspota, e tenho de applaudil-o
ás vezes ; aborreço os frades e vivi excellentemente entre os pa-
dres cruzios da Palmeira, no Minho. . .
318 o LOBO DA MADRAGÔA
Isabel Júlia atalhou a phrase, dizendo n'um impulso invo-
luntário :
— Eram bons esses padres?
— Tão bons, que conservo d'esse tempo uma agradável me-
moria. Os dias que passei entre elles foram os mais ditosos da
minha vida.
O coração de Isabel Júlia bateu desordenadamente, como o
de uma avesinha que se visse de repenle colhida na mão de
uma creança estouvada.
— Um bom confessor, disse D. Maria Engracia, ironisando
gravemente a phrase, ainda teria que notar outras contradic-
ções nos peccados de Vossa Mercê.
— Pois se eu, minha senhora, sou o homem mais contra-
dictorio d'este mundo !
A' uma hora da tarde, estavam de plantão no Terreiro do
Paço, como o dr. Mattoso ordenara militarmente.
Ali passaram duas horas, que o bom humor de António
Lobo encurtou deleitosamente.
João Xavier havia-se escapado.
Lobo dissera quando deu pela falta d'elle :
— Foi na piugada d'alguma Filis ou Dircea. Ha de morrer
com este sestro.
— Felizmente para nós, no dia de hoje, Vossa Mercê pensa
de outro modo, replicou, com um leve toque de ironia amável,
D. Maria Engracia.
E Isabel Júlia pensava, decerto, n'uma doce confidencia da
sua alma :
— Também António Lobo teve outr'ora uma Filis... Fui eu.
Cerca das trez horas da tarde, uma estrondosa girandola
de foguetes deu signal de que do Largo do Passeio Publico ia
partir para a Praça do Commercio o préstito de carros trium-
phaes promovido pela casa dos vinte e quatro e pelo juiz do
povo.
A multidão vozeou de contentamento, desabafando a sua
justa impaciência, pois que havia longas horas que esperava
esse momento.
Ondas de povo quizeram forçar as embocaduras das ruas,
que as sentinellas defendiam, porque na Praça do Commercio
já não cabia mais ninguém.
Até sobre os telhados dos edifícios das secretarias de es-
tado havia espectadores.
O primeiro carro que desembocou da rua Augusta foi o
que representava a America, guiado por duas figuras que sym-
bolisavam a Generosidade e a Riqueza.
Este carro procurava dar uma apparatosa idéa da fauna e
o LOBO DA MADRÂGÔA 319
da flora americanas. Dentro d'elle vinham dez músicos instru-
mentistas e dez dançarinos mascarados. Era acompanhado por
um rancho de mulheres do Campo de SanfAnná, que vestiam
roupas azues e saias côr de rosa, género pastoril, tudo aga-
loado de ouro ; na cabeça coifas còr de rosa bordadas de prata
e chapellinhos brancos redondos, com laços de fita pendentes.
Lobo commentou dizendo :
— A America vem á frente por ser costume que os pais,
quando saiem á rua com a familia, se façam preceder pelos
filhos mais novos.
Chegou em segundo logar o carro da «Africa», guiado pelas
figuras do Temor e da Paz, e obedecendo a idêntica intenção
de symbolismo geographico, com o mesmo recheio de músicos
e dançarinos. Era acompanhado pelo rancho das mulheres da
Ribeira do Peixe, que trajavam á hespanhola, de branco e
preto, xiom mantilhas brancas agaloadas de ouro, roupinhas de
Ihama de prata, e coifas brancas bordadas a ouro.
— Que bicho tamanho é aquelle? perguntou Isabel Júlia, in-
dicando a popa d'este carro.
— E' um elephante, explicou António Lobo.
— Existe ou é fabula?
— Existe, e é assim mesmo.
— Nunca tinha visto !
— Feliz de Vossa Senhoria, que para vêr grandes animaes
teve de vir a Lisboa.
Seguia-se o carro da Ásia, guiado pelas figuras da Sujei-
ção e da Victoria.
A' proa levava a figura de um camello.
— Este animal conhece-o Vossa Senhoria, disse jovialmente
António Lobo a Isabel Júlia, porque existe tanto em Lisboa
como na provincia.
— Pois nunca tinha visto nenhum!
— O' minha senhora 1 o que não falta n'este reino são ca-
mellos !
Em torno do carro agrupa va-se a dança das hortelôas, que
vestiam de verde com galões de ouro, coifas da mesma côr,
também bordadas a ouro, bandas de flores a tiracollo e rama-
lhetes nas mãos.
Vinha depois a figuração da Europa, guiada pela Gloria
dos Principes e pela Honra.
Da popa d'este carro resaltava elegante, sobre um alto pe-
destal, a matrona Europa, trajada de vestes magestosas, coroa
real na cabeça, nos hombros manto imperial : na mão direita
um templo, na esquerda um sceptro.
— Ahi vem a mamã! commentou António Lobo.
320 o LOBO DA MA DRAGO A
— A mamã de quem? perguntou D. Maria Engracia.
— De nós todos. Se não fosse tSo enchicharrada, beijava-
Ihe agora a mao.
Este carro era acompanhado pela dança das collarejas, que
vestiam saias azues e roupinhas còr de rosa, agaloadas de
prata, coifas azues com lavores argênteos, e arcos de flores
nas mãos.
Isabel Júlia pediu que lhe explicassem o que eram colla-
rejas.
— São propriamente as mulheres de Collares, em Cintra,
disse António Lobo, mas dá-se este nome a todas as regatôas
que vendem íructas e legumes.
Rapidamente, tomando um tom menos grave, Lobo vol-
tou-se para o dr. Mattoso, perguntando-lhe :
— E agora, que se acabou o mundo, o que virá?
O dr. Mattoso consultou o programma, de que methodica-
mente se havia munido *, e respondeu :
— Agora vem o carro de ApoUo, depois o do Oceano, e por
ultimo o de Portugal triumphante.
— Apollo, meu amo e senhor, lá vem elle! apostrophou
Lobo.
E indicava o carro, em que o deus da poesia, sentado
n'uma tripode e coroado de louros, vinha dominando outras fi-
guras, de complicada fabulação, que o dr. Mattoso, lendo o
programma, explicava em voz alta.
A còr predominante n'este carro era a verde.
— Ora vejam ! disse Lobo. Para os poetas, o verde! A casa
dos vinte e quatro conhece-os bem.
Riram-se as damas, e o dr. Mattoso, sempre preoccupado
em seguir o programma, reprehendeu amavelmente :
— O' homem de Deus ! até já me perdi 1
— Estava eu no verde, replicou Lobo com fingida serie-
dade, e todos os meus collegas também. Por esta indicação po-
derá Vossa Senhoria orientar-se. Bem ! vou calar-me.
Passou o carro do Oceano, com Têtis e quatro nymphas,
um tritão, o Tejo, o Douro e um renque de janellas d'onde sa-
bia, esvoaçando, um enxame de papeis com versos.
— Não posso dizer nada? perguntou Lobo.
— Não, senhor, respondeu o dr. Mattoso, sorrindo.
Finalmente, appareceu o carro de Portugal triumphante,
* Era a brochura intitulada «Narração dos applausos com que o juiz do
povo e casa dos vinte e quatro festeja a felicíssima inauguração da estatua
equestre, etc.»
o LOBO DA MADRAGÔA 321
com uma vistosa representaçSo das sciencias e artes liberaes
personificadas cm figuras de ricas e variegadas roupas.
Precediam este carro cincoenta comparsas que, passando
sob o arco triumphal, se dividiram em duas alas e assim en-
traram na Praça.
Collocados todos os carros nos logares que o programma
lhes designava, começaram a mover-se, por sua ordem, para
ir fazer vénia á estatua, com suas danças e symphonias, coisa
muito de vêr e ouvir.
Então toda a attenção dos espectadores se fixou nas evolu-
ções choreographicas dos ranchos que bailavam deante do mo-
numento, e tanto se aquietou a multidão, que distinctamente se
percebiam os accordes, suaves e festivos, dos músicos instru-
mentistas.
Parecia que a brisa do Tejo trazia um concerto longínquo
de vozes de sereias, com que os ouvidos se deliciavam n'um
vago arroubo.
Os carros sahiram da Praça do Commercio pela mesma
ordem por que tinham entrado.
Todo este espectáculo foi longo, mas imponente.
Isabel Júlia dizia com ingenuidade :
— Nunca vi coisa tão linda, nem pensei que pudesse haver !
E o dr. Mattoso, commandando militarmente, ordenava :
— Agora, vamos merendar. Vossa Mercê, sr. Lobo, vem
também comnosco. Eu já tenho muita fome.
Lobo gostou d'este convite, que o prendia mais ao grupo.
A si próprio se estranhava pela paciência com que ia aturando
o sentido amoroso que intencionava, posto que discretamente,
algumas phrases de D. Maria Engracia. Mas a companhia que
mais lhe agradava no grupo era a d'essa adorável creatura mi-
nhota, ao mesmo passo tão grave e tão ingénua, que lhe infun-
dia sympathia e respeito.
— Muito me faz esta Isabel Júlia lembrar da Therezinha de
Villalva ! repetia elle a si próprio quando a ouvia fallar. Duas
irmãs não seriam mais parecidas !
A's vezes a suspeita de que fosse realmente Therezinha
penetrava no espirito de António Lobo, alvoroçando-o. Na con-
versação, chegava a armar-lhe laços, que pudessem provocar
uma revelação involuntária.
Durante a merenda d'esse dia empregou elle o artificio de
suscitar um assumpto que se prendia a recordações do passado
na vida de ambos. Fallou dos costumes agrícolas do Minho,
especialmente das vindimas.
O olhar agudo de António Lobo procurava surprehender a
menor impressão na physionomia de Isabel Júlia.
322 o LOBO DA MADRAGÔA
— Vossa Senhoria, dizia elle, ha de ter presenceado a folia
das vindimas, e alguns episódios ternamente galantes que as
animam.
— Nós já estamos tão costumados, respondeu ella serena-
mente, aos costumes do campo, que nem damos por elles.
— Mas ha um episodio, insistiu Lobo, que eu presenciei na
Palmeira, e que me ficou sempre na lembrança.
— Qual?
— O de se encontrarem no cimo de uma arvore, durante a
vindima, dois namorados, que procuram assim occasião propi-
cia de trocar a occultas suspiros de amor.
Isabel Júlia, cuja commoção era intensa ao ouvir esta re-
cordação do passado, conseguiu sustentar a mascara da impas-
sibilidade, respondendo:
— Pois confesso francamente que tenho sido até hoje das
pessoas illudidas pelos namorados. Mas d'aqui por deante hei
de reparar.
— Não é ella, concluiu António Lobo, vendo inutilisados
os seus engenhosos ardis.
E' que elle, durante os felizes tempos da Palmeira, não
chegara a conhecer toda a fina tempera do caracter de There-
zinha.
Depois da merenda, foram vêr a illuminação e o fogo de
artificio na Praça do Commercio.
D. Maria Engracia sentia-se lisonjeada de que Lobo a acom-
panhasse de dia e de noite : a esperança renascia no seu co-
ração.
O próprio Lobo continuava a estranhar-se :
— E' curioso 1 sinto-me agora bem ao pé d'esta gente! Me-
lhor ainda do que no Alemtejo !
N'essa noite houve serenata na grande sala da alfandega,
e em seguida baile.
Suas magestades e altezas assistiram apenas á serenata ;
el-rei, adoentado e melancólico, parecia constrangido sob o peso
da sua própria apotheóse.
O marquez de Pombal, mais vigoroso e satisfeito do que
el-rei, assistiu ao baile. De pé, firme n'uma altitude magestosa,
observou attentamente, através da sua luneta, a primeira qua-
drilha em que o conde de Oeiras dançou com a embaixatriz de
Hespanha.
Quando, na Praça do Commercio, António Lobo viu pas-
sar as carruagens da familia real, que recolhia ao paço, ficou
dizendo no grupo :
— Eu, se fosse el-rei, também fazia o mesmo, com a difíe-
r^iça de que, tendo ouvido a musica de David Peres, em vez
o LOBO DA MADRAGÔA 323
de ir para casa, vinha para o meio do povo, onde se está
muito bem.
— Então nao tem pena de não assistir ao baile? perguntou
D. Maria Engracia..
— Eu! Nenhuma. Dizem que na mesa da ceia ha um lago
com todas as embarcações do Tejo em miniatura. Eu gostava
de barquinhos quando era creança. Agora prefiro chegar ao
cães e vêr os navios verdadeiros. Também dizem que nao cus-
tará menos de cem mil cruzados a ceia. Pois que lhes faça
muito bom proveito. Eu hoje merendei com Vossas Senhorias:
portanto, dispenso os serviços de Braz Troiano.
Era o copeiro encarregado da ucharia que forneceu esta
ceia colossal.
D. Maria Engracia ficou contente com a resposta de Lobo,
e a esperança de o ter por marido creou mais uma raiz no seu
coração anhelante.
Quinta feira, terceiro dia das festas, repetiu-se a exhibição
dos carros e danças; e á noite a illuminação e o fogo de artifi-
cio na Praça do Commercio.
Sexta e sabbado continuou o grupo, sempre acompanhado
por António Lobo, a visitar a cidade.
No domingo, Isabel Júlia disse á mesa do almoço :
— Peço a Vossas Senhorias que me façam ainda mais um
obsequio.
— Qual? perguntaram todos ao mesmo tempo.
— O de me acompanharem ao escriptorio da carreira ma-
rítima do Porto, para eu me prevenir tomando logar.
— Como?! perguntou o dr. Mattoso.
— Já f exclamou António Lobo.
— Não, minha boa Isabel, disse D. Maria Engracia, isso é
que não pôde ser. Por ora não te vais embora.
XXIV
Era ella!
Justamente na tarde d'esse domingo, 11 de junho de 1775,
foi o lio do marquez de Olhão á «Estalagem transtagana» cum-
primentar D. Maria Engracia.
Estavam merendando quando elle se fez annunciar.
— Valha-me Deus ! exclamou a alemtejana. Este homem é
tão violento, que sempre a sua visita me incommoda. O' Isa-
bel, fazes o favor de me acompanhar á sala, para que elle se
demore menos ?
Isabel Júlia levantou-se immediatamente e foi com D. Ma-
ria Engracia receber o fidalgo, que estava de physionomia car-
regada, e que mais sombrio ficou ainda quando viu que a viuva
Bellem se fizera acompanhar por uma pessoa para elle desco-
nhecida.
Após um breve prefacio de cortezia pouco serena, em que
o visitante explicou que não quizera incommodar D. Maria En-
gracia durante os trez dias de festejos roubando-lhe tempo,
esta mesma phrase lhe serviu para entrar logo na matéria das
suas mallogradas pretensões.
— Tanto mais, disse elle, que Vossa Senhoria tem andado
acompanhada por uma espécie de D. Quichote de la Mancha,
que maneja a lyra em vez da durindana, mas que não é por isso
menos irrisório.
o LOBO DA MADRAGÔA 325
D. Maria Engracia fez-se muito pallida ; Isabel Júlia estre-
meceu de indignação.
A viuva Bellem quiz cortar a verrina do truculento fidalgo,
e disse :
— Nao sei que mal fez a Vossa Senhoria o meu bom visi-
nho, dr. Alho Mattosol
— Minha senhora! nâo esteja a querer illudir-me. Bem
sabe que me refiro a esse valdevinos chamado António Lobo,
que não tem onde cahir morto, nem lamilia que o recommende,
e que anda explorando a sua companhia inconvenientemente.
Isabel Júlia levantou-se da cadeira, ficou a olhar, indecisa,
para o fidalgo durante um momento, e disse por fim :
— Peço licença a Vossa Senhoria para lhe dizer que o se-
nhor António Lobo nos tem prestado, a nosso pedido, o serviço
de mostrar-nos a cidade, que eu, principalmente, nao conhecia.
Elle, pois, é que nos tem obsequiado acompanhando-nos.
O fidalgo voltou-se, muito assomado, para D. Maria En-
gracia e replicou :
— Vossa Senhoria apenas me disse o nome e não a quali-
dade d*esta dama, que tão habilmente procurou associar como
cúmplice nos seus amores com o astuto Lobo.
Isabel Júlia aprumou-se altivamente, tirou pelo braço da
viuva Bellem, e retorquiu :
— Eu não posso demorar-me aqui. Não sei se queres ficar;
mas decerto não consentirás que eu torne a ser desfeiteada por
este senhor.
D. Maria Engracia levantou-se também, E Isabel Júlia, ti-
rando lhe insistentemente pelo braço, levou-a para fora da sala.
O fidalgo, apopletico, repetia em voz alta : «Por este se-
nhor! Que grande atrevida ! tratar-me por este senhor!»
O dr. Mattoso e António Lobo, quando viram as duas se-
nhoras voltar tão depressa á saleta onde elles continuavam me-
rendando tranquillamente, exclamaram :
— Então já?!
D. Maria Engracia, excessivamente perturbada, explicou o
que se tinha passado, attenuando, porém, o sentido irritante
das referencias que o fidalgo fizera a António Lobo.
— A Isabel, disse ella, que tem muito mais coragem do
que eu, cortou as minhas hesitações com uma altivez digna de
uma rainha.
E, n'uma effusão de agradecida amizade, abraçou-a e bei-
jou-a muitas vezes.
Isabel Júlia desculpava-se sorrindo :
— Eu sou do Minho e não sei nada da cortezia que se usa
na corte. Talvez fizesse mal, mas fiz o que teria feito na minha
326 o LOBO DA MADRAGÔA
terra deante de um homem insolente. Desculpem-me por quem
são. . .
O dr. Mattoso atalhou-a, dizendo :
— A sr.^ D. Maria Engracia precisava ter sempre ao seu
lado esta dama. Se assim fosse, nao tornaria a soífrer as im-
portunações de tao violento sujeito.
E António Lobo, que de mais havia comprehendido tudo o
que se passara, disse com exaltação :
— Esse homem ha de pagar-me a insolência com que se
portou deante de duas damas. Temos tempo de ajustar contas.
Não perde pela demora.
— Peço perdão! interrompeu Isabel Júlia, procurando cal-
mar o espirito de António Lobo. EUe, por agora, já foi bem en-
sinado, como se diz na minha terra.
— A Vossa Senhoria, tornou Lobo, mais sereno, apresento
os meus agradecimentos, pois que claramente entendo que to-
mou a minha defesa.
— Sim. . . eu sou muito grata aos favores de Vossa Mercê,
e certamente não consentiria que ninguém o desacreditasse na
minha presença ; mas sou muito grata também á Maria Engracia,
que pelas suas bellas qualidades merece que ninguém lhe falte
ao respeito. Se eu fosse homem, acrescentou intencionalmente,
seria o primeiro a estimal-a, poupando-lhe o menor desgosto.
António Lobo entendeu de sobra esta cortez allusâo. E Ma-
ria Engracia de novo abraçou e beijou Isabel Júlia, ainda com
maior enternecimento.
Pouco tempo depois, na ausência das duas damas, dizia o
dr. Mattoso a António Lobo :
— Esta D. Isabel Júlia é mulher para fazer a felicidade de
um marido.
Lobo, a quem tão inesperada opinião contrariou vagamente,
replicou sorrindo :
— Vejo que o celibato de Vossa Senhoria está um pouco
abalado !
— E' a minha razão que falia. Pois não lhe parece também
isto? Completa mulher, não ha duvida!
— Altamente estimável, é certo.
— Digo-lhe mais, meu caro Lobo, se D. Maria Engracia a
tivesse por companheira. Vossa Mercê acabaria por ser o pro-
prietário da Gandra.
— Isso agora é ir um pouco longe!. . .
— Não é. D. Isabel saberia preparar suavemente os acon-
tecimentos.
— Casar eu !
— Tem-se visto coisas mais espantosas.
o LOBO DA MADRAGÔA 327
Lobo, sorrindo, baixou a voz e disse :
— Resolvido a casar, preferia Isabel.
— Também eu... respondeu o dr. Mattoso, sorrindo por
sua vez.
Isabel Júlia consentiu em ficar mais algum tempo na capi-
tal : custava-lrie, apesar de saudosa da sua terra, abandonar
o paraiso que a Providencia lhe entremostrara como justa com-
pensação do muito que tinha soífrido.
Posto que incompleta, a sua felicidade era já muito maior
do que ella poderia haver sonhado.
D. Maria Engracia quiz que passassem o Santo António
em Lisboa.
— E' a maior festa da cidade, reforçava Lobo. Fazem bem
em querer vêl-a.
— Ha descantes e fogueiras? perguntou Isabel Júlia.
— Lisboa endoidece de alegria n'essa noite, explicava o
poeta. Ha descantes, fogueiras, luminárias e bailaricos.
— Na minha terra é pelo S. João que se faz tudo isso.
Gosto tanto da noite de S. João na minha terra ! Sinto-me quasi
sempre triste n'essa noite, e comtudo gosto muito de que ella
chegue.
— Sim, respondia Lobo, é deliciosa a noite de S. João no
Minho. Algumas vezes me tem lembrado também com saudade.
Mas Lisboa festeja mais Santo António do que S. João, pelo
motivo, aliás justo, de Santo António ser lisboeta. Bom tempo,
em que nasciam santos em Lisboa ! Já não ha d'isso.
— Proponha-se Vossa Mercê a seguir o exemplo de Santo
António, replicou Isabel Júlia, sorrindo.
— EUe ! exclamou o dr. Mattoso. Elle só era capaz de imi-
tar Santo António n'uma coisa.
— Qual? perguntou Lobo.
— Quebrar as bilhas ás raparigas na fonte.
— Estou velho para quebrar bilhas.
— Como são de barro. . . não custam muito a quebrar, re-
plicou ironicamente o dr. Mattoso.
— Se forem de barro, disse Isabel Júlia, não vale a pena
quebral-as.
— E' que Vossa Senhoria, tornou o doutor, acha que todos
os corações são de ouro, como o seu.
— É é verdade! concordou D. Maria Engracia.
N'aquelle tempo, as festas populares de Santo António não
estavam localisadas n'um único bairro ou arruamento. A Praça
da Figueira, onde hoje principalmente se concentram, não exis-
tia ainda ; fora só em novembro d'esse anno que el-rei D. José
concedeu ao senado da camará o terreno necessário para a edi-
328 o LOBO DA MADRAGÔA
ficação de um amplo mercado, no sitio onde estivera o Hospi-
tal de Todos os Santos. As danças e descantes do povo, as lu-
minárias e fogueiras, os fogos de artificio, o chiar das gaitas-
de-foUes, espalhavam-se por toda a cidade, mas adquiriam
maior animação nos mercados da Ribeira Velha e do Rocio,
constituídos por cabanas ou barracas portáteis, e junto ás ruí-
nas da Real Casa de Santo António, que o terremoto derru-
bara, e onde uma provisória construcção de madeira permittia
que se celebrassem os actos religiosos em honra da imagem do
Thaumaturgo, prodigiosamente salva da tremenda catastrophe.
A' beira do Tejo também ardiam fogueiras, na linha dos
cães, espelhando na corrente do rio, como grandes manchas de
sangue, os seus rubros clarões.
Nas lojas de commercio e na fachada de muitos prédios
improvisavam-se nichos ou thronos, que resplandeciam de lu-
mes e fiôres, entre as quaes, principalmente, os lindos cravos
de Lisboa, tão vivos e mimosos nas suas cores variegadas.
A estes nichos ou thronos correspondiam outros tantos ar-
raiaes, onde a dança pulava, e o canto popular parecia voar ás
estrellas confundindo o amor com a devoção.
D. Maria Engracia, Isabel Júlia, o dr. Mattoso e António
Lobo andaram percorrendo a cidade, de arraial em arraial, e,
pelo que respeita a Isabel Júlia, todos os seus trez companhei-
ros a estranharam n'essa noite de festa.
Achavam-n'a mais triste e concentrada.
Realmente, assim era. Uma vaga saudade da sua terra, da
sua pequena aldeia de Villalva, parecia constrangel-a no meio
da vasta cidade, que sorria em jubilo n'essa noite á luz das fo-
gueiras e ao som dos descantes populares.
Na noite de S. João, em Villalva, a lembrança de António
Lobo costumava assaltal-a doloridamente na solidão da sua
alma, em quanto as raparigas cantavam e bailavam á roda
das fogueiras chammejantes.
Agora, em Lisboa, na noite festiva e ruidosa do Thauma-
turgo, Therezinha estava ao pé de António Lobo, ouvia a sua
voz, lia a expressão do seu olhar, comprehendia o que se pas-
sava na sua alma, porque tinha a certeza de que não era para
ser agradável a D. Maria Engracia que elle acompanhava o
grupo; nem podia duvidar de que a recordação do passado es-
tivesse ainda viva no seu coração ; e comtudo a saudade de
Villalva, n'uma noite de festa, embora triste para ella, parecia
chamal-a de longe como um ecco choroso, que viesse carpin-
do-se pelo ar á distancia de muitas léguas.
Fez tenção de partir para que na noite de S. João pudesse
estar em Santo Thyrso; queria tornar a ouvir a voz das rapa-
o LOBO DA MADRAGÔA 329
rigas cantando, e as risadas com que ellas, felizes e contentes,
a entristeciam tanto.
Algumas palavras de D. Maria Engracia tiveram, porém,
a força bastante para fazel-a mudar de opiniSo.
Isabel Júlia perguntára-lhe :
— No Alemtejo é também alegre esta noite?
— Não tanto como em Lisboa, respondeu a viuva Bellem.
O canto alemtejano tem menos vida e animação ; dizem que os
mouros o fizeram triste. Mas também ha descantes e fogueiras
na minha freguezia de Villalva.
— Como?! Como se chama a tua freguezia?!
— Villalva.
Arrependida d'este involuntário movimento de surpreza,
que António Lobo não presenceára felizmente, Therezinha pro-
curou dominar-se, dizendo:
— E' curioso! No Minho também tenho ouvido fallar em
qualquer freguezia de Villalva.
— E' que os nomes das terras se repetem como os das
pessoas.
— Achas bonita a tua terra?
— Estou habituada a viver n'ella. E queres que te diga?
Custar-me-hia trocal-a por Lisboa.
— Também eu.
— Mas tu tinhas um meio muito fácil, e que a mim me da-
ria muito prazer, de ficares sabendo ao certo se a minha Vil-
lalva é bonita ou feia.
— Então?
— Indo passar comigo uns dias no Alemtejo. Nunca viste
a nossa província, e olha que não é para despresar. O Lobo,
que também é muito affeiçoado ao vosso Minho, gostou de a
vêr, segundo disse.
— E de Villalva gostaria também?
— Parece que sim.
— Seria talvez das commodidades e obséquios que encon-
trou na tua casa.
— Não. Dizia-se agradado da terra. Vou perguntar-Ih o
deante de ti.
— Não; não quero. O que ha de elle dizer, na tua presença,
senão que a terra lhe agradou muito?
— Tens razão. E tu o que dizes á minha lembrança?
— Digo que. . .
D. Maria Engracia atalhou affectuosamente :
— Dizes que sim- Seja, embora, por poucos dias.
— Quantos?
— Quinze, vinte, um mez.
330 o LOBO DA MADRAGÔA
— Ah! isso não pôde ser. E' muito. Eu não sou grande
proprietária como tu, mas também não posso abandonar a mi-
nha casa por tanto tempo.
— A questão é que vás comigo; o mais resolverás depois.
— Pois sim.. . quatro ou cinco dias, apenas.
— Tao pouco! Olha que nem vale a pena. Tu não sabes
como são fatigantes e longas as jornadas nos caminhos e car-
retas do Alemtejo.
— Não importa. Eu estou habituada á falta de commodida-
des na província.
— Agora vais comnosco. A' volta faço-te acompanhar pelos
meus criados.
Therezinha sorriu.
— Eu não tenho medo, disse ella. Fui creada no campo.
— Sabes lá o que é a charneca?! Só, não vens tu; Deus te
livre! Mando comtigo a minha Gertrudes, que é uma criada an-
tiga, da maior confiança ; e dois criados, pelo menos.
— Oh ! que estado maior! Nem o marquez de Pombal, ou-
tro dia, quando se inaugurou a estatua !
— Tudo será preciso desde o Alemtejo até Lisboa. E, se
quizeres, mando-os seguir comtigo para o Minho
— Credo ! Não é preciso. Eu vim sósinha, e não me acon-
teceu mal nenhum.
— Pois então está dito. Dás-me n'isso o maior prazer. De-
certo não tornaremos a vêr-nos mais. . .
— Sim, decerto; se não quizeres ir passar uns dias comigo
n'uma choupana, abrigo de uma pobre minhota como eu.
— Esqueces-te de que sou mais velha do que tu. Posso lá
fazer uma jornada d'essas !
— Depois, mais tarde, quando tiveres marido que te acom-
panhe.
— Marido! Quem? o Lobo?
— Sim, o Lobo, por que não? Que melhor podia elle dese-
jar? Tu és uma bella alma, Maria Engracia.
— O Lobo, bem vês, não tem génio para casado. Quer ser
livre. Está habituado a esta vida perdida de Lisboa. Queres que
te diga? E' um desgraçado.
— Infeliz d'elle ! Tens razão.
— Mas é o seu feitio. De mais a mais sou uma velha.
— E elle já não é nenhum rapaz.
— Poderia proporcionar-lhe, isso sim, alguns meios de
subsistência. E tinha gosto em o fazer. Não prejudicava nin-
guém. Não tenho herdeiros forçados. Era talvez uma tolice
como qualquer outra. Mas dizem que duas vezes somos creanças.
— Creança no pensar, é elle, em não ter acceitado ainda a
o LOBO DA MADRAGÔA 331
felicidade que tu lhe offereces tao generosamente. Se eu o pu-
desse aconselhar. . •
— Pois tu farias isso?
— Farei, se tiver occasião. Talvez tenha no Alemtejo, se
elle, a pedido do dr. Mattoso, quizer acompanhar- nos. Digo-te
mais, Maria Engracia. Imagina tu que eu gostava d'elle- ..
— Seria bem natural.
--Pois seria. Mas ainda assim eu o aconselharia a casar
comtigo, porque já conheço bem o teu coração, e porque eu
nunca poderia offerecer-lhe as mesmas vantagens que tu. Sou
pobre, e tu és rica. E eu, n'esse caso, desejaria que elle mor-
resse melhor do que parece ter vivido sempre.
— E's um anjo, Isabel ! Cada vez admiro mais o teu nobre
caracter.
Maria Engracia abraçou e beijou Therezinha com terníssima
cordealidade.
— Deixa vêr se o dr. Mattoso, disse Therezinha, o resolve
a ir comnosco.
— Talvez vá, se tu lhe pedires.
— Eul
— Tu, sim. Elle trata-te com muita estima e respeito. E
isso me tem contentado, porque vejo que faz justiça ás tuas
boas qualidades.
— E' que elle nSo parece mau. ..
— Sim, cuido que tem bom coração; o génio é que é arre-
batado.
— Má cabeça. Mas talvez que tu conseguisses guial-o me-
lhor na vida socegada do Alemtejo.
— Era a minha esperança.
— Pois não tem elle andado tão socegado estes dias?
— Tem, sim.
— Vês? Empurral-o para esse caminho seria prestar-lhe
um grande serviço. O que ha de ser a velhice d'elle, sem meios,
sem familia, sem o carinho de ninguém?
— E' verdade I
— Que eu também não tenho familia. Estou quasi como
elle. Menos pobre, graças a Deus.
— Não tens familia, porque não queres.
— Como assim ?
— O dr. Mattoso faz-te muitos elogios. Tenho a certeza de
que casaria comtigo, se tu quizesses.
— Ah I Maria Engracia, não digas isso. Eu nSo casarei nunca.
— A's vezes não te comprehendo! Amas um homem, não
casas com elle, não casas com nenhum outro, e nem sequer
procuras vêl-o!
332 o LOBO DA MADRAGÔA
— Isso é que tu não sabes, minha querida amiga.
— Já o viste?
— Talvez...
— E elle viu-te?
— Se viu, não me reconheceu.
— Não se fallaram?
— Fomos como duas pessoas que nunca nos tivéssemos
amado. . . tanto.
— Mas isso é triste.
— Se não pôde ser d'outro modo. . .
— E não me disseste nada!
— Tens razão. Pesa na minha consciência esse remorso.
Perdoa-me. Mas as condições em que o vi não me deixavam
proceder d'outra maneira. E' um segredo da m.inha alma, um
segredo que tem vivido sempre comigo, e que comigo ha de ir
para a sepultura. A ti, Maria Engracia, disse o mais que podia
dizer, acredita.
— Seja como fôr. Embora nem sempre te comprehenda,
porque tens um génio muito differente do meu, admiro-te e
amo-te.
No dia 14 de junho, pela manhã, partiram para o Alem-
tejo. . . todos quatro.
Isabel Júlia obedecera n'essa jornada á suggestão da pala-
vra— Villalva. Era uma coincidência que ella tomou como um
desígnio do seu destino. Lobo ia attraído, inconscientemente,
pela graia sensação que lhe dava a presença de Isabel Júlia.
Maria Engracia julgava-se feliz pela companhia de António
Lobo, e o dr. Mattoso principiava a sentir um subtil encanto
na convivência de Isabel Júlia.
Através do Alemtejo, o tom alegre da conversação, princi-
palmente animada por António Lobo e pelo dr. Mattoso, agora
mais fallador e communicativo, não pôde attenuar no espirito
de Isabel Júlia a severa impressão que lhe davam os montados
tristes, a charneca immensa, os «montes» solitários.
— Então que dizes á nossa província ? perguntou-lhe D. Ma-
ria Engracia.
— Acharás natural, certamente, que eu goste mais do
Minho.
— Isso decerto, observava o dr. Mattoso, porque é a sua
terra. Mas não se pôde julgar apenas pelas apparencias. Olhe que
no interior do Alemtejo ha muito que apreciar. Isto é como cer-
tas pessoas, de physionomia carregada, mas de brando coração.
E António Lobo, mais perscrutador, perguntava:
— Eu, que também sou minhoto, gostava de lhe ouvir di-
zer qual é a maior differença que nota entre as duas províncias.
o LOBO DA MADRAGÔA 333
— Náo sei bem, respondia com timidez Isabel Júlia. Pare-
ce-me que no Minho a gente está menos só; que a vida é mais
conchegada. Tenho pena de náo saber dizer o que sinto... Mas
lá, acho eu, as arvores aproximam-se mais do nosso coração;
juntam-se comnosco; tudo parece estar mais perto de nós.
— Ha mais vida, dizia António Lobo, auxiliando a expres-
são tímida de Isabel Júlia. Ouve -se a cada momento cantar a
alma da terra. E o arvoredo, eífectivamente, parece ter braços,
que nos enleiam fraternalmente.
— Isso mesmo! applaudia Isabel Júlia. E' tal e qual o que
eu sinto; mas nao sei dizel-o assim.
O que é certo é que a primeira impressão que Isabel Júlia
recebeu, ao entrar no Alemtejo, nao foi desvanecida na Gandra,
onde aliás observou com interesse os trabalhos da vida agrí-
cola, os aspectos do campo, os processos da lavoira.
N'este ponto, mais entendida do que António Lobo, fazia
perguntas, comparava, emittia opinião.
A respeito de Villalva dizia a si própria:
— A minha terra é um jardimsinho. Esta não é de todo
feia; mas pôde lá comparar-sel
E apertava com ella a saudade, uma doce saudade muito
penetrante, que lhe avivava recordações do passado, como se
todas nào fossem inspiradas por uma pessoa que estava ali pre-
sente. . .
A's vezes a saudade é como o ecco; sôa muito longe da
voz que o provocou.
Foi com sacrifício que Isabel Júlia annuiu a passar na Gan-
dra a noite de S. JoBo, para no dia seguinte partir; pela pri-
meira vez deixou de ouvir, n'aquella noite, as canções da sua
lerra.
— Mas, cogitava ella, estando eu ao pé de António Lobo,
que razão terei para sentir-me tão triste como lá? Pois não era
n'elle que eu pensava, n'elle, unicamente? Vejo-o agora perto
de mim, e decerto o não verei mais. Hei de sentir-me alegre
por força. . .
E o caso é que não sentiu.
Os festejos e tradições da noite de S. João no Alemtejo não
lhe causaram estranheza; vaga melancolia, sim. Ouviu algu-
mas das trovas do Minho, e encontrou quasi as mesmas su-
perstições: o ovo partido, os papelinhos, a herva benta. Ape-
nas desconhecia o vaticinio da alcachofra, o costume, tão arrei-
gado no sul, de cortar esta ftôr, passal-a pela chamma aa fo-
gueira e pôl-a depois ao relento toda a noite, para vêr se reflo-
resce na manhã seguinte.
— Admira não termos lá esta crença! dizia Isabel JuIia.
334 o LOBO DA MADRAGÔA
Não faltam cardos no Minho, e isto que chamam alcachofra é
a flor do cardo.
— Do cardo de coalho, explicava o dr. Mattoso. Também
lhe chamamos «cardo de dencas» ou «penqueira».
— Pelo amor de Deus! galhofava António Lobo. Esse nome
tira toda a poesia á superstição.
— Mas então, perguntava Isabel Júlia, se a alcachofra es-
tiver reflorida pela manhã, o que significa ?
— E' signal de casamento,
— E se não estiver?
— Ficará solteira a pessoa que a consultou.
O dr. Matloso propoz que todos quatro fizessem a expe-
riência da alcachofra.
Isabel Júlia percebeu-lhe a intenção.
Um dos motivos por que ella queria deixar a Gandra, ape-
zar das instancias que faziam para que se demorasse, era a
galanteria que principiava a transparecer nas palavras do dr.
Mattoso.
A idéa de que elle chegasse a declarar-se francamente, as-
sustava-a.
— Por minha parte, disse Isabel Júlia, não é precisa a ex-
periência; quer a alcachofra reverdeça, quer não, ficarei sol-
teira toda a vida.
Mas o dr. Mattoso insistiu no alvitre, e quatro alcachofras
foram queimadas na fogueira.
Rapazes e raparigas cantavam em coro ao som da viola :
Não sei que tem o Baptista
No dia em que quer nascer,
Que, sejam velhos ou moços,
Tudo faz endoidecer.
Ora viva
E ora viva !
Viva o Baptista, e viva I
Viva o Baptista, e viva !
Foi ao som dos cantos populares que Isabel Júlia disse em
confidencia a António Lobo :
— Muito estimaria vir a saber que Vossa Mercê tinha des-
posado Maria Engracia.
— Olhe que não é hoje a noite de S. Gonçalo, respondeu
elle; mas de S. João.
— Vossa Mercê está brincando. Eu é que não estou. Ma-
ria Engracia merece encontrar um homem que a estime; não
sei que haja melhor coração. E' boa, é rica, poderia fazer feliz
o LOBO DA MADRAGÔA 335
Vossa Mercê. Depois vem a velhice, vem a doença. . . E' triste
não ter ninguém no mundo. Nao leva decerto a mal que lhe
faça este pedido: seja bom para si e para ella.
António Lobo demorou em Isabel Júlia um olhar enter-
necido.
Depois, sorriu, e disse:
— Tudo isso é verdade, minha senhora, m.as, pelo que me
respeita, faça Vossa Senhoria de conta que mais uma alcacho-
fra deixou de refiorir.
— Tenho pena. . disse Isabel Júlia, aífastando-se.
Os seus olhos estavam inundados de lagrimas, e o seu co-
ração arfava vertiginosamente.
As fogueiras crepitavam levantando no ar um turbilhão de
faulhas, que faziam lembrar borboletas de oiro revoluteando
doidas.
O rosmaninho e o alecrim, ardendo, perfumavam de agres-
tes aromas o ambiente da herdade.
Uma voz de homem cantava provocante de galanteria cam-
pestre :
Que é das moças d'esta terra
Que não as posso encontrar?
Certo é que ellas não querem ,
O Baptista festejar!
— Os versos do Minho, disse o dr. Mattoso a Isabel Júlia,
hão de ser de pé-quebrado como estes.
— De versos, respondeu ella, não entendo nada.
— E, comtudo, interveio Lobo, certamente que Vossa Se-
nhoria os ouviria algumas vezes em sua honra. O Minho é terra
de poetas. Em Ponte do Lima nasceram dois, e dos melhores :
Diogo Bernardes e seu irmão Agostinho da Cruz. De certo, fa-
çamos essa justiça ao Minho, já algum poeta prestou homenagem
a Vossa Senhoria. Diga se não é verdade. . .
Isabel Júlia sorriu maguadamente.
— Esse sorriso, continuou Lobo, envolve uma aflfirmação
e uma saudade.
— Sim. . . respondeu Isabel Júlia, commovida; fizeram-me
uns versos, mas ha já muitos annos.
— Seria indiscreção pedir-lhe que m'os dissesse?
— Se me lembrarem. . .
— Versos d'esses não se perdem da memoria.
— Pois, quando me lembrarem bem, íar-lhe-hei a vontade.
— Eu, disse Maria Engracia, se tivesse nascido poeta,
também havia de te cantar, minha pomba sem fel.
O dr. Mattoso observou:
336
o LOBO DA MADRAGÔA
— Ha, principalmente, uma poesia do coração: é a since-
ridade.
— Mas os taes versos também eram sinceros, respondeu
Isabel Júlia, com vivacidade impetuosa.
Ao partir da Gandra
No dia seguinte, logo pela manhã cedo, apparelharam-se
duas carretas para a jornada.
Pendiam ainda, dos ramos das arvores, as ultimas gottas
do bemdito orvalho da noite de S. João, que os primeiros raios
de sol faziam brilhar como fulgidos diamantes.
Uma das carretas devia conduzir Isabel Júlia e a criada
Gertrudes; a outra transportaria mais dois criados da Gandra,
comitiva para o caminho.
— Bem me custa que vás, dizia, chorosa, Maria Engracia;
e logo no dia de hoje, que é de tamanha festa em todo o mundo,
até na Moirama! Mas tu queres por força. . . Sósinha é que de
modo nenhum te deixaria ir.
A manhã foi desabrochando clara e alegre. Mas os cora-
ções estavam tristes, oppressos.
— E as nossas alcachofras?! lembrou o dr. Mattoso.
— E' verdade!
o LOBO DA MADRAGÔA 337
— Vamos vél-as.
Nenhuma das quatro havia reflorido.
— Penso que fallaram verdade, disse sentenciosarnente o
doutor.
E Isabel Júlia, cortando este incidente, começou a fazer as
suas despedidas.
D. Maria Engracia chorava. O dr. Mattoso enrolava uma
folha verde entre os dedos. António Lobo tinha um olhar vago,
que parecia perder-se na immensidade do céu e da terra.
Isabel Júlia enxugou duas lagrimas e, no momento em que
ia subir á carreta, disse, sorrindo com esforço :
— E' verdade, sr. Lobo 1 Lembraram-me os versos. Sem-
pre os quer ouvir? SSo estes:
Se te esqueci? Esquecer-te! Jamais.
Amo-te e fujo; fujo e amo-te mais.
Rapidamente entrou á carreta, soluçando n'um estrangu-
lamento de commoçao:
— Adeus! adeus!
António Lobo, como fulminado de assombro, ouvia resoar
dentro da sua alma aturdida uma voz que lhe dizia em segredo:
— Era ella!
2^
Epilogo
António Lobo de Carvalho soffreu n'aquelle dia um pro-
fundo abalo moral, que não conseguiu modificar completamente
o seu génio mordaz e irritável, mas que algum tanto o atte-
nuou, avivando-lhe sentimentos nobilitadores da natureza hu-
mana.
Conservou, é certo, ruins paixões, taes foram aquellas que
o levaram a nSo deixar de perseguir o padre Manuel de Ma-
cedo, a aggravar o marquez de Pombal na desgraça, e a brigar
frequentes vezes com o tio do marquez de Olhão, a quem, como
sabemos, tinha jurado vingança.
Mas, pelo que respeita a este ultimo, havia no ódio de An-
tónio Lobo alguma coisa que podia desculpai- o: era o resenti-
mento de haver o fidalgo offendido Therezinha na presença de
D. Maria Engracia, e por causa d'ella.
João Bernardo da Rocha escreveu no «Portuguez» (tomo x,
pag. 356) que António Lobo fora mandado matar aleivosamente
pelo tio do marquez de Olhão, em desaíTronta de um soneto
cruelmente aggressivo.
Illibemos, a este respeito, a memoria do fidalgo.
Innocencio Francisco da Silva, no L° tomo do supplemento
ao «Diccionario bibliographico», lembra que José Maria da Costa
e Silva attribue o referido soneto ao «Camões do Rocio», e que,
sendo d'elle, mal se comprehende que António Lobo pudesse
vir a soffrer por um delicto que outro havia praticado cincoenta
annos antes.
o LOBO DA MADRAGÔA 339
Acrescenta que a pessoa visada no soneto era o marquez
monteiro-mór, em 1735, isto é, na infância de António Lobo.
Camillo Castello Branco acceita como bons estes reparos,
dizendo: «... o sr. ínnocencio Francisco da Silva, posto que
não decida qual haja sido a morte do poeta, com justificados
motivos desabona a affirmativa de João Bernardo da Rocha». *
E' até provável que o fidalgo, sendo mais velho que Antó-
nio Lobo, morresse primeiro.
Mas não ha duvida que ficou accêso o ódio entre os dois
desde a violenta occorrencia na «Estalagem transtagana», ódio
que se desmandou em repetidos conflictos, incluindo vias de
facto.
Quanto ao padre Manuel de Macedo, nunca mais António
Lobo o deixou em paz.
Bastará dar um exemplo.
Depois do marquez de Pombal ter sido desterrado, acon-
teceu ir Macedo pregar na egreja de Santa Joanna em acção de
graças pelas melhoras de certo fidalgo: n'esse sermão, o ora-
dor abateu os méritos e serviços do marquez, que n'outras occa-
siões havia louvado servilmente.
Lobo cahiu-lhe logo em cima com um soneto causticante :
Hontem n'essa cadeira da verdade,
Por maior dos heroes o conheceste,
E no mesmo logar hoje o fizeste
O monstro mais cruel d'iniquidade !
Explica-nos erafim por piedade,
Já que tanto o exaltaste, e o abateste.
Se é mentira o que então nos propuzeste,
Ou o que essa oração nos persuade.
Se foi mau, porque teve então louvores?
E se é bom, por que é monstro, e causa medo f
Eu não posso entender taes oradores 1
Para mudar o ser é muito cedo :
Hontem tudo era luz, tudo hoje horrores.
Mas, emfim, são discursos do Macedo !
António Lobo apenas queria ferir o padre, e não desaggra-
var o marquez, que até na decadência continuou a flagellar.
* Curso de litteratura, pag. 343.
340 o LOBO DA MADRAGÔA
Haja vista este soneto, aliás um dos menos duros entre os
que appareceram sobre a destituição e exílio do marquez de
Pombal :
Erários, casamentos, jesuítas,
Fidalgos, jacobeo», o novo plano.
Fabricas de chapéus, peças de panno,
E almas também no purgatório afflictas:
Guapos jardins, cascatas esquisitas,
E os toneis, que o Mansilha ^ encheu ha um anno,
Tudo são obras do marquez paisano,
Umes famosas, outras inauditas.
Muitos por honra, e todos com inveja
Lhe beijaram a mão de gral pesada.
Como se fora um copo de cerveja :
Mas elle, emfim, morreu, sem ser á espada ;
. Que um boi dos grandes, por feroz que seja,
Recolhido ao touril já não faz neda.
Em 1782, quando a morte veiu pôr termo ao exilio do mar-
quez de Pombal, António Lobo parece hesitar na animadversào
com que até ahi o julgara, dizendo:
Se elle foi bom, ou mau, não o disputo,
Que isto toca a mais alta jerarchia.
Mas insiste na aggressão ao padre Macedo, a propósito do
fallecimento do marquez:
Restam hoje as exéquias d'esta morte;
E para pregar n'eUa6 o Macedo,
Que está prompto a mentir de toda a gorte.
A influencia benéfica exercida nos costumes de Lobo pelo
abalo que lhe causou a presença de Therezinha, manifestou-se,
principalmente, n*uma revivescência de sentimentos religiosos,
e no carinho suave com que lhe escrevia frequentes cartas para
Villalva, acceitando d'ella o appello á justiça divina, que re-
compensaria a ambos, reunindo-os talvez, n'um mundo de
eterna paz e bemaventurança, além da sepultura.
* Frei João de Mansilha, provincial da ordem de S. Domingos, procu-
rador em Lisboa da Companhia de Vinhos do Alto Douro, e grande amigo
do marquez de Pombal.
o LOBO DA MADRAGÔA 341
Isto, no coração de Therezinha, que uma fé sincera e calma
tinha avigorado sempre, era um presentimeato de morte pró-
xima.
Assim veiu a acontecer, porque aquelia que íôra outr'ora
a linda camponeza de Villalva, falleceu dois annos depois, ao
cabo de trez dias de resignado soífrimento.
Morreu pelo coração, exhausto de haver praticado heróicos
esforços de coragem.
Nas suas disposições testamentárias, deixou a António
Lobo quanto possuía, «para que ao menos na morte pudesse
elle ter o socego, que lhe faltara em vida, e que prepara a alma,
pela conformidade, para a viagem eterna».
Assim se explica, como diz o prefacio ás «Poesias» de
Lobo, que o poeta, na hora da morte, tivesse alguns bens para
legar, e que fosse seu testamenteiro um Manuel Jacinto de Oli-
veira, caixeiro de commercio, morador na freguezia de S. Julião.
António Lobo de Carvalho morreu christãmente, recebendo
os sacramentos da Egreja.
Dir-se-hia que a alma de Therezinha velava por elle d'além
da campa, pedindo a Deus o perdão de todos os erros de uma
vida malbaratada em desatinos e loucuras.
Lobo expirou a 26 de outubro de 1787, com pouco menos
de sessenta annos de idade, na sua agua-furtada, onde muitos
annos viveu, da famosa rua da Madragôa, que hoje se chama
de Vicente Borga.
No dia seguinte foi sepultado na egreja do convento de Je-
sus, actualmente parochial das Mercês.
FIM
ERRATAS
'aginae
1 LtnbaB
Onde se lê
Deve ler-ie
57
—
7
—
obtemperou
—
obtemperou
89
—
20
—
exisse
—
exigisse
96
—
39
—
mu
—
um
105
—
38
—
Amal-a tu?
—
A'mal-a tu?
128
—
51
—
Dantes prendiam-n'a ali a —
D'antes prendiam-n'a ali
alagria
a alegria
170
—
29
—
Soneto ridicularisar
—
soneto a ridicularisar
192
—
6
—
Os zampirinistas
—
Os zamperinistas
256
—
30
—
e por quê?
—
e por quê.
26R
—
24
—
accordou a disse :
—
accordou e disse:
312
—
10
—
veiu a saleta
—
veiu á saleta
índice
PARTE I
PECCADOS DA MOCIDADE
p«gr.
I — A explosão da pesqueira. 9
II — Dia de S. Bartholomeu • 20
III — Encontro do Occidente com o Oriente 37
IV — Triumpho astucioso do Oriente 50
V — O bando do Lobo 62
VI — Consequências de uma rapaziada 75
VII — Despedida em verso . 87
VIII — Therezinha 100
IX — Amor puro 112
X — Cahir do ceu 125
XI — Ura atoleiro e uma pomba 136
XII — Nova separação 149
PARTE II
DELICTOS DA VELHICE
XIII — Na vida airada de Lisboa . . 163
XIV — Chegada da Zamperini 178
XV — A guerra dos poetas 194
XVI — A filha do picheleiro 212
XVII — Mezinha criminosa 224
XVIII — O sarau das Picoas 239
XIX — A chanfana 253
XX — Pobreza e independência 267
XXI — Rua ! 282
XXII — Rei de bronze e ministro de ferro 296
XXIII — Dezesete annos depois 309
XXIV — Era ella ! 324
Epilogo 338
4
Pimentel, Alberto
O lobo da Mandragôa
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